LuísCarlos
Guimarães
Sanderson
Negreiros
Santayana,
certa vez, ao assumir sua cátedra de filosofia, exclamou para os alunos: “Hoje,
não tem aula. A Primavera chegou”.
Ora,
direis, ver e ouvir primaveras em plenos trópicos tristes. De certo perdeste o
senso, na avaliação bilaquiana. Mas a verdade é que aportou, nesta noite, nesta
Casa, um grande poeta e um personagem denso e rico de aventura humana.
O
poeta Luís Carlos Guimarães ocupa a cadeira de Newton Navarro e Jorge
Fernandes, segundo ostrâmiteschamados legais. Mas, sobretudo, obriga-nos a
lembrar da definição de Augusto de Campos sobre outro poeta americano, Wallace
Stevens: “Ele é um inclassificável construtor de sonhos reais”.
Desvestido
das vestes talares que a regra acadêmica preceitua, recordo o jovem estudante
de Direito na cidade deJoão Pessoa, apresentado a mim por Dorian Gray Caldas,
já o acompanhava a maneira de ser quase única: uma certa bondade instintiva
para ser aberto à empatia diante da vida. Éramos os três, amigos moicanos.
Dorian, ele e eu. Ainda há pouco, Dorian encontrou uma fotografia do começo dos
anos 50 – em disponibilidade total, passeando pela Praça Pedro Velho, estávamos
a descobrir na literatura um caminho de alumbramento e realização interior.
Éramos livres e não sabíamos.
De
repente, Dorian encontra o que talvez tenha sidoo primeiro poema de Luís
Carlos, que ele escondeu duranteanos inteiros. E dizia:
“Aqui
jaz um menino azul/tragicamente desaparecido num desastre de velocípede”.
Para
mim, foi uma revelação. Era possível tratar a poesia com fatos, acontecimentos
e palavras do cotidiano. Antes, ainda sem saber como se vive fora das centenas
de paredes de um seminário, eu encontrara Dorian Gray numa livraria, no centro
de Natal, que se chamava “Boi Tatá”. Olhei para Dorian e, à queima-roupa, sem
saber quem era ele, perguntei: “Você acredita em Deus?”.
E,
pela vez inicial, eu via diante de mim, um livro de poesia moderna: “O Narciso
Cego”, de Thiago de Mello. No seminário não havia bibliotecas. A conversa deve ter
trazido susto positivo a Dorian, que logo me levou a conhecer Newton Navarro,
hospedado na casa de Moacir de Góes, na Avenida Rio Branco. Eram cinco horas da
tarde – e Newton estava selevantando de uma noite mal dormida.
Em
meus treze anos se modificaram. De poesia, só conhecia o “Navio Negreiro”, de
Castro Alves. Dorian, Newton, Zila e Luís começaram a me ensinar Poesia.
Agora,
lendo e relendo os poemas de Luís Carlos, sinto o quanto de vida passada, como
arcabouço perfeito, tem não só de sua infância vivida nos altiplanos de Currais
Novos, provendo com olhar profuso asserras azuis da Borborema, como, igualmente
sua poesia é doação de amizade, de ternura fraterna, emtorno de amigos,
parentes e instantes que o empolgaram. Na sua humanidade mais radical. Seu
lirismo, que se contém nos limites perseverantes de amplo conhecimento do fazer
poético: ele não só traduz, mas é capaz de retirar poesia de qualquer prosa ou
pedra. Foi ele quem salvou do esquecimento os poemas de José Bezerra Gomes,
organizou a antologia dessa figura estranha, dedons às vezes geniais, que só o
Rio Grande do Norte tem, exemplar na sua figuração única com outro poeta
revelador: João Lins Caldas, também salvo do naufrágio do tempo por Celso da
Silveira.
Hoje,
experiente domador da surpresa da vida, com o coração que já recebeu safenas –
que, nele se tornaram em verbenas – na sua humilde caminhada despretensiosa
pelas ruas e solidões dasobrevivência, éo emissário de um rei desconhecido,
como lembrava Fernando Pessoa; e tem saudades de uma paisagem que não há
segundo ainda a versão do poeta português. Mas essa paisagem está dentro dele,
e começou com a visão mais bela de sua infância currais-novense, ao lado de
Neto Guimarães, o pai guerreiro libertário; e dona Titila que era só suavidade,
silêncio e doçura. E cresceu com Leda nos passeios de mãos dada na Lagoa de
João Pessoa, Bezerra Gomes me dizia que o maior símbolo do Seridó era um pé de
algodão e um galo-de-campina pousando em cima do capucho branco. Quem já viu
isto, terá de ser poeta, para revelar o inexprimível, contemplar o que está por
trás da beleza exposta e memorizar os dons e sons que o vento canta, assobiando
em atropelo, quando sobe a serra do doutor, para chegar ao Seridó.
Poeta
Luís Carlos Guimarães: você sucede a Newton, a quem tanto devemos, nós todos
que formávamos uma geração: Zila Mamede, Celso da Silveira, Myriam Coeli, Woden
Madruga, Diógenes da Cunha Lima, Berilo Wanderley, Ney Leandro de Castro, o que
lhe devíamos?Simplesmente, pelos momentos, às vezes raros, em que falava de
suas experiências de leitura, de pintura, de artistas que conhecera e
dialogara, transitando em julgado nossa falta de vivência literária numa Natal
sonolenta, que nos sonegava, muitas vezes, os grandes autores.Nisso, lembro uma
vez, Navarro falando para Paulo de Tarso Correia de Melo, este ainda um menino
e seu vizinho sobre William Faulkner. Pouco tempo depois, Paulo lia Faulkner no
original.
Nossa
amizade, tão antiga, e tão acrescentada, de Diógenes da Cunha Lima, que nasceu
com a ciência infusa, e para quem, muitas vezes, e tantas empurrávamos de graça
um carro seu,Ford e antiquíssimo e preto, nas ladeiras da Rua José de Alencar.
Parece que estou a ouvir Navarro, afirmando para mim, acerca de Ney Leandro:
“Este será um grande poeta”. Ney era um adolescente de 15 anos; e estávamos em
um jantar no restaurante que ficava nos altos do Natal Clube. E de onde se via
a cidade,das Quintas profundas às Rocas melancólicas.
Tanta
vida, meu Poeta, e ainda tanta esperança! Voltaica visão do passado, hoje você
ministro da simplicidade sensível de viver e contemplar –
contemplarialiistradere – como está no dístico dos monges trapistas, que você,
de vez em quando, telefona-me com vontade de conhecê-los em um monastério. Por
eles, o maior deles, pelo menos em nosso século, que foi Thomas Merton,
escreveu em seu diário: “Vivo sob o signo de Jonas. Viajo para meu destino no
ventre de um paradoxo”. Não é paradoxo, é Deus, ó Thomas Merton!
Nesta
noite, no hiper-espaço, comprovado pela física quântica, aqui se ocupa com
personagens, para todos nós inesquecíveis; Jorge Fernandes, Antônio Pinto de
Medeiros, Zila Mamede, Berilo Wanderley, Veríssimo de Melo (ali, de pé no
estrado e na estrada) Luís Rabelo, Walflan de Queiroz, Myriam Coeli, Américo de
Oliveira Costa, o mestre querido, e tantos e quantos já se foram para a Outra
Margem. Quando de repente, entra Cascudo, cabeleira leonina, olhos trespassados
de azul, caminhando como verdadeiro protonatário apostólico, de casemira
inglesa e colete branco. Como o vi numa tarde sedenta da Ribeira, e passando
diante desta mesa, exclama: “Digo que todos os poetas estão abençoados”. Que
quer você mais do que isso, querido irmãos? Só se for Berilo Wanderley
solfejando para nós, como fez tantas vezes, o “Carinhoso”, de Pixinguinha.
PS.
Discurso de saudação proferido na posse de L.C.G. na Academia
Norte-rio-grandense de Letras.
Transcrito do Jornal ‘O GALO’ – Julho/2001.
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