12 de setembro de 2023

Prestes em Natal

  

                                                                                                   Luís Carlos Prestes

Por Franklin Jorge 

Pontual e de uma irrepreensível cortesia, Luís Carlos Prestes recebe-nos a mim e ao escritor Jarbas Martins às 6h30 da manhã, no saguão do hotel Samburá, onde está hospedado, no Centro da cidade.
Recém-saído do banho, ainda exalando um agradável cheiro de sabonete, o cabelo bem cortado, faz-se acompanhar do médico Salomão Gurgel, um norte-rio-grandense que ele conheceu em Moscou. Prestes, homem discreto, parece de alguma forma cansado, talvez, por tanta exposição na mídia que o persegue como se fora um animal pré-histórico. Veste-se com elegância e distinção.
Madrugador desde menino, reporta-se à  exaustiva homenagem que lhe foi prestada na Assembléia Legislativa do Estado, ontem à noite, em sessão que se prolongou demasiadamente além do previsto.
No Brasil, nada funciona, afirma numa voz calma, segura e polida. Até as homenagens excedem os limites da normalidade. Dormi pouco, mas após um banho frio, sinto-me renovado e pronto para responder aos seus questionamentos. Pergunte o que quiser.
Prestes tem 89 anos. De estatura abaixo da média, nem gordo nem magro, conduz a conversa com desenvoltura. Então os senhores são jornalistas. Pois saibam que os jornais e as rádios continuam sistematicamente a censurar minhas palavras. Geralmente, omitem minhas idéias quando não distorcem minhas palavras. Mesmo assim, continuo falando, pois dependo da palavra para ajudar na transformação de uma sociedade estigmatizada pela miséria e instruída pela corrupção. A palavra é a arma de que disponho e estou sempre a usá-la da melhor forma contra os políticos individualistas que oneram o país.
A imprensa é uma organização capitalista e está toda nas mãos da classe dominante. Portanto, não podemos estranhar que colabore para que tudo continue como está. Apesar da abertura, a imprensa continua comprometida com a classe dominante e nada faz para reduzir o quadro de alienação que vigora de Norte a Sul.
Costumo dizer que no Brasil ninguém nasce comunista. Falta-nos politização. O brasileiro não é politizado. Aqui, a ideologia é metida na nossa cabeça quase a marteladas. Nosso maior erro, contudo, é não fazer nada. Há uma cultura de acomodamento que dirige e entrava o país. Submetemo-nos a tudo sem espernear e sem usufruir desse direito legítimo. Não fazemos nenhum gesto passível de desmascarar o poder arbitrário que a tudo corrompe. De todos os brasileiros, o presidente Sarney é o mais submisso. E também o mais duvidoso dos brasileiros.
Nos países civilizados, as forças armadas são instrumentos do Estado. Aqui, ocorre o contrário: o Estado é instrumento das forças armadas. É refém delas.
Desde moço fiz uma opção reiterada pelo ser humano e pela liberdade. Por isso, desde a mais remota juventude – sempre renovada no entusiasmo de uma luta sem fim e sem fronteira -, jamais me curvei a interesses que contrariassem meu idealismo. Sempre me coloquei acima dos limites partidários. Não tenho nem nunca tive uma vida fácil.
Sentado numa poltrona à entrada do restaurante do hotel, Prestes fala torrencialmente, como alguém que tem urgência em comunicar suas experiências. Se eu o conhecesse, diria que está bem humorado. Ele confessa que não esperava que a entrevista fugisse ao ramerrão de praxe. Sempre me perguntam as mesmas coisas, como decorrência desse grande cansaço que mortifica os jornalistas brasileiros. Tenho a impressão de que eles fazem sempre as mesmas perguntas, em todos os lugares, a qualquer pretexto. Natal, de qualquer forma, me surpreende. Porém não posso dizer que conheço Natal. Não vim fazer turismo. São muitas as solicitações e os compromissos que ainda tenho de satisfazer.
O sofrimento é uma grande escola. Como sabe, muito moço, conheci a prisão. Quando descobri a ideologia marxista, vi-me obrigado a exilar-me
Em Santa Fé, na República Argentina, viveu por muitos anos na clandestinidade. Toda a minha vida, desde a mais tenra idade, foi marcada pelo sofrimento. O idealismo custa caro. A você, que é ainda bastante jovem, diria que fique atento a essa realidade: o idealismo custa caro, muito caro. Mas, em geral, só despertamos para esse fato demasiadamente tarde. Porém sem idealismo nada se faz que seja grande. O sacrifício pessoal faz parte do idealismo.
Filho de Antonio Pereira Prestes (1870/1908), e de Leocádia Felizardo Prestes (1874/1943), ficou órfão aos dez anos. Meu pai era engenheiro militar. Foi aluno de Benjamin Constant e sempre simpatizou com o Positivismo comtiano. Vivíamos em Alegrete, no Rio Grande do Sul, uma cidade abafada e insalubre, construída sobre uma grande lage de pedra.
Lá, em Alegrete, minha mãe contraiu tuberculose e mudou-se para Porto Alegre. Meu pai, porém, continuou em Alegrete. Ele tinha a patente de capitão do Exército. Quando morreu, seus próprios colegas de farda roubaram-lhe os pertences. Muito cedo, senti a necessidade de trabalhar.

Eu era o filho mais velho e sempre fui educado entre as mulheres. Morávamos numa casa modesta. Nossos recursos eram limitados. Diante disso, minha mãe passou a costurar para fora e matriculou-me num colégio militar. Fui a contragosto, mas não havia o que fazer. Eu me lembro que passei a chegar cedo ao colégio, para participar do almoço; depois das aulas, permanecia mais tempo na sala de aula, fazendo qualquer coisa, à espera do jantar. Agindo dessa forma eu diminuía as bocas que se alimentavam de um pequeno soldo, que foi tudo o que o meu pai nos deixou.
Minha mãe era uma mulher culta. Ela costumava dizer-me que a juventude era feita para o estudo. Era uma mulher que lia e educou-me na crítica aos militares. Aos dez anos, durante a famosa Campanha Civilista encabeçada por Ruy Barbosa, minha mãe levava-me com as minhas irmãs aos comícios. Aquilo me empolgou. O senhor deve saber que a mulher, quando é combativa, é mais conseqüente do que os homens. Assim era minha mãe. Uma mulher que não se deixou vencer. Dei o seu nome à minha filha.
Emocionado, evoca a grande marcha da “Coluna Prestes” que, sob o seu comando, cruzou o Brasil e passou pelo Rio Grande do Norte. Aqui cruzamos o alto sertão e nos aquartelamos em Luis Gomes, uma aldeia ainda e esquecida dos poderes constituídos. Nossa luta era fundamentalmente dirigida contra o presidente Arthur Bernardes. Era a luta contra a fraude que campeava por toda parte, arruinando o país e promovendo a descrença entre os cidadãos. Lutamos, como idealistas, contra o poder da justiça brasileira que já era muito corrupta naquela época e ignorava soberbamente o direito dos pobres. Lutamos por uma justiça limpa e um Estado livre da corrupção, representada, naquele momento, pelo governo de Arthur Bernardes.
Empolgado com as lembranças de sua luta, o velho cavaleiro da esperança, conforme o definiu o escritor Jorge Amado, Prestes refere-se longamente sobre a origem de tudo, o escândalo provocado pelas cartas, comprovadamente de autoria do presidente, como afirma com ênfase, dirigidas ao seu amigo Raul Soares. Divulgadas pelo jornal “Diário da Manhã”, indignou a opinião pública e o pôs em marcha, à frente de uma coluna, em sua heróica reação. Tantos anos depois, Prestes ainda sabe as cartas de memória e as repete com a indignação de sempre. “(...) Os militares podem ser comprados com outros galões e bordados”, escreveu o presidente Bernardes a Raul Soares.
Fragmento de “O Spleen de Natal” [V. 3-3, inédito]

6 de agosto de 2023

Meu amigo poeta

  Walter Medeiros


As gavetas da minha lembrança ficam meio emperradas em certas circunstâncias, como a que vivencio neste momento. Quero lembrar o instante em que conheci um amigo de longas datas. Mas sinto que é mesmo impossível. O que resta é saber que o conheci em uma noite triste, mesmo que o tenha conhecido de dia.

Era o tempo em que o simples fato de conversar com alguém podia gerar sérios problemas. Para trocar ideias e tratar das lutas pela liberdade no Brasil, frequentemente era necessário marcar encontros, conversas e reuniões em bares. Assim ocorria nos anos setenta do século passado. Havia quem dissesse que quando escrevessem a história da revolução brasileira os bares teriam um capítulo especial.

Conheci, então, o amigo nesse ambiente. Nos bares da época: Pitombeira, Postinho, Asfarn, Castanhola, Jangadeiro. Além dos bares, sempre nos encontrávamos no Cine Clube Tirol, no Cinema de Arte do Rio Grande – manhãs de domingo, nas casas de amigos. Também nos ambientes legislativos, comícios, feiras, debates.

Posso definir esse amigo como um revolucionário, poeta, boêmio, notívago, intelectual, operário do dia a dia. Uma pessoa de bom gosto.

Daquelas gavetas sem datas precisas surgem as lembranças de sua habilidade com o violão, cantando músicas de Geraldo Vandré e falando sobre seu prazer de ouvir Capinam. Tudo junto com os amigos que corajosamente faziam tudo que podiam para mudar o mundo. Era tudo difícil, indefinido, duvidoso, aflitivo, mas era viver ou viver aquele momento, assim definido por outro amigo, filho de um homem da Escola Superior de Guerra – ESG: “Se peguei o bonde errado, agora vou até o fim da linha.”

Nos passos desse amigo vi seus versos delirantes e fascinantes, que expôs para o mundo em seus livros e recitais informais. Vejo sua mansidão e humanismo sem igual. Sua presença já é suficiente para completar a nossa vida, a nossa cidade, o nosso mundo.

No dia de hoje vi certas alusões ao dia do amigo. Sendo ou não – não conferi – aqui presto uma homenagem a esta figura que consegue até desfazer uma máxima segundo a qual “toda unanimidade é burra”. Ele é uma unanimidade e não torna burrice assim defini-lo.

A significância desse nosso amigo é tanta que o que sei, vi, vivi e compartilho com ele é uma palhinha diante do que certamente têm dele a dizer os outros. Os inúmeros amigos de Manoel Fernandes, Volonté.

2 de julho de 2023

Natal, década de 40

                   

                                                                 


  
                                                                                     Maria Barros - conhecida como Maria Boa


(José Correia Torres Neto *)  

    A cidade fervilhava de militares americanos e brasileiros. Aviões, hidroaviões, Catalinas e Jeeps patrulhavam a vidados natalenses.Instalava-se na cidade a paraibana de Campina Grande, Maria de Oliveira Barros (24/06/1920 - 22/07/1997). Começava neste ínterim a história da mais conhecida casa de tolerância do Estado (do país ou do mundo?).Entre as movimentações na Ribeira, nas pedidas de Cuba Libre no saguão do Grande Hotel, nas notícias pelas Bocas de Ferro, na Marmita, em Getúlio e em Roosevelt e na nova geração de meio americanos e meio brasileiros, lá estava Maria Barros enaltecendo-se na Cidade do Natal como a proprietária do melhor (ou maior) cabaré.Tornou-se conhecida como Maria Boa. Mesmo com pouco estudo ela despertou o gosto por música, cinema e leitura.
   O seu”estabelecimento” era o refúgio dos homens da cidade, com residência fixa ou, simplesmente, por passagem por Natal, e servia de referência geográfica na cidade. Jovens, militares e figurões acolhiam-se envoltos nas carnes mornas das meninas de Maria Boa. Muitas mães de família tiveram que amargar,em silêncio, a presença de Maria Boa no imaginário de seus maridos em uma época de evidente repressão sexual.Vários fatos envolveram a personagem. Um episódio muito comentado foi a pintura realizada pelos militares em um avião B-25. Um dos mais famosos aviões da 2a Guerra Mundial, os B-25 eram identificados com cores características de cada Base Aérea. Os anéis de velocidade das máquinas voadoras da Base Aérea de Salvador eram pintados com a corverde.
Os aviões de Recife, com a cor vermelha, e os de Fortaleza, com a cor azul. Para a Base de Natal foi convencionada a cor amarela.
   Os responsáveis pela manutenção dos aviões em Natal imaginaram também que deviam ser pintados no nariz do avião, ao lado esquerdo da fuselagem,junto ao número de matricula, desenhos artísticos de mulheres em trajes de praia. Autorizada pelo Parque de Aeronáutica de São Paulo, a idéia foi colocada em prática. Pouco tempo depois, os B-25 de Natal surgiram na pista com caricaturas femininas e alguns até com nomes de mulheres. Alguns militares da Base escolheram o B-25 (5079), cujo desenho se aproximava mais da imagem de Maria Barros.
   Outras aeronaves também receberam nomes como “Amigo da Onça” e “Nega Maluca”.Quem custou a acreditar neste fato foi a própria Maria. Até que alguns tenentes decidiram levá-la até à linha de estacionamento dos B-25 logo após o jantar, para não despertar a atenção dos curiosos. Ela constatou o fato. As lágrimas verteram de seus olhos quando viu à sua frente, pintada ao lado do número 5079, a inscrição “Maria Boa”.O mito “Maria Boa” rendeu trabalhos acadêmicos: o de Maria de Fátima de Souza, intitulado: “A época áurea de Maria Boa (Natal-RN 1999)”. O trabalho aborda o “fenômeno da prostituição infanto/juvenil, suas conseqüências e causas no desenvolvimento físico e psicossocial de crianças e adolescentes (...). Com o aprofundamento dos estudos percebemos o importante papel dos bordéis na prostituição, bem como o fechamento dos mesmos (...). Chegamos então ao cabaré de Maria Boa, já fechado.
   Tivemos, assim, a oportunidade de conhecer um pouco da saga da Sra. Maria de Oliveira Barros, uma profissional do sexo, com grande importância na história da prostituição de adultos, ou ainda,tradicional; das histórias contadas a seu respeito chamou-nos atenção para sua representação social, seu “mito” e sua ligação com o imaginário masculino. Com isso, passamos a averiguar mais profundamente uma participação na sociedade da época e buscamos reconstruir parte de sua história enquanto meretriz, cafetina, e proprietária da mais famosa casa de prostituição que o RN já conheceu.”O Professor Márcio de Lima Dantas publicou em 2002 o texto “Retratos de silêncio de Maria Boa”. “(...) Para além da atitude ética de proteger sua família, o que faz parecer um jogo com a hipocrisia da sociedade, penso que, na atitude de se manter reservada, se inscreve outro aspecto digno de ser ressaltado.
  Falo do mito que entorna a personagem Maria Boa, de certa maneira, criada e ritualizada por ela mesma, dimensão de fantasia para além do empírico vivenciado. (...)Astuciosamente se fez conhecer por “Maria”, o antropônimo mais comum no universo feminino, genérico e pouco dado a divagações semióticas.Ironicamente é o nome da mãe de Jesus... Quem não tinha conhecimentono Estado de uma proprietária de um requintado lupanar, e que se chamava Maria, a Boa. O mito, da constituição do éter, era aspirado por todos, preenchendo necessidades, ocupando lugares no espírito,imprimindo fantasias nos adolescentes, despertando em jovens mulheres as aventuras da carne, engendrando adultérios imaginários.
   Integrava, assim, o patrimônio individual e coletivo. (...)”Eliade Pimentel, no artigo “E o carnaval ficou na memória” destaca a presença de Maria Barros nos carnavais de Natal: Lá pela década de 50,os desfiles passaram a acontecer na avenida Deodoro da Fonseca. Maria Boa desfilava com Antônio Farache em carros conversíveis. “Em 2003 o cantor Valdick Soriano, quando entrevistado por Everaldo Lopes, registrou que quando esteve em Natal, pela primeira vez, cantou até para as meninas de “Maria Boa”.Maria Barros é história. Mesmo sendo paraibana é a Primeira Dama (ou anti-Dama) de Natal. Impera nas lembranças dos seus contemporâneos e se faz presente nos prostíbulos que ainda resistem nas periferias da cidade ou travestidos de casas de “drinks” nos bairros mais nobres.Ela é citada no filme For All - O Trampolim da Vitória (vencedor do Festival de Gramado em 1997) de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz. O filme retrata a cidade do Natal em 1943 quando a base americana de Parnamirim Field, a maior fora dos Estados Unidos, recebe 15 mil soldados, que vão se juntar aos 40 mil habitantes da cidade.
   Para a população local a guerra possuiu vários significados. A chegada dos militares americanos alimentou fantasias de progresso material, romance e, também o fascínio pelo cinema de Hollywood. Em meio aos constantes blecautes do treinamento anti bombardeio, dos famosos bailes da base aos domingos, dos cigarros americanos, da Coca-Cola e do vestuário estavam os sonhos natalenses. Sem questionamentos, “Maria Boa” foi uma das principais atrizes no elenco desse belicoso teatro. A Primeira Dama Maria Boa... Para a dupla JL e Gê lembra dos tempos de gente pequena.
Quem não se lembra da famosa Maria Boa? Eu a conheci de uma forma muito interessante.
    Quando tinha uns 15 anos, a casa vizinha à nossa, na Cel. Glicério Cícero, no Barro Vermelho, foi alugada a uma senhora já idosa que tomava conta de dois netos, uma menina e um menino. Com o passar do tempo soubemos que a senhora era a mãe de Maria Boa e que as crianças eram seus filhos. O pessoal da rua se isolou daquela senhora. As crianças estudavam no Colégio das Neves, bem pertinho de onde morávamos. Um dia, a velha veio nos convidar para a primeira eucaristia de sua neta. Ninguém na rua compareceu, mas eu, sempre danada de curiosa fui lá contra a vontade de mamãe. Cheguei e encontrei uma grande festa com diversas senhoras, cada uma mais bem vestida do que a outra, com muitas jóias etc. Fui apresentada à mãe da menina, chiquérrima, elegantíssima e muito fina. Aí descobri porque era tão procurada...

1 de maio de 2023

Tico da Costa, um areiabranquense nos palcos do mundo

 


Entrevista publicada no Suplemento Cultural "Nós, do RN" com o músico Tico da Costa ( In memoriam ) dezembro de 2008
       
Edson Benigno

          Foi nos palcos da Europa e Estados Unidos que Tico da Costa intensificou e consolidou a sua carreira desde seus 19 anos. Ele compõe suas próprias músicas e é considerado um excelente violonista. Nasceu em Areia Branca, litoral do Rio Grande do Norte. Em Natal, Recife e Roma estudou música. São 16 CDs gravados entre o Brasil, Estados Unidos, Itália e Paraguai. No Brasil, gravou “América Latente”, “Anjo das Selvas” e “Ideal 1”. No ano de 2007 lançou “Choro Suíte” (instrumental) gravado em Nova Iorque e também o seu mais recente CD “Mar”, gravado e produzido na Itália. Fez uma tournée de lançamento na Europa e Estados Unidos, com seu grupo de cordas “Alla Italiana”.
Esse ano ele esteve se apresentando em Brasília, no projeto de 50 anos da Bossa Nova. Mas o seu trabalho é realizado e mais divulgado no exterior.  Em outra ocasião, juntamente com John Patitucci, Paquito D’Rivera, Artur Maia e Toninho Horta, abriu show para João Bosco no Town Hall em Nova Iorque.
Fez vários concertos dividindo palco com Pete Seeger (Guantanamera), e o compositor minimalista Philip Glass. Sua forte presença no palco induz espontaneamente a platéia a participar cantando suas canções. E isto ocorre em Berlim, Colônia, Roma, Paris, Natal, São Paulo, Buenos Aires, Nova Iorque - Blue Note,  Kniting Factory e nos festivais de renome como o New Port Festival, New York Jazz, Celebrate Brooklyn Festival.
NÓS DO RN - Como surgiu o apelido Tico da Costa e sua descoberta musical?
Tico da Costa - Meu nome é Francisco das Chagas da Costa. Nasci em Areia Branca e lá em casa todos me chamavam de Titico. E quando comecei a tocar e que tive a certeza que seguiria a carreira musical, tive várias dúvidas sobre o meu nome artístico, pensando em Francisco da Costa, Chico da Costa, mas só na Itália resolvi optar definitivamente por  Tico da Costa. A descoberta musical aconteceu quando uma irmã minha  ganhou um violão de presente. Ao todo tenho 15 irmãos. E a gente fazia literalmente uma fila pra tocar. Meus primeiros acordes aprendi com o meu pai Dijesu Paula e com Mirabô Dantas, que vivia pelas ruas de Areia Branca. Eu olhando, perguntando, enquanto Mirabô fazia aqueles acordes de dissonância.  Eu e meus irmãos só olhando já aprendíamos. Era a maior briga em nossa família, mas a gente trocava figurinha e ensinava um a outro. Desde que aprendi os primeiros acordes, comecei a compor. Eu tinha 13 anos de idade e já fazia letra e música .
NÓS DO RN – Depois de aprender a tocar violão você veio para Natal?
Tico da Costa – Sim. Quando saí de Areia Branca eu vim para Natal com 15 anos de idade.  A minha intenção era estudar, começando por me matricular na Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte-ETFRN. Comecei a participar de festivais e me envolver mais ainda com a música. Eu tinha até algumas canções com algum valor estético. Eu ouvia naquela época muito Edu Lobo, cantando nos festivais e eu tentava fazer parecido, mas muitas das letras que eu escrevia, nem eu mesmo entendia o significado. Também naquela época eu cantava música de Roberto Carlos, Jerry Adriani e muito iê-iê-iê. Eu chegava aos clubes e me oferecia pra cantar.  Além do repertório conhecido eu incluía uma ou duas das minhas músicas também. Lembro de uma ocasião em que me apresentei na Lagoa Manoel Felipe, em um programa de rádio, produzido por Jota Belmont, o qual era transmitido para todo o RN.
NÓS DO RN - Você passou quanto tempo em Natal?
Tico da Costa - Fiquei dos 15 aos 19 de idade. Neste período conheci a professora de artes da ETFRN Lourdes Guilherme. Depois que ela ouviu umas de minhas composições, se ofereceu para conseguir uma bolsa na Escola de Música. E conseguiu.  Como não tinha uma vaga para violão, passei a estudar contrabaixo. Depois consegui transferência para Recife e lá estudei violão clássico. Também em Recife fiz parte de um grupo ligado á igreja católica e fazíamos shows pelo Nordeste todo, tanto nas capitais como nos municípios do interior. O grupo chamava-se Gen Cântico Novo, pertencia ao chamado Movimento Focolares.
NÓS DO RN- Depois de Recife você foi para Itália; como foi este salto para Europa?
Tico da Costa - Certo dia um pintor italiano foi expor em Recife. A exposição tinha 21 quadros. Olhei todos eles e propus para nós dois fazermos uma mistura de show com exposição.  Falei que comporia uma música para cada quadro. Ele fotografaria cada uma das telas e projetaria na parede através de slides, enquanto eu cantava.  Sugeri a ele que assim seria mais fácil para vender as suas obras. Na mesma hora um amigo meu me disse que eu só sairia dali depois que compusesse todas as músicas. Consegui e poucos dias depois eu estava cantando na exposição. Foi um sucesso. O pintor disse que quando eu fosse à Itália o avisasse que fazia o mesmo em Milão, Gênova e Turim. E assim aconteceu. Fui a Roma com 21 anos de idade participar de um Congresso Internacional de Jovens. A idéia era passar um mês. Comecei a tocar e cantar e aí insistiram para que eu permanecesse mais tempo. Fiquei cinco meses e gravei três compactos. Isso foi em 1972.
NÓS DO RN - Como foi sua vida musical  na Itália?
Tico da Costa - Lá gravei esses compactos. Não de forma independente, foi através de uma editora chamada Cittá Nuova. Eles até publicaram uma revista que incluía uma reportagem de várias páginas comigo, com direito a foto na capa e tudo mais. O texto contava minha trajetória, desde o primeiro show em Grossos. Ainda nesta viagem fui ao encontro do pintor que tinha conhecido em Recife e fizemos vários concertos misturados com exposição. Outra coisa importante na Itália foi eu ter descoberto, sem querer, como é ser um showman.  Não é fácil chegar como cheguei diante de 700 pessoas, por exemplo, só com um violão e um microfone.  E as pessoas cantando minhas músicas em português.
NÓS DO RN - Fale da sua relação com contatos importantes que teve na Europa?
Tico da Costa - Um contato importante foi com a Lina Wertmuller. Ela é a felina feminina. É muito estimada nos Estados Unidos, chega a ser idolatrada. O fato de eu ter composto música com ela me rendeu muita credibilidade nos Estados Unidos.  Em determinada ocasião, surgiu a oportunidade de fazer na Itália a trilha sonora para um filme que ela dirigiria.Era o filme Tieta do Agreste, com Sophia Loren e grande elenco. Eu também estava escalado para fazer uma cena, como ator, tocando uma música. O problema é que quem estava financiando era Roberto Calvi, do Banco Ambrosiano. Só que antes dos contratos assinados ele apareceu enforcado e o filme foi para o espaço. Na mesma época Sara (hoje minha esposa, naquele período minha noiva) tinha decidido fazer faculdade no Rio de Janeiro. Com o fracasso do filme, antecipei minha volta ao Brasil. Com residência fixa no Rio, passei a viajar pela Europa para fazer meus shows.  Gravei um CD nos Estados Unidos, chamado Brasil Encanto. Nessa mesma época conheci uma pessoa que representou muito para minha carreira: Philip Glass, um músico que é considerado um pop star e autor de trilhas sonoras na história do cinema.
NÓS DO RN -  Você também se apresentou no programa Jô Soares?
Tico da Costa. Sim, quando ele ainda estava no SBT.  Fui eu quem apresentou Philip Glass ao diretor de teatro Gerard  Thomas, quando morava no Rio de Janeiro. Eles ficaram amigos. Gerard foi quem sugeriu meu nome a produção do programa do Jô. Nessa época eu morava no Paraguai. Pagaram passagens e tudo, foi muito bom.  Cantei quatro músicas no Jô e ele embasbacou de rir com as minhas canções. Isso foi em 1996.
NÓS DO RN – E sua discografia, o que ela inclui?
Tico da Costa – Minha discografia enriqueceu muito depois que gravei nos Estados Unidos o meu primeiro CD Brasil Encanto.  O salto foi maior ainda depois de setembro de 2005, quando lancei nos Estados Unidos e na Europa os discos Lagartixa e Choro Suíte. Fiz muitos shows pela Europa divulgando esses dois trabalhos.  Tenho 16 discos gravados, incluindo elepês, compactos e CDs. Mais relevante do que gravar é conseguir uma boa distribuição para seu trabalho.

15 de março de 2023

Natal, Amante

 




                                             
                                                                    Dorian Jorge Freire


Estou chegando a uma idade (ou já desembarquei?) na qual a evocação de antigas e perdidas amantes, matérias de memória ou de sonho, não incomoda sequer minha mulher. O mais que a recordação provoca é um muxoxo. De condescendência. Ou ceticismo.
Pois vá a confissão em boca de cena: Natal foi minha amante desde eu menino. Nem conhecia os calores femininos e ela já era meu segredo. Tudo que era, tudo que possuía, seus mistérios, e dengues, e faceirices, e simulações – eu conhecia no silêncio de minhas caladas tentações e posses. Natal era meu alumbramento. E não se diga que o menino de então não conhecia cidade maior do que a sua Mossoró. Não, não. Já vivera em Fortaleza. Natal era uma eleição, uma opção. Uma tendência.
E pela vida afora, daquela infância perdida a este velhice mais perdida ainda, ela tem sido minha obsessão constante, fiel. Livre ela aos ventos que vêm do mar e eu preso aos ciúmes, ternuras. Às coisas mais secretas e inefáveis do querer-bem.
Natal mudou, aleluia. Não mudou minha paixão pela cidade que se multiplica sem perder sua unidade. Cresce biblicamente em graça e em sabedoria: ela cresce e eu diminuo. O progresso não a avilta. Maior e quase cosmopolita, ela não é a “vaca colorida” ou “vício de pedra”, como das grandes cidades maldizia Nietzsche pela boca de fogo de Zaratustra.
Natal cresce sem perder a identidade, sem esfarelar seus miolos, sem soltar seu tutano, mantidos os escondidos que fazem a glória das autênticas cidades dos homens.
A minha primeira Natal foi a dos anos 40. Haviam rastros ainda de americanos que não conseguiram ordinarizá-la. Lá está a Ribeira, ali o Alecrim, Petrópolis, as Rocas proletárias, Tirol de Enéas Reis e Xixico Couto. Bondes, mangueiras, sombras e iluminações. Sobradões. Sítios. Solares dos últimos coronéis ainda não devastados pela cupidez da especulação capitalista, materialista. Foi a Natal de minha gente: Enéas Reis, Xixico Couto, Eutiquiano, tia Justa, tio Manuelzinho, o mulato Chagas, matinês do Rex, barracas na pracinha (cadê Ivone, meu bem?), Tirol terminando aos pés do Aero Clube, Redinha quase exclusivamente.Natal do “Jornal de Natal” Café, Sandoval, Calafange, Floriano, Dom Marcolino, Zé Varela. (Como eram gostosos os cigarros daqueles tempos, fumados às escondidas, comprados a retalho, Selma, Astória, Mistura Fina, Continental. Iguais, só as tentações não realizadas de ousar as noites longas nas ruelas proibidas de uma Ribeira que só despertava às desoras).
Natal dos anos 50. Cheguei, adolescente, trazido por Djalma Maranhão. Pensão Comercial da Rua Coronel Bonifácio, hoje Câmara Cascudo. Cuidados de dona Rosa, atenções de Morais. A aventura macha de morar sozinho. Trabalhava no “Diário de Natal” de Edilson Varela e admirava, de longe, respeito reverencial, justo respeito, Edgar Barbosa, Américo de Oliveira Costa, Danilo. Tempo de convivência diária com Leonardo Bezerra, Guaracy Queiroz de Oliveira, João Batista Pinto, William Cobbett, Araken Irerê Pinto, Aderbal Morelly, Ticiano Duarte, Luiz Maranhão Filho, Antônio Pinto de Medeiros, Ferdinando Couto.
Era a descoberta da inteligência, o orgulho de confraternizar com a melhor juventude da cidade, as noites ouvindo preleções de Leonardo, as madrugadas, sozinho, no quarto mínimo da pensão humilde, querendo descobrir, em velhos e ensebados manuais clandestinos, o que era mais-valia e se toda propriedade é um roubo.
Natal jovem, irreverente, carnavalesca, poética, política, subversiva, diurna e vespertina a preparar longas noites de vigílias. Bares. Sorveteria Cruzeiro. Taboleiro da Baiana. A cervejinha na Pensão Ideal. As putas que nos passavam gonorreia e humildade.
Tudo era deslumbramento. Newton Navarro, Dorian Gray, Meira Pires, Manuel Rodrigues de Melo, Esmeraldo, Luiz Maria Alves, a redescoberta de Jorge Fernandes, José Gonçalves de Medeiros. A pungência inata de Gilberto Avelino. Cascudo já era Cascudo. Monumento. Mito. Primeiro – por justiça justa justíssima. Primeiro Cascudo. Depois os outros.
Depois Natal nos anos ásperos de 60. A mesma humanidade. Escorrendo, quente, espumoso, o leite gordo da ternura humana. A solidariedade instantânea de Woden, radical até na generosidade. O encontro com Maria Emília-Berilo, que marcou tanto e tanto enriqueceu minha vida. Sanderson, Luiz Carlos, Rubens Lemos, Antônio Melo, o reencontro com a competência de João Neto, Luiz Maria Alves, Celso, Myriam Coeli (Maria do Céu), Zila. Amei tanto Natal dos anos 60 que lhe dei, de nascença, minha Raíssa. Natal – 60 prolongava a Natal de todas as décadas, de tal forma fascinante que adotei. Mossoró, Aracati, São Paulo, Ouro Preto, Salvador, São Luís.
A derradeira Natal foi recente. Eu já alcançado por um enfarte do miocárdio e uma isquemia cerebral. A cidade maior sem perder sua estatura. Fiel aos seus valores e desvalores, enriquecida por outras fortunas. Que Natal se renova sem cirurgia plástica e envelhece alegre com o segredo guardado da eterna juventude.
Os Alves – Aluízio, Agnelo, Gobat. Ednólia e Geraldo Melo, as noites estiradas na conversa amena. João Ururahy, Lalinha e Genibaldo, Zélia Freire, Teresa, Romeu Aranha, Nídia Mesquita, Marta e Milson, Roberto Varela, Serejo, Albimar, Paulo Tarcísio, Paulo Macedo, Odilon, Sarinho, Américo, Mário Moacir Porto, Veríssimo, o admirável Vivi, Elenir Fonseca, Haroldo e Selma, Nei Marinho, Nei Leandro, Tarcísio Gurgel, Leopoldo Nelson, Franklin Jorge, Eulício, Socorro Trindad, Gualberto, Marcos Aurélio, Rejane, Mariza. Próximo ou distante, presente, Nilo Pereira, o mestre, mais doce do que todo Ceará-Mirim.
Multidão. Diante da multidão, Jesus teve pena, Diante da humana gente de Natal, eu me ufano de meu país. Afonso Celso e eu. Porque se cada pessoa é ela e sua circunstância, as circunstâncias natalense têm grandezas. Paris seria melhor sem os parisienses? Natal carece de seu povo. Completa-se com ele. O mar, os morros, as dunas, o verde, os botecos, freges e forrós, os grande e os miúdos, becos e avenidas, calçadões e vielas, povo. Eis Natal humana. Que deve parar de crescer se não quiser desafiar o bom senso do meio termo.
Depois de deixar Natal pela última vez, fisgado pôr outra isquemia cerebral, aviso da delicadeza da Providência, passei a visita-la às pressas, às escondidas quase, o tempo necessário para beijar os netos e por a benção nos filhos. Com medo, quem sabe? Do visgo que Natal tem, o mesmo visgo de Mossoró e São Paulo, o perigo de não querer voltar, achar que pode se dar ao luxo da capital o interiorano matuto, mais certo no silêncio de seu caritó, entre livros, os olhos voltados para o pé de cajarana plantado por sua Mãe, faz oitenta anos.
Ela, minha mãe, Dolores Couto, quando falava de sua Escola Doméstica,com Jacira, Alda, Emília, Maria de Lourdes, Ilnah, Elza, Anatilde e Ricardina, dizia – “no tempo em quer eu era gente...” No tempo em que eu era gente, podia viver Natal. Hoje, não. Há muitas cruzes erguendo seus braços na procura da eternidade. Natal também passou a ser para mim um campo santo. Chão sagrado. Repouso de guerreiros. Os idos. Os idos.
Natal é isso. Só? Mais. Muito indefinível nos seus contrastes, pecados e santidade, risos e lágrimas, passado e futuro. A luz ardente dos refletores. A brisa fria de suas madrugada obscuras e insones.
Recife e São Luís lembrariam Veneza. Recife, para o Mestre Alceu, tem o cheiro de Florença. O que me lembrou Natal lá fora, nas Oropas agora dos impossíveis?
A luminosidade de Roma sua espontaneidade, sua abertura, até sua molecagem gostosa. Apimentada. Com pimenta malagueta.
Se eu não tivesse encontro marcado para daqui a pouquinho com meus pais e avós, juro que esperaria o fim do sonho em Natal. Tia Carmem, tio Enéas, Eider, Eutiquiano, Berilo, Myriam e Zila, Barca e Antônio Pinto, contariam histórias. Cascudinho as decifraria todas e lhes daria as origens.
Se não blasfemo – Deus me livre e guarde – que céu teria mais gosto de céu?

Dorian Jorge Freire (falecido), escritor e jornalista. Transcrito do jornal “O Galo” – dezembro/89.