Luís Carlos Prestes
Por Franklin Jorge
Pontual e de uma irrepreensível cortesia, Luís Carlos Prestes recebe-nos
a mim e ao escritor Jarbas Martins às 6h30 da manhã, no saguão do hotel
Samburá, onde está hospedado, no Centro da cidade.
Recém-saído do banho, ainda exalando um agradável cheiro de sabonete, o
cabelo bem cortado, faz-se acompanhar do médico Salomão Gurgel, um
norte-rio-grandense que ele conheceu em Moscou. Prestes, homem discreto, parece
de alguma forma cansado, talvez, por tanta exposição na mídia que o persegue
como se fora um animal pré-histórico. Veste-se com elegância e distinção.
Madrugador desde menino, reporta-se à exaustiva homenagem que lhe
foi prestada na Assembléia Legislativa do Estado, ontem à noite, em sessão que
se prolongou demasiadamente além do previsto.
No Brasil, nada funciona, afirma numa voz calma, segura e polida. Até as
homenagens excedem os limites da normalidade. Dormi pouco, mas após um banho
frio, sinto-me renovado e pronto para responder aos seus questionamentos.
Pergunte o que quiser.
Prestes tem 89 anos. De estatura abaixo da média, nem gordo nem magro,
conduz a conversa com desenvoltura. Então os senhores são jornalistas. Pois
saibam que os jornais e as rádios continuam sistematicamente a censurar minhas
palavras. Geralmente, omitem minhas idéias quando não distorcem minhas
palavras. Mesmo assim, continuo falando, pois dependo da palavra para ajudar na
transformação de uma sociedade estigmatizada pela miséria e instruída pela
corrupção. A palavra é a arma de que disponho e estou sempre a usá-la da melhor
forma contra os políticos individualistas que oneram o país.
A imprensa é uma organização capitalista e está toda nas mãos da classe
dominante. Portanto, não podemos estranhar que colabore para que tudo continue
como está. Apesar da abertura, a imprensa continua comprometida com a classe
dominante e nada faz para reduzir o quadro de alienação que vigora de Norte a
Sul.
Costumo dizer que no Brasil ninguém nasce comunista. Falta-nos
politização. O brasileiro não é politizado. Aqui, a ideologia é metida na nossa
cabeça quase a marteladas. Nosso maior erro, contudo, é não fazer nada. Há uma
cultura de acomodamento que dirige e entrava o país. Submetemo-nos a tudo sem
espernear e sem usufruir desse direito legítimo. Não fazemos nenhum gesto
passível de desmascarar o poder arbitrário que a tudo corrompe. De todos os
brasileiros, o presidente Sarney é o mais submisso. E também o mais duvidoso
dos brasileiros.
Nos países civilizados, as forças armadas são instrumentos do Estado.
Aqui, ocorre o contrário: o Estado é instrumento das forças armadas. É refém
delas.
Desde moço fiz uma opção reiterada pelo ser humano e pela liberdade. Por
isso, desde a mais remota juventude – sempre renovada no entusiasmo de uma luta
sem fim e sem fronteira -, jamais me curvei a interesses que contrariassem meu
idealismo. Sempre me coloquei acima dos limites partidários. Não tenho nem
nunca tive uma vida fácil.
Sentado numa poltrona à entrada do restaurante do hotel, Prestes fala torrencialmente,
como alguém que tem urgência em comunicar suas experiências. Se eu o
conhecesse, diria que está bem humorado. Ele confessa que não esperava que a
entrevista fugisse ao ramerrão de praxe. Sempre me perguntam as mesmas coisas,
como decorrência desse grande cansaço que mortifica os jornalistas brasileiros.
Tenho a impressão de que eles fazem sempre as mesmas perguntas, em todos os
lugares, a qualquer pretexto. Natal, de qualquer forma, me surpreende. Porém
não posso dizer que conheço Natal. Não vim fazer turismo. São muitas as
solicitações e os compromissos que ainda tenho de satisfazer.
O sofrimento é uma grande escola. Como sabe, muito moço, conheci a
prisão. Quando descobri a ideologia marxista, vi-me obrigado a exilar-me
Em Santa Fé, na República Argentina, viveu por muitos anos na
clandestinidade. Toda a minha vida, desde a mais tenra idade, foi marcada pelo
sofrimento. O idealismo custa caro. A você, que é ainda bastante jovem, diria
que fique atento a essa realidade: o idealismo custa caro, muito caro. Mas, em
geral, só despertamos para esse fato demasiadamente tarde. Porém sem idealismo
nada se faz que seja grande. O sacrifício pessoal faz parte do idealismo.
Filho de Antonio Pereira Prestes (1870/1908), e de Leocádia Felizardo
Prestes (1874/1943), ficou órfão aos dez anos. Meu pai era engenheiro militar.
Foi aluno de Benjamin Constant e sempre simpatizou com o Positivismo comtiano.
Vivíamos em Alegrete, no Rio Grande do Sul, uma cidade abafada e insalubre,
construída sobre uma grande lage de pedra.
Lá, em Alegrete, minha mãe contraiu tuberculose e mudou-se para Porto
Alegre. Meu pai, porém, continuou em Alegrete. Ele tinha a patente de capitão
do Exército. Quando morreu, seus próprios colegas de farda roubaram-lhe os
pertences. Muito cedo, senti a necessidade de trabalhar.
Eu era o filho mais velho e sempre fui educado entre as mulheres. Morávamos numa casa modesta. Nossos recursos eram limitados. Diante disso, minha mãe passou a costurar para fora e matriculou-me num colégio militar. Fui a contragosto, mas não havia o que fazer. Eu me lembro que passei a chegar cedo ao colégio, para participar do almoço; depois das aulas, permanecia mais tempo na sala de aula, fazendo qualquer coisa, à espera do jantar. Agindo dessa forma eu diminuía as bocas que se alimentavam de um pequeno soldo, que foi tudo o que o meu pai nos deixou.
Eu era o filho mais velho e sempre fui educado entre as mulheres. Morávamos numa casa modesta. Nossos recursos eram limitados. Diante disso, minha mãe passou a costurar para fora e matriculou-me num colégio militar. Fui a contragosto, mas não havia o que fazer. Eu me lembro que passei a chegar cedo ao colégio, para participar do almoço; depois das aulas, permanecia mais tempo na sala de aula, fazendo qualquer coisa, à espera do jantar. Agindo dessa forma eu diminuía as bocas que se alimentavam de um pequeno soldo, que foi tudo o que o meu pai nos deixou.
Minha mãe era uma mulher culta. Ela costumava dizer-me que a juventude
era feita para o estudo. Era uma mulher que lia e educou-me na crítica aos
militares. Aos dez anos, durante a famosa Campanha Civilista encabeçada por Ruy
Barbosa, minha mãe levava-me com as minhas irmãs aos comícios. Aquilo me
empolgou. O senhor deve saber que a mulher, quando é combativa, é mais
conseqüente do que os homens. Assim era minha mãe. Uma mulher que não se deixou
vencer. Dei o seu nome à minha filha.
Emocionado, evoca a grande marcha da “Coluna Prestes” que, sob o seu
comando, cruzou o Brasil e passou pelo Rio Grande do Norte. Aqui cruzamos o
alto sertão e nos aquartelamos em Luis Gomes, uma aldeia ainda e esquecida dos
poderes constituídos. Nossa luta era fundamentalmente dirigida contra o
presidente Arthur Bernardes. Era a luta contra a fraude que campeava por toda
parte, arruinando o país e promovendo a descrença entre os cidadãos. Lutamos,
como idealistas, contra o poder da justiça brasileira que já era muito corrupta
naquela época e ignorava soberbamente o direito dos pobres. Lutamos por uma
justiça limpa e um Estado livre da corrupção, representada, naquele momento,
pelo governo de Arthur Bernardes.
Empolgado com as lembranças de sua luta, o velho cavaleiro da esperança,
conforme o definiu o escritor Jorge Amado, Prestes refere-se longamente sobre a
origem de tudo, o escândalo provocado pelas cartas, comprovadamente de autoria
do presidente, como afirma com ênfase, dirigidas ao seu amigo Raul Soares.
Divulgadas pelo jornal “Diário da Manhã”, indignou a opinião pública e o pôs em
marcha, à frente de uma coluna, em sua heróica reação. Tantos anos depois,
Prestes ainda sabe as cartas de memória e as repete com a indignação de sempre.
“(...) Os militares podem ser comprados com outros galões e bordados”, escreveu
o presidente Bernardes a Raul Soares.
Fragmento de “O Spleen de Natal” [V. 3-3, inédito]
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