O
Rio Grande do Norte é um pequeno Estado, mas possuidor de uma grandeza
extraordinária. Vejamos alguns inusitados exemplos, na formação dos privilégios
ditos sagrados e profanos ou aquilo que a história nos registra com seriedade e
absoluta autenticidade. Para fortaleza da fé, temos três dioceses e para glória
das letras, 4 academias bem conceituadas: a de Letras, a de Trovas, a de
Medicina e a de Odontologia.
Seguimos
a literatura com unhas, nervos e dentes. Somos uma terra abençoada por Deus e
agraciada pelos deuses. Em todos os países católicos e ditos apostólicos,
romanos, espalhados pelo globo terrestre, a beatificação ou canonização que
permite o santo subir aos altares só acontece com um agraciado. A Segunda
Santíssima Trindade, composta com a presença do Filho – Jesus, Maria e José –
deve-se à divina missão, aqui na terra, confiada pelo Pai para remissão dos
nossos pecados. Nessa sagrada sequencia, aparecem os Três Reis Magos, feitos
santos pela piedade popular, independente de qualquer dogma de fé. Os Reis
Magos desembarcaram em Natal e habitaram o nosso Forte, em forma de retábulo,
em 1598, isto é, 98 anos após a celebração da primeira missa, em terra
brasílica. Das Onze Mil Virgens lideradas pela britânica Santa Úrsula faz-se
muita restrição à peregrinação virginal devido ao caráter lendário que envolve aquelas
vestais. Não se sabe se o martírio dessa multidão de santos foi praticado pelos
hunos de Atila ou pela perversidade dos romanos de Maximiano, o que resulta
mais de um século entre o vândalo e o bárbaro.
Cosme
Damião, árabes, irmãos e médicos, amigos dos pobres e inimigos do dinheiro,
afirma os hagiólogos que foram decapitados no governo de Diocleciano por ordem
do desalmado procônsul Lísia, isso lá pelo ano 287. O papa São Felix IV, no ano
530, erigiu-lhes uma igreja em Roma e assim eles subiram aos altares. Por sua
dedicação aos pobres e nunca lhes terem cobrado uma consulta, foram apelidados,
em grego, de anargyroi (sem prata),
os únicos médicos do mundo inimigos de dinheiro, um belo exemplo de pobreza que
deve ser um repúdio à classe argentária da qual eles são legítimos patronos. Já
tivemos, aqui, recentemente, uma dupla de policiais vigilantes e andarilhos crismados
pelo Comando como Cosme e Damião. Ignoravam os xarás médicos da Arábia e, em
vez de bisturi, usavam revólveres e cacetetes. Não eram inimigos do dinheiro,
mas ganhavam pouco e nada lhes sobrava para esmolas ou ajuda aos amigos. São
escorços raros, mas não são lendários. Quanto à canonização, o modelo
predominante é a beatificação de apenas um escolhido recomendado aos céus
através de meticuloso exame e, ainda por cima de tudo, obedecendo a processo
acompanhado do advogado do diabo. Esse acusador diabólico já vem de longe. Para
depurar a paciência de Jó, consentiu o Senhor a intervenção de Satanás e entregou
Jó ao seu poder – ecce in manu tua est (Jó
2,6), e Jó ficou à disposição de Satanás cujo objetivo era esgotar-lhe a
humildade. Aqui na terrinha do índio Poti, em breve por cuidadoso processo
teremos 30 santos e mártires beatificados de uma só vez, o que muito fortalece
a nossa fé.
Em
todas as Academias literárias do mundo, a disputa por uma vaga é bastante
renhida. Costumeiramente, dois conspícuos competidores lutam pela sorte da
imortalidade olímpica. O vitorioso prevalece-se do critério de justiça; o
derrotado sente-se injustiçado. Surgem dissabores e inconformações.
Algumas
Academias são exageradamente muito exigentes. Schopenhauer, por exemplo, certa
vez, concorreu ao concurso da Academia de Copenhague com seu livro Fundamento da Moral.
O
livro estava cheio de insultos a Hegel. Foi candidato único e deixou de ser
premiado. Passou a amar o seu cão sobre todas as coisas por ser o mais próximo
amigo do homem.
Aqui
entre nós outros, ad lucem versus,
elegem-se 3 deles de uma só vez, no mais compreensivo processo de igualdade e
imortalidade, porque cada um é único, livre e de bons costumes. Por serem
únicos, não incorrem no risco da injustiça. Três posses lhes são asseguradas.
No mesmo vagão, embarcam 3 sócios honorários
ad majorem Academiae gloriam. Nesse belíssimo exemplo de tolerância
universal, os três eleitos e os outros três escolhidos passam a gozar do mesmo
encanto dos três deuses principais do Olimpo ou das três Graças da mitologia
romana e brilham como as três estrelas da constelação de Orion, conhecidas como
as Três Marias.
Nossa
Academia segue fielmente o conselho de Tobias a seu filho: quod ab alio oderis fieri tibi, vide ne aliquando alteri facias –
nunca faças aos outros o que não quere que os outros te façam. É essa a
filosofia adotada pela nossa Academia de Letras, na grandeza de suas intenções
e na presteza de suas adoções.
Na
política, temos o clã, aquilo que no inglês medieval chamava-se clann e se restringia às tribos
irlandesas e escocesas.
Nos
tempos bíblicos, o clã era o mesmo
que tribo e significava bastão, em hebraico shebet, emblema da tribo, símbolo de
autoridade e comando. O cetro do rei ou o básculo do bispo. Os integralistas
usavam, na lapela, a letra grega sigma,
no sentido matemático de soma integral do produto; e o integralismo foi forte e
valoroso, em nosso Estado. De tribos só tivemos as dos índios. Uma delas
valorizou heroicamente o bastão de comando do guerreiro Poti. Nas festas de
Momo, ainda hoje desfilam os índios do Alecrim, que servem de atração ao nosso
carnaval.
Entre
nós habitantes do pequenino Estado, dispomos da grei familiar, o que os romanos
chamavam grex, no sentido de rebanho
de gado miúdo. Nosso rebanho familiar é graúdo e congrega politicamente avós,
pais e netos. Os latinos faziam grande diferença entre sobriuns e patruelis, o
que nós englobamos como sobrinhos. Sobriuns
era o filho da irmã e patruelis o do
irmão. Nota-se que entre os romanos havia um pouco de preconceito na relação de
parentesco. Nepos, nepotis era o neto. Cícero, no seu De lege agraria, chamou a esse nepos de perdulário. No Evangelho, tem
igual conceito o filho pródigo – filius
vivendo luxuriose.
Quanto
ao nepotismo (o vínculo com o neto) três infalíveis papas o transformaram em
favoritismo excessivo dispensado ao seus sobrinhos, porque nepote passou a ser
sobrinho do Santo Padre. No livrinho chamado Arte de Furtar, esse nepote é reconhecido como confidente do
Soberano Pontífice. A Arte de Furtar,
se não é lido, é pelo menos muito apreciado em nosso país, porque aqui se furta
com arte. E o nepotismo, em nosso Estado, aperfeiçoou-se com mais graça do que
aquela concedida pelos papas e traduz os seus invejáveis privilégios.
Entre
outras maravilhas, Natal ainda goza da reputação de possuir o melhor clima do
mundo. Possui também a fama de ser o Estado onde mais se rouba bancos, o que
permite ao assaltantes o privilégio pela facilidade da rapina. O que antes era
violência, hoje se registra como simples ocorrência. A Segunda Grande Guerra
abalou o mundo. As batalhas ocorreram muito distante do nosso Cabugi ou dos
estrondos de Baixa Verde. Duas mil léguas longe daqui aconteceu o Dia D houve a
pacificação pela invenção do armistício e, finalmente, a assinatura da rendição
do Japão, lá pela baia de Tóquio.
Antes
disso, o Presidente americano se dignou conferenciar pacificamente com o nosso
Presidente brasileiro, aqui no estuário do Potengi amado. No auge da guerra,
desfilaram, pelas ruas e Natal, personalidade ilustres oriundas de outros
países: generais, príncipes e estrelas da constelação de Hollywood. Terminada a
guerra, coube a Natal a glória inusitada de ter sido o Trampolim da Vitória, o
teatro de hostilidades mais pacifico do universo, no qual jamais se viu um
exército em marcha belicosa ou se ouviu um tiro de canhão, a não ser a festiva
salva de tiro reservada ao general, o que se chama tiro de festim e só serve para assustar crianças e abalar os nervos
dos velhos.
Festim
é uma palavra tão miúda que até lembra chumbo de espingarda na caça de
arribaçã, o que também é um privilégio reservado à nossa macambira e seria bem
mais proveitoso se não houvesse a intervenção do IBAMA. Do nosso Trampolim da
Vitória fez-se um filme “for all” – para todos. Nenhum relacionamento com
forró. A invasão holandesa concorreu para fertilizar o viveiro de mártires e de
santos. Durante aqueles longos anos de ocupação, nosso estado assemelhou-se à
Roma de Vespasiano e a nossa capital chamou-se garbosamente Nova Amsterdam. É
pena que os invasores não tivessem imposto o idioma batavo para maior engrandecimento
de nossa cultura linguística e de nossa hagiografia no rastro dos bolandistas
ocupados com a Acta Sanctorum.
O
nosso índio Poti, herói de raça, nascido ali em Aldeia Velha, recebeu a graça
do batismo com o santo nome de Antônio e o título de Dom, uma distinção de tratamento só concedido a reis e bispos entre
Espanha, Portugal e Brasil, Por pouco não foi santificado para honra e glória
da aldeia.
Num
Estado castigado pelas estiagens, dispomos da maior barragem do mundo, o que
deixou a Assuã arrasada. Em 1991, tivemos a divina graça de recebermos
cristamente o legítimo representante de São Pedro, que veio direto do Vaticano
encerrar, aqui em Natal, o XII Congresso Eucarístico Nacional. E por último,
ainda usufruirmos do Carnatal, no
que somos genuinamente criadores, competindo momescamente com o outro de
Sapucaí. Isso nos permite a feliz oportunidade de ensaiarmos a batalha de
confeti e brincarmos irresponsavelmente 2 vezes por ano durante 2 semanas
consecutivas, o que nos cabe 15dias de festas intermitentes. Como a folia foi
criação nossa e já se espalhou por outros Estados e municípios, já nos
obrigamos cobrar direitos autorais.
Em
matéria de botânica, possuímos o maior cajueiro do mundo. Nas arrojadas
navegações e descobrimentos de terras longínquas, recebemos a visita de Américo
Vespúcio que em junho de 1499 velejou pelo delta do Açu em cujas margens fundou
feitorias. Isso pelo menos é o que nos dizem alguns historiadores inventivos.
Já agora somos responsáveis pelo descobrimento
do Brasil. A carta de Pero Vaz foi erroneamente data na ilha de Vera Cruz,
porque Porto Seguro é o Cabo de São Roque, onde Cabral desembarcou em 1500. A
primeira missa celebrada em terra firme foi diante dos primitivos potiguares e
Jorge Dosoiro foi transferido de Sam Thomé para Touros. O Cabugi de Aluizio Alves
- é o monte Pascoal avistado por Cabral. Não é maravilhoso?!
Recentemente,
um respeitável médium, com experiência “na vida passada”, o que ele chama de
“pretérito espiritual”, em entrevista ao suplemento Podium (07.09.98), disse que, na Praia de Natal, existiu uma “Base
dos Atlantas” chamada Atlan, anagrama de Natal, Isso há 1.500 anos,
presumivelmente A.C. quando o mar aqui era gelado.
Não
vamos discutir o trânse mediúnico ou o karma
kardecista envolvendo o perispírito.
O importante, segundo o médium, é que atualmente “encontra-se reincarnado aqui em
Natal a maioria dos discípulos que seguiram Jesus, no seu ministério”. Par
engrandecimento da cidade isso nos basta.
Essa
visão mediúnica não é só privilégio seu, é também nosso privilégio ter essas
santas criaturas vivendo entre nós outros tão distanciados da pregação de
Jesus. Ora, Jesus, depois da ressurreição, na aldeia de Emaús, apareceu a 2
discípulos incrédulos. Aqui em Natal temos uma outra Emaús, onde fica A Morada
da Paz. Nessa morada silenciosa, em breve, depois de sepultada, reflorescerá
uma nova imortalidade acadêmica, em forma de quiliasmo. Aquilo que estava previsto para o ano 1000, em
Jerusalém, com a vinda de Jesus, poderá acontecer em 2001, em Natal, na aldeia
de Emaús, em Parnamirim, que será o segundo Trampolim da Vitória. Em breve
teremos lá inaugurada a Academia dos Renascidos.
Por
outro lado, no setor cultural, Natal é a cidade que lança mais livros no mundo,
em todos os gêneros literários, às vezes até dois livros por mês o ano inteiro.
Quem sabe se o autor do Paraíso Perdido
também não está reencarnado entre nossos bons intelectuais reorganizado seu
segundo pandemonium, o que será um
achado.
Com
estas mudanças no curso da história favorecendo e engrandecendo nosso pequenino
Rio Grande, fica também provado que o barão de Munchausen nasceu em Natal e não
em Hanover e privou da amizade do barão da Redinha, ad majorem terrae gloriam.
Se
Jesus um dia voltar à terra, estou certo de que virá para Natal. Aqui jamais
será crucificado e viverá em paz entre os ladrões. Os poucos judeus que
migraram para cá ainda não tiveram tempo de erigir um sinédrio (em Pretório nem
se fala) por conseguinte estaremos sempre livres de Anás, Caifás e Herodes; e
que Pilatos permaneça lá no Credo onde o colocou Santo Atanásio para ser
relembrado nas missas dominicais. Esqueçamos Judas. Presumivelmente, segundo as
tradições do século IV, foi a Fortaleza Antônia, em Jerusalém, que serviu de Pretório ou Tribunal
onde Jesus foi julgado. Aqui em Natal temos a Fortaleza dos Reis Magos, que
também tem a forma de estrela (Pentágono dos Magos) e para lá, na tradição da
estrela de Belém, Dom José, rei de Portugal, nos mandou, em 1755, as três imagens
dos Reis Magos, outro privilégio da cidade presépio. Que queres mais?
Deixemo-nos
embalar nesse doce enlevo de vida alegre e gozemos dos privilégios que Deus se
dignou reservar para taba de Poti. Hoje já podemos repetir imperativamente sem nenhum
exagero de plágio:
-Criança!... não verás
Estado nenhum como este; e não fiques aí a ouvir estrelas.
Nosso céu é limpo e estrela não é sino que se ouça. Quando Bilac inventou de
ouvi-las estava surrupiando uma frase de Arsêne Houssaye, que as ouviu antes
dele, segundo nos revela Agrippino Grieco; Rafael Cansinos Asséns, citado por
Jorge Luis Borges, gabava-se de estudar as estrelas em 14 idiomas. Muito antes dele,
o capitão inglês Francis Burton, tradutor de
As Mil e Uma Noites, deixando seu povo familiarizado com os 40 ladrões das Noites Arábicas, arrogantemente,
dizia que sonhava com as estrelas em 17 idiomas. Ambos eram astrólogos sonhadores.
Nossos poetas de cá, por mais inspirados, não chegaram a tanto. Olham as
estrelas sem ouvi-las nem contá-las; e em plácido silêncio perdem-se no mundo
da lua, o que é outro encanto da terrinha querida.
-Criança!... não verás
Estado nenhum como este.... ora você veja só!...
(Transcrito
do Jornal “O GALO” maio/junho 1999 –
José Melquíades de Macedo (falecido),
foi professor da UFRN, escritor e romancista).
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