15 de março de 2023

Natal, Amante

 




                                             
                                                                    Dorian Jorge Freire


Estou chegando a uma idade (ou já desembarquei?) na qual a evocação de antigas e perdidas amantes, matérias de memória ou de sonho, não incomoda sequer minha mulher. O mais que a recordação provoca é um muxoxo. De condescendência. Ou ceticismo.
Pois vá a confissão em boca de cena: Natal foi minha amante desde eu menino. Nem conhecia os calores femininos e ela já era meu segredo. Tudo que era, tudo que possuía, seus mistérios, e dengues, e faceirices, e simulações – eu conhecia no silêncio de minhas caladas tentações e posses. Natal era meu alumbramento. E não se diga que o menino de então não conhecia cidade maior do que a sua Mossoró. Não, não. Já vivera em Fortaleza. Natal era uma eleição, uma opção. Uma tendência.
E pela vida afora, daquela infância perdida a este velhice mais perdida ainda, ela tem sido minha obsessão constante, fiel. Livre ela aos ventos que vêm do mar e eu preso aos ciúmes, ternuras. Às coisas mais secretas e inefáveis do querer-bem.
Natal mudou, aleluia. Não mudou minha paixão pela cidade que se multiplica sem perder sua unidade. Cresce biblicamente em graça e em sabedoria: ela cresce e eu diminuo. O progresso não a avilta. Maior e quase cosmopolita, ela não é a “vaca colorida” ou “vício de pedra”, como das grandes cidades maldizia Nietzsche pela boca de fogo de Zaratustra.
Natal cresce sem perder a identidade, sem esfarelar seus miolos, sem soltar seu tutano, mantidos os escondidos que fazem a glória das autênticas cidades dos homens.
A minha primeira Natal foi a dos anos 40. Haviam rastros ainda de americanos que não conseguiram ordinarizá-la. Lá está a Ribeira, ali o Alecrim, Petrópolis, as Rocas proletárias, Tirol de Enéas Reis e Xixico Couto. Bondes, mangueiras, sombras e iluminações. Sobradões. Sítios. Solares dos últimos coronéis ainda não devastados pela cupidez da especulação capitalista, materialista. Foi a Natal de minha gente: Enéas Reis, Xixico Couto, Eutiquiano, tia Justa, tio Manuelzinho, o mulato Chagas, matinês do Rex, barracas na pracinha (cadê Ivone, meu bem?), Tirol terminando aos pés do Aero Clube, Redinha quase exclusivamente.Natal do “Jornal de Natal” Café, Sandoval, Calafange, Floriano, Dom Marcolino, Zé Varela. (Como eram gostosos os cigarros daqueles tempos, fumados às escondidas, comprados a retalho, Selma, Astória, Mistura Fina, Continental. Iguais, só as tentações não realizadas de ousar as noites longas nas ruelas proibidas de uma Ribeira que só despertava às desoras).
Natal dos anos 50. Cheguei, adolescente, trazido por Djalma Maranhão. Pensão Comercial da Rua Coronel Bonifácio, hoje Câmara Cascudo. Cuidados de dona Rosa, atenções de Morais. A aventura macha de morar sozinho. Trabalhava no “Diário de Natal” de Edilson Varela e admirava, de longe, respeito reverencial, justo respeito, Edgar Barbosa, Américo de Oliveira Costa, Danilo. Tempo de convivência diária com Leonardo Bezerra, Guaracy Queiroz de Oliveira, João Batista Pinto, William Cobbett, Araken Irerê Pinto, Aderbal Morelly, Ticiano Duarte, Luiz Maranhão Filho, Antônio Pinto de Medeiros, Ferdinando Couto.
Era a descoberta da inteligência, o orgulho de confraternizar com a melhor juventude da cidade, as noites ouvindo preleções de Leonardo, as madrugadas, sozinho, no quarto mínimo da pensão humilde, querendo descobrir, em velhos e ensebados manuais clandestinos, o que era mais-valia e se toda propriedade é um roubo.
Natal jovem, irreverente, carnavalesca, poética, política, subversiva, diurna e vespertina a preparar longas noites de vigílias. Bares. Sorveteria Cruzeiro. Taboleiro da Baiana. A cervejinha na Pensão Ideal. As putas que nos passavam gonorreia e humildade.
Tudo era deslumbramento. Newton Navarro, Dorian Gray, Meira Pires, Manuel Rodrigues de Melo, Esmeraldo, Luiz Maria Alves, a redescoberta de Jorge Fernandes, José Gonçalves de Medeiros. A pungência inata de Gilberto Avelino. Cascudo já era Cascudo. Monumento. Mito. Primeiro – por justiça justa justíssima. Primeiro Cascudo. Depois os outros.
Depois Natal nos anos ásperos de 60. A mesma humanidade. Escorrendo, quente, espumoso, o leite gordo da ternura humana. A solidariedade instantânea de Woden, radical até na generosidade. O encontro com Maria Emília-Berilo, que marcou tanto e tanto enriqueceu minha vida. Sanderson, Luiz Carlos, Rubens Lemos, Antônio Melo, o reencontro com a competência de João Neto, Luiz Maria Alves, Celso, Myriam Coeli (Maria do Céu), Zila. Amei tanto Natal dos anos 60 que lhe dei, de nascença, minha Raíssa. Natal – 60 prolongava a Natal de todas as décadas, de tal forma fascinante que adotei. Mossoró, Aracati, São Paulo, Ouro Preto, Salvador, São Luís.
A derradeira Natal foi recente. Eu já alcançado por um enfarte do miocárdio e uma isquemia cerebral. A cidade maior sem perder sua estatura. Fiel aos seus valores e desvalores, enriquecida por outras fortunas. Que Natal se renova sem cirurgia plástica e envelhece alegre com o segredo guardado da eterna juventude.
Os Alves – Aluízio, Agnelo, Gobat. Ednólia e Geraldo Melo, as noites estiradas na conversa amena. João Ururahy, Lalinha e Genibaldo, Zélia Freire, Teresa, Romeu Aranha, Nídia Mesquita, Marta e Milson, Roberto Varela, Serejo, Albimar, Paulo Tarcísio, Paulo Macedo, Odilon, Sarinho, Américo, Mário Moacir Porto, Veríssimo, o admirável Vivi, Elenir Fonseca, Haroldo e Selma, Nei Marinho, Nei Leandro, Tarcísio Gurgel, Leopoldo Nelson, Franklin Jorge, Eulício, Socorro Trindad, Gualberto, Marcos Aurélio, Rejane, Mariza. Próximo ou distante, presente, Nilo Pereira, o mestre, mais doce do que todo Ceará-Mirim.
Multidão. Diante da multidão, Jesus teve pena, Diante da humana gente de Natal, eu me ufano de meu país. Afonso Celso e eu. Porque se cada pessoa é ela e sua circunstância, as circunstâncias natalense têm grandezas. Paris seria melhor sem os parisienses? Natal carece de seu povo. Completa-se com ele. O mar, os morros, as dunas, o verde, os botecos, freges e forrós, os grande e os miúdos, becos e avenidas, calçadões e vielas, povo. Eis Natal humana. Que deve parar de crescer se não quiser desafiar o bom senso do meio termo.
Depois de deixar Natal pela última vez, fisgado pôr outra isquemia cerebral, aviso da delicadeza da Providência, passei a visita-la às pressas, às escondidas quase, o tempo necessário para beijar os netos e por a benção nos filhos. Com medo, quem sabe? Do visgo que Natal tem, o mesmo visgo de Mossoró e São Paulo, o perigo de não querer voltar, achar que pode se dar ao luxo da capital o interiorano matuto, mais certo no silêncio de seu caritó, entre livros, os olhos voltados para o pé de cajarana plantado por sua Mãe, faz oitenta anos.
Ela, minha mãe, Dolores Couto, quando falava de sua Escola Doméstica,com Jacira, Alda, Emília, Maria de Lourdes, Ilnah, Elza, Anatilde e Ricardina, dizia – “no tempo em quer eu era gente...” No tempo em que eu era gente, podia viver Natal. Hoje, não. Há muitas cruzes erguendo seus braços na procura da eternidade. Natal também passou a ser para mim um campo santo. Chão sagrado. Repouso de guerreiros. Os idos. Os idos.
Natal é isso. Só? Mais. Muito indefinível nos seus contrastes, pecados e santidade, risos e lágrimas, passado e futuro. A luz ardente dos refletores. A brisa fria de suas madrugada obscuras e insones.
Recife e São Luís lembrariam Veneza. Recife, para o Mestre Alceu, tem o cheiro de Florença. O que me lembrou Natal lá fora, nas Oropas agora dos impossíveis?
A luminosidade de Roma sua espontaneidade, sua abertura, até sua molecagem gostosa. Apimentada. Com pimenta malagueta.
Se eu não tivesse encontro marcado para daqui a pouquinho com meus pais e avós, juro que esperaria o fim do sonho em Natal. Tia Carmem, tio Enéas, Eider, Eutiquiano, Berilo, Myriam e Zila, Barca e Antônio Pinto, contariam histórias. Cascudinho as decifraria todas e lhes daria as origens.
Se não blasfemo – Deus me livre e guarde – que céu teria mais gosto de céu?

Dorian Jorge Freire (falecido), escritor e jornalista. Transcrito do jornal “O Galo” – dezembro/89.

10 de janeiro de 2023

Natal que Manoel Dantas não viu

  


 


                                    Baldo e Avenida Rio Branco no final da década de 50


A cidade do Natal, no ano de 1959, estava longe de ser a “metrópole do Oriente da América” que Manoel Dantas (1867-1924) previu na sua histórica conferência Natal daqui a cinqüenta anos, proferida no salão nobre do palácio do Governo do Estado, no dia 21 de março de 1909, e que segundo o poeta Jota Medeiros constitui o marco do Futurismo, antecedendo o manifesto de Marinetti.
Com uma população de aproximadamente 167.202 habitantes distribuídos em doze bairros – Santos Reis, Rocas, Ribeira, Cidade Alta, Petrópolis, Tirol, Alecrim, Lagoa Seca, Lagoa Nova, Dix-sept Rosado, Quintas e Mãe Luiza – Natal apresentava insuficiência urbanística caracterizada pela modéstia das edificações, precariedade da malha viária, transportes coletivos obsoletos e, sobretudo, ausência de indústrias.
A administração do município, que tinha 489 logradouros públicos (avenidas, ruas, travessas, praças e vilas), era coordenada por três secretarias (Finanças, Negócios Internos e Jurídicos, Viação e Obras) reunindo vinte e seis repartições. Tinha o suporte da Companhia Força e Luz Nordeste do Brasil, Serviço de Água e Esgoto de Natal, Serviço de Limpeza Pública e o Serviço de Transportes Coletivos que supervisionava as doze linhas de auto-ônibus (Rocas/Matadouro; Jaguarari; Petrópolis/Grande Ponto; Tirol/Grande Ponto; Circular; Lagoa Nova/Alecrim; Avenida 4; Avenida 10; Rocas/Igapó; Grande Ponto/Praça Augusto Leite; Circular via Alexandrino de Alencar; Natal/Parnamirim) e treze linhas de auto-lotação e micro-ônibus, considerados coletivos de primeira categoria, atendendo no horário das 5 às 22 horas com pequenas modificações no percurso realizado pelos auto-ônibus que funcionavam das 5 às 24 horas.
A educação era ministrada por oito estabelecimentos de ensino superior (Escola de Engenharia, Escola de Serviço Social, Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Atuarias, Faculdade de Direito, Faculdade de Farmácia e Odontologia, Faculdade de Filosofia, Faculdade de Medicina, Instituto Filosófico São João Bosco); quatorze cursos secundários (Colégio Imaculada Conceição, Colégio N. Senhora das Neves, Colégio Santo Antônio, Escola Doméstica, Escola Industrial, Escola Normal, Escola Técnica de Comércio Alberto Maranhão, Escola Técnica de Comércio de Natal, Escola Técnica Visconde de Cairu, Ginásio São Luiz, Ginásio 7 de Setembro, Instituto de Educação do Rio Grande do Norte, Seminário e Instituto Batista Bereiano, Seminário Menor de São Pedro); cento e sessenta escolas mantidos pelo Governo do Estado e noventa e oito “escolinhas” mantidas pela Prefeitura, além de vinte e um cursos particulares.
O sistema de saúde tinha o atendimento de trinta e seis estabelecimentos (hospitais, casas de saúde e ambulatórios) sendo o principal deles o Hospital Miguel Couto, atual Hospital Universitário Onofre Lopes.
O cemitério do Alecrim continuava a ser o nosso único Campo Santo, “onde o cipreste chora noite e dia a música dorida de saudades pungentes”.
A inexistência de supermercado forçava a população a fazer suas compras nos quatro mercados (Cidade Alta, Alecrim, Quintas e Ribeira) e nas mercearias e bodegas.
O lazer era feito nos vinte e cinco clubes recreativos existentes, no Teatro Alberto Maranhão, e nos cinemas, Rex, Rio Grande, Nordeste, São Luiz, São Pedro, São Sebastião, São João e Potengi, além do passeio de barco a motor e a vela até a praia da Redinha, com saída do porto flutuante do Canto do Mangue.
Os jornais “A República”, “Diário de Natal”, “Jornal de Natal”, “O Poti”, “Tribuna do Norte”,  e as estações de rádio, Cabugi, Nordeste, Poti e Emissora de Educação Rural, disputavam os leitores e a audiência da população que tinha poucos divertimentos.
Afora os equipamentos e serviços citados existiam em Natal, “no ano da Graça de 1959”, dez bancos, três bibliotecas, nove cartórios, seis consulados, doze cooperativas, dez agências de correios e telégrafos, treze hotéis, seis pensões, quarenta e sete templos católicos, vinte templos protestantes, dezessete centros espíritas, quatro lojas maçônicas, oito “praças” de automóveis de aluguel, trinta e um sindicatos, nove agências de transportes fluvial (Natal/Redinha), vinte e uma agências de transportes rodoviário e a Rede Ferroviária do Nordeste, que fazia o tráfego com municípios dos Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, além da cidade do Recife.

João Gothardo Dantas Emerenciano

Fontes: Natal daqui a cinqüenta anos, de Manoel Dantas, Fundação José Augusto/Sebo Vermelho, Natal 1996; Guia da Cidade do Natal de J.A. Negromonte e Etelvino Vera Cruz.

12 de agosto de 2022

Imprensa feminina no Rio Grande do Norte

 


Constância Lima Duarte e Diva Cunha Pereira de Macêdo

Em 1993, quando revirávamos bibliotecas e arquivos em busca dos traços mais remotos da produção literária feminina do Estado, fomos surpreendidas com notícias da existência de inúmeros jornais e revistas dirigidas e compostas exclusivamente por mulheres. Essas publicações evidentemente pretendiam legitimar uma produção intelectual, na medida em que se colocavam enquanto um espaço legítimo de veiculação de trabalhos literários.
Assim, de uma pesquisa em andamento, uma outra nasceu. Buscávamos o corpus da literatura de autoria feminina no Rio Grande do Norte, e encontramos o meio utilizado pelas autoras para a divulgação de seus escritos. Aos poucos, juntando informações como quem junta um quebra-cabeça, reunimos títulos, datas e alguns nomes das que primeiro por aqui tentavam romper barreias sociais e ensaiavam investidas no espaço público.
Anteriormente tínhamos encontrado a notícia de um jornal chamado Primavera, que havia sido publicado por um certo senhor Custódio L. R. d”A em Açu, no ano de 1875, e que se dirigia “às caras e inestimáveis leitoras”. Os jornais e revistas dirigidos por (e para) mulheres apenas começam a surgir no início do século, como A Esperança, que circulou entre os anos de 1903 e 1908, em Ceará - Mirim, e que surpreende por ter sido todo ele manuscrito! O fato de não ter acesso às tipografias não impediu que Dolores Cavalcanti e Isaura Carrilho se investissem do papel de redatores registrassem, numa caligrafia caprichada, as veleidades literárias das jovens de seu tempo. Aquelas moças provavelmente estavam impelidas pela esperança de um dia também elas serem reconhecidas enquanto escritoras...
Anos depois, em 1913 em Macau, surgiu (devidamente impresso) a Folha Nova, dirigido inicialmente pro Alexandrina Chaves e depois por Maria Emília e Joana G. Sampaio. Eram suas colaboradoras Leonor Posada e Olda e Dulce Avelino, conhecidas poetisas de seu tempo. Em Açu, de 1917 a 1919, circulou O Alphabeto sob a direção de Maria Antônia de Morais, com a colaboração de Cecília Cândida Silva, Maria Leitão e América de Queiroz e Palmyra Wanderley. Em Macau encontramos também notícias do jornal A Salinésia, de 1926, criado por um grupo de jovens e que era apresentado oralmente (!) no Teatro Moderno. Em Caicó, neste mesmo ano de 1926 circulou pela primeira vez o Jornal das Moças, dirigido por Georgina Pires e Dolores Diniz. As colaboradoras assinavam seus textos sob os pseudônimos de Marinetti, Potiguara, Violeta, Flor de Liz, Helenita, Sertaneja, entre outros. E em Currais Novos existiu O Galvanópolis, de 1931 q 1932, sob a direção de Maria do Céu Pereira.
Em Natal, a primeira iniciativa parece ter sido Via-Láctea,  idealizada e dirigida por Palmyra e Carolina Wanderley, que circulou durante os anos de 1914 e 1915. Além dele encontramos ainda em Natal os jornais Sursum, de 1937, O Potiguar, de 1939, entre outros.
Vejamos esta publicação intitulada Via-Láctea. Após tê-la procurado nas principais bibliotecas públicas e particulares de Natal e do interior, sem sucesso, fomos encontrá-la na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em meio a outros periódicos de mesmo nome, de locais e épocas diferentes. Ali estava, em nossas mãos, a mesma Via-Láctae de Palmyra e Carolina Wanderley que numa estrelada noite de 1914 havia surgido nos céus potiguares. Eram apenas oito números – de outubro de 1914 a junho de 195 – mas o suficiente para testemunhar a iniciativa daquelas moças de também participar do espaço público.
Como no oitavo número uma das redatoras reclamava da pequena participação das colaboradas, julgamos que a publicação tivesse terminado aí. Mas pesquisas posteriores, principalmente em A República, revelaram que mais alguns números – pelo menos uns quatro ou cinco – foram publicados de Via-Lácea. Aliás, encontramos em A República referências a praticamente todos os números do jornal. Cada novo lançamento era noticiado, sendo que algumas vezes com veementes elogios à coragem de suas autoras e à qualidade o Material impresso.
Mas nem tudo eram flores para as jovens redatoras. No mês que comemoravam um ano da existência do jornal, por exemplo, encontra-se o comentário de um jornalista que nos permite perceber com nitidez a resistência que enfrentaram, as críticas e uma certa descrença no trabalho que realizavam. O autor da nota confessa abertamente sua surpresa pelo fato de a Via-Láctea ter conseguido sobreviver tanto tempo, nestes termos:
A Via-Láctea festejou ontem o seu primeiro aniversario. Não nos queriam mal as redatoras da simpática revista por lhes dizer que nunca acreditamos na realização deste milagre. Sempre pensamos que uma revista de moças, redigida exclusivamente por moças, terá em nossa terra a prematura existência das rosas Não havia nesse pressuposto sombra de desconfiança na inteligência e boa vontade as colegas que revelaram, dês da publicação do primeiro número da Via-Láctea, qualidades à altura da espinhosa iniciativa. O nosso receio provinha do ambiente intelectual indígena, dessa indiferença de natal para manifestações artísticas, tidas como desnecessárias à vida da cidade. (A República, 26/10/1915)
Esta confissão de pouca fé na sobrevivência da revista, devido principalmente ao fato de se tratar de uma publicação feita por mulheres, encontra-se também em outros artigos. Da mesma forma, a confusão entre as autoridades e o seu trabalho através do emprego sistemático de expressões concernentes às qualidades esperadas ou desejadas para s moças. Assim, para a maioria dos jornalistas, a Via-Láctea era sempre “mimosa” “encantadora” e “gentil”, numa flagrante feminização do periódico que lutava par se impor enquanto trabalho sério, e que se propunha lutar pelo aperfeiçoamento intelectual da mulher potiguar.
O primeiro grupo de colaboradoras foi constituído por oito moças da melhor sociedade  letrada de Natal, como Palmyra e Carolina Wanderley, Stella Gonçalves, Maria da Penha, Joanita Gurgel, anilda Vieira, Dulce Avelino e Cordélia Sílvia e Sinhazinha Wanderley. A forma como se dava a colaboração de Cada uma com certeza era diferenciada, pois é comum encontrar um número maior de textos assinados por algumas no mesmo periódico, enquanto outras aparecem apenas com um artigo ou poema. E logo no segundo número Palmyra e Carolina Wanderley assumem a coordenação geral dos trabalhos.
Um dos graves problemas que uma pesquisa como esta costuma enfrentar è justamente a identificação dos pseudônimos, que terminam por funcionar como verdadeiras máscaras que se multiplicavam sempre em touros e novos nomes. O uso do pseudônimo, aliás, foi um artifício muito utilizado pelas mulheres nos séculos passados, e mesmo nas primeiras décadas deste, como forma de se proteger e de preservar os familiares da exposição pública e da crítica. Adentrar pelo campo literário (ou o jornalístico) naqueles tempos era uma atitude decididamente audaciosa para qualquer mulher, por mais competente ou talentosa que fosse. E no Rio Grande do Norte não era diferente.
Assim, apesar de a Via-Láctea trazer na primeira página os nomes de suas autoras, os textos estão quase sempre assinados por outros nomes, como Fanette, Mércia, Marluce, Hilda, Nídia, Zanze, Myriam, Ida Silvestre, Ângela Marialva, Violante do Céu, Jandira, etc. etc, totalizando cerca de vinte e cinco pseudônimos. Quanto ao teor dos escritos o subtítulo “Religião, Arte, Ciências e Letras” aponta para seu conteúdo.  Predominam poemas, contos e crônicas, em meio a comentários obre arte, descobertas científicas e matérias sobre o papel da educação na formação das moças.
Encontra-se nas páginas da Via-Láctea, inclusive, uma polêmica entre duas colaboradoras Acerca da educação que devia ser ministrada à mulher, que bem deve revelar as opiniões conflitantes sobre o tema que circulavam na época. Uma defenda educação voltada para s funções domésticas; a outra por acreditar na emancipação feminina através da educação, exige uma educação mais consistente que permitisse à jovem competir com o rapaz no campo de trabalho. Aliás, esta discussão devia estar na ordem do dia pois, acabava de ser inaugurada na cidade, com muita pompa e circunstância, a Escola Doméstica, cujos diretores alardeavam que sua proposta educacional representava a Última palavra na Europa em educação de meninas...
Em matérias de jornais, um cronista que costumava assinar “Jacynto” (e que não era outro senão Eloy de Souza, irmão de Henrique Castriciano, o fundador da Escola Doméstica) refere-se de modo desabonador ao Via-Láctea  e defende a função social da mulher preconizada pela nova escola. Não deixa de ser bem significativo, comparar o nome do jornal que veiculava as idéias da Escola Doméstica. “O Lar”, com ao da revista “Via-Láctea”: enquanto um refletia nitidamente os limites domésticos de seu horizonte de atuação, outro adotava um título que bem pode ser considerado a prova contundente de que maiores e bem mais elevados era os seus ideais.
Estas questões, aqui aprestadas tão ligeiramente, refletem apenas nosso desejo de incentivar outros pesquisadores para o estudo da participação das mulheres potiguares na história intelectual do Estado. Se queremos realmente conhecer o difícil trajeto percorrido por nossas antepassadas na busca de seus direitos e na conquista de seus espaços, será preciso pesquisar em antigos jornais e revistas. Lá com certeza ainda encontram-se ainda hoje o eco de suas vozes.

Transcrito do Jornal Cultural “O Galo” de junho de 1997.


24 de junho de 2022

O nordeste dos violeiros e repentistas

 

Talvez a figura mais popular do Nordeste brasileiro seja o cantador, o violeiro. Por muitos anos, o repente serviu como o único meio de comunicação em terras áridas e inóspitas. Fazia as vezes de rádio, de tevê, de revistas. E não era só isso: as notícias vinham em forma de versos, rimados, ritmados, poéticos. Ivanildo Vilanova é hoje, reconhecidamente, o maior repentista brasileiro. O mais respeitado de todos. Mora em Campina Grande, Paraíba, capital dos repentistas, dos cantadores, a três horas de João Pessoa. Lá reúnem alguns dos maiores violeiros do Brasil.
            Eles se espalham por todo o Nordeste, de ônibus, de carro, a cavalo - sempre para uma cantoria num centro comercial ou numa distante fazenda. Ivanildo, e todos os outros violeiros, recebem cartas-convites, telefones, telegramas, todos convocando, ou propondo, alguma noitada de cantoria. Quem envia são os chamados "apologistas", espécie de animadores e entusiastas da poesia popular. O trabalho de Ivanildo Vilanova se destaca entre as centenas de violeiros pela sutileza de seus versos, pela síntese de seus improvisos e pela variedade temática. Pertence ao grupo de cantadores que são capazes de improvisar, com conhecimento de causa, sobre qualquer tema, da História Universal à Química, da política as artes plásticas – uma raridade, de fato.
            Todas as tardes, os violeiros se reúnem no Drink's Bar, boteco localizado em frente à Rádio Borborema, em Campina Grande. No bar, recebem telefonemas, recados, são convidados para cantorias, trocam impressões sobre os melhores pontos, formam duplas para uma viagem repentina, e no final da tarde participam do programa diário na Rádio Borborema. É um quadro ouvido em toda a região: comunica as cantorias do dia, os locais, as duplas, informa os violeiros que estão com a agenda livre e, de quebra, coloca ao vivo alguns repentes. O repentista Ivanildo Vila Nova diz que  em 1974 ele e outros amigos  fizeram um congresso de violeiros, reunindo os melhores repentistas do Nordeste.
            Até então, os congressos que aconteciam não chegavam a chamar a atenção. “Conseguimos então mostrar ao público inclusive cantadores ótimos, e totalmente desconhecidos. Nos anos seguintes, o congresso passou não só a revelar novos talentos, como a mostrar a criação de novos gêneros: como o Brasil Caboclo, por exemplo. O O violeiro é de suma importância para o Nordeste. Ele é o principal veículo, a principal manifestação de folclore, como querem dizer. O repente tem tudo: boa poesia, ritmo, rima, bom humor, romantismo, tudo.  Desafio é logo o primeiro verso dum violeiro para o outro, quando o convoca para a cantoria. O desafio é somente um dos muitos gêneros do repente. Repentista é coisa herdada. Não se aprende, é coisa de hereditariedade, herança.
            As apropriações indébitas, das canções de violeiros,  Ivanildo Vila Nova explica este fato .  Ele diz que  não é só pessoal da MPB de elite, mas todos, até do bolerão que plageia  as musicas dos repentistas, como por exemplo  o Reginaldo Rossi, que copiou um mourão todinho e não deu crédito. O Fagner pegou a letra duma canção de fogo e nada disse. Os versos: "Eu sou igual ao deserto/aonde ninguém quer viver/mais triste do que eu/ninguém quer ser." Estes versos estão na página 33 duma canção de fogo. Ele, o Fagner, roubou tanto o Patativa do Assaré, que teve de aproveitar o homem.Pegou aqueles versos - "eu venho desde menino/desde muito pequenininho/cumprindo belo destino/eu nasci pra ser vaqueiro - que são do Patativa.
            Gilberto Gil, idem. Pegou os versos de Domingos da Fonseca - "Falar de nobreza e cor/é um grande orgulho seu/morra eu e morra o pobre/se enterra o rico e eu/que depois ninguém descobre/o pó do rico do meu." Isso é de Domingos da Fonseca. E aconteceu agora com Zé Ramalho. Essa música que a Amelinha canta - "Mulher nova e carinhosa..." - é de Otacílio Batista. Não, de Otacílio e Zé Ramalho. Zé fez apenas o arranjo, não a melodia. A música já existia - eu mesmo já a gravei duas vezes. Não acho que Otacílio devesse dar a parceria. Ora, quer gravar, grave. Isso me deixa revoltado. E muito.


(Fonte. Miguel de Almeida - Banco de Dados da Folha de São Paulo).


6 de maio de 2022

Padre Luiz Monte



Jurandyr Navarro

As individualidades animadas de propósitos generosos são tendentes a abraçar causas elevadas. O estudo da Ciência é uma das preocupações mais altas do espírito humano. No seu livro “Futuro da Ciência”, Ernesto Renan a considera uma Religião.E o estado de espírito religioso é um êxtase, uma contemplação, um entusiasmo recolhido, na exclamação de Amiel.
Encontrou este estado de espírito? rejubile-se!
Num instante de inspiração afirmou Agostinho Thierry: “Há no mundo algo mais do que as forças materiais, mais que a fortuna, mais que a própria saúde: é o devotamento à Ciência”.
Tal devotamento por estudo tão desafiador foi uma das belas causas abraçadas pelo Padre Luiz Monte. Dentre outras ocupações de caráter religioso e de homem de cultura, devotou tempo precioso da sua existência a investigação científica.
Não somente teórico esse seu empenho, foi ele, também, um homem da praxis. A sua curiosidade científica chegou ao ponto dele próprio montar um pequeno laboratório no Seminário de “São Pedro”, onde fez muitas experiências, inclusive, análise de minérios. Foi ele o detector da shelita na região do Seridó do nosso Estado. Adquiriu uma acuidade toda especial em detectar essas pedras, que o fazia, para algumas delas, somente atra­vés das suas propriedades organoléticas.
O seu saber abarcava outros conhecimentos científicos por ele divulgados nos livros que escreveu - "Fundamentos Biológicos da Castidade" (“Fisiologia da Castidade”), “Biolo­gia” e a obra sobre o Espiritismo, ainda inédita. Muitos escritos seus foram publicados pela imprensa.
A Psicologia e a Psicanálise foram investigação precursora entre nós, da sua inten­sa curiosidade científica.
A Teoria da Relatividade, do emérito sábio germânico, mereceu dele estudo exausti­vo, discordando em certos pontos.
O seu pioneirismo, entre nós, alcançou, também, a Biotipologia, a Sexologia, a Embriologia e a Endocrinologia.
Interessantes os seus trabalhos espelhados pelas páginas da nossa imprensa, tra­tando assuntos os mais diversos, hoje encontradiços na Antologia que recebeu o seu nome. Publicou textos sobre Astronomia, Antropologia, Endocrinologia, Fisiologia, Psiquia­tria, Biologia, Química, Física, Matemática, Botânica, Geologia, Paleontologia e outros.
Na década de 40, do século XX, recebeu o Padre Monte elogio do então conceituado médico psiquiatra Dr.João da Costa Machado, que dissera numa de suas alocuções, ouvi­da pela Professora Albertina Guilherme, nos termos: “- O padre Monte está em dia com a Ciência atual.
Lembra a opinião do escritor Manoel Onofre Júnior, segundo a qual “Padre Monte sabia tudo, ou quase tudo...”
O seu devotamento por causa tão nobre o fez um dos arquitetos do belo adificio da ciência experimental do Rio Grande do Norte.
Consagrou grande parte da sua existência, embora curta, pois viveu somente 39 (trinta e nove) anos, a este ramo cientifico, onde tão intensamente brilhou a sua inteligência privilegiada. Interessou-se, outrossim, por outros ângulos da Cultura.
Discorrendo sobre a história da Medicina! assim se expressou:
“A Medicina antes de ser iátrica, foi primeiramente heráltica. Foi ritual e mágica antes de ser ciência positiva e experimental. As escrituras cuneiforme e hieroglífica trouxeram até nós a origem sacerdotal da medicina”.
O Padre Luiz Monte foi o primeiro vulto eminente da Cultura do Rio Grande do Norte aclamado sábio. Os seus estudos transcendentes devassaram múltiplas ciências.
A sua extraordinária capacidade de assimilação fez com que acumulasse imenso cabedal de cultura com apenas 39 (trinta e nove) anos de vida, quando muitos outros não alcançaram esse limite mesmo vivendo a idade octagenária.
Por proposta do Acadêmico-fundador Vingt-un Rosado, o seu nome figura como Patrono de uma das cadeiras da Academia de Ciências do Rio Grande do Norte, tendo o seu irmão médico e emérito pesquisador de Biologia Marinha, Sebastião Monte, como o seu primeiro ocupante.
A respeito da sua obra “Fundamentos Biológicos da Castidade”, disse o seu biógrafo Cônego Jorge O'Grady, numa das páginas do livro “Verdade Vida”:
Fundamentos Biológicos da Castidade” responde a Ribbing, médico e cientista sue­co que, à página 167 da sua obra "Higiene Sexual e suas consequências Morais", (pub. em Paris, F. Ancan, Ed, 1901) pergunta: "Será possível ao Clero examinar essa questão (fisio­logia da castidade) em toda sua extensão?". Ejulgando que "a instrução e a educação dos sacerdotes não comportam conhecimentos de fisiologia", reclama para a classe médica a exclusiva orientação da mocidade, nesse particular. Responde o Pe. Monte, ainda, a todos os detratores da castidade, pulverizando os velhos e arraigados preconceitos de que a continência atenta contra a natureza e é prejudicial ao corpo e à alma".
Do livro "Fundamentos Biológicos da Castidade", disse o Dr.Henrique Tanner de Abreu, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, seu Prefaciador:
"(...) A extensa e seleta bibliografia e as citações mostram bem a louvável preocupa­ção de senhorear o assunto apropriando-se das noções mais importantes e de interesse para a matéria a desenvolver. Nela figuram tratados de anatomia, histologia, fisiologia, endocrinologia, psiquiatria, psicopatologia sexual etc, além de muitas contribuições especializadas. Apercebido de todos esses abundantes recursos o talentoso autor soube criteriosamente aproveitá-los no esmiuçar, esclarecer e comprovar teses da maior rele­vância.
Depois de apresentar os fundamentos biológicos da castidade e de demonstrar a influência trófica e a possibilidade fisiológica da continência o escritor culto e ponderado dá notícia, em capítulos sucessivos, das mais recentes conquistas científicas e as aprecia no que entende com o papel da castidade em suas relações com a eugenia, a alienação mental e a delinquência. (...)
A propósito desse devotamento à Ciência, disse João Batista Dumas:
"Ah: se fosse possível que eu viesse a perder a avidez pelo saber e pela investigaçâo,a sede pela ciência que pomada se apagará, a vida não me ofereceria mais nenhuma consolação. Que deleites acompanham o exercício das faculdades intelectuais: Diz-se do saber o que se diz do poder: é o banquete dos deuses".
O Padre Luiz Monte foi Professor de Matemática e de Latim no Atheneu Norte-Rio-Grandense, no Colégio Marista e da Imaculada Conceição. Na docência do Seminário lecionou outras disciplinas.
Era um professor que falava em pátria, na família e da religião, argumentando o seu valor de grandeza moral e espiritual. O que muitos hoje têm vergonha e covardia de tratartemas tão importantes para a mocidade, sobre a educação e a cidadania. Dai, o surgimen­to dos chamados párias sociais: alienados da prática social saudável, formando para a vida uma juventude destituída de idealismo e sem orientação pautada na moral religiosa, atrativa do sublime e do belo.
As suas aulas transmitiam e refletiam reverberações de luz da moral católica. Ja­mais dissociou a ciência da religião. Os grandes sábios assim procediam. Cito apenas um deles: Einstein: “- Não posso concordar um cientista autêntico que não tenha uma fé pro­funda. A situação pode se resumir numa imagem: a ciência sem religião é manca”.
O imediatismo da vida atual, a velocidade do tempo, as ocupações supérfluas do modismo impedem que a inteligência se debruce, em escritos considerados eruditos. E assim os grandes nomes da nossa Ciência vão sendo esquecidos, dando lugar a outros de lavra mais superficial. Tudo bem, isso é o natural das coisas humanas.
Todavia, a memória dos grandes homens não deve ser relegada a segundo plano, porque eles foram os guieiros, os lideres do pensamento, e portanto, eternos.
Não se deixe que o comodismo urda contra memória tão sagrada a sinistra "conspi­ração do silêncio", de que falava Émile Faguet.
Inobstante a tudo isso, os grandes nomes, qual "coluna de fogo", continuarão a bri­lhar, intensamente, nas noites escuras do deserto do comodismo, da indiferença e da insensibilidade cultural.
Até o seu derradeiro dia, o Padre Luiz Monte permaneceu no seu trabalho intelectual à luz da Fé, chamada “senhora da verdade”. E os homens de fé na vanguarda sempre estiveram.