7 de novembro de 2017

Leitura Cirneana dos Quadrinhos

     Moacy Cirne


Anchieta Fernandes

   Incontestavelmente, um dos mais lamentáveis acontecimentos para a cultura brasileira neste ano, foi o falecimento, em Natal, no sábado, 11 de janeiro de 2014, do escritor(poeta, crítico e teórico de literatura, cinema, quadrinhos e política) Moacy da Costa Cirne. Um norte-riograndense de talento multifário. Talento este que formou a sua base maior desde o 12 de março de 1967, quando chegou ao Rio de Janeiro, para ali morar definitivamente.
   A importância da transferência de sua moradia, de Natal para o Rio de Janeiro, é que somente no RJ, em contato com livrarias que vendem livros e outras publicações estrangeiras destinadas a estudar a teoria das EQs (coisa rara na Natal da época, que só vendia as publicações corriqueiras das revistas nacionais) ele despertou para o valor estético e sociológico dos quadrinhos, embora já fosse um leitor entusiasmado de revistas em quadrinhos.
   Já escrevi certa vez, e o repito agora com outro referencial temporal após sua morte (embora seja o óbvio para qualquer leitor bem informado): Moacy Cirne foi o mais respeitado crítico, historiado e teórico das histórias em quadrinhos no Brasil. E com a marca do pioneirismo: seu livro “BUM! A Explosão Criativa dos Quadrinhos” foi o primeiro a se publicar no nosso país sobre o tema. Editado pela Editora Vozes, de Petrópolis, foi lançado em 1970, ganhando durante alguns meses a categoria de best-seller, pois passara a ser o mais vendido de prosa de não-ficção nas livrarias brasileiras.
   Leitor e estudioso do assunto, MC apresentou os resultados de suas pesquisas no livro, um denso e atualizado ensaio que respondeu a em progressobreHQ . Como e quando nasceu a história em quadrinhos? Qual a razão do seu êxito? Quais as particularidades de sua linguagem? Quais as suas relações com os outros meios de comunicação do nosso tempo? Qual a sua influência sobre aliteratura de vanguarda no Brasil e no estrangeiro? Como é a história em quadrinhos brasileira? Como será a história em quadrinhos do futuro? – a todas estas perguntas o livro de MC respondeu.
Em 1971, novo livro de MC pela Vozes: “A Linguagem dos Quadrinhos – O Universo Estrutural de Ziraldo e Maurício de Sousa”. Desta vez, “além de levantar alguns problemas ideológicos e econômicos da maior relevância cultural, específicos à nossa realidade contextual, estuda (pela primeira vez entre nós)a experiência do Pererê, de Ziraldo, e a obra em progresso de Maurício de Sousa” (da orelha do livro). O leitor do livro ficou sabendo reconhecer os procedimentos onomatopaicos em Ziraldo, as melhores estórias da revista Pererê (que circulou de 1960 a 1964, editada pela Empresa Gráfica O Cruzeiro), a metalinguagem e o absurdo ontológicoo em Maurício de Sousa.
  MC não parou depesquisar e estudar os quadrinhos, e, concomitantemente com seus livros de poemas (em versos e visuais), de ensaios literários e sociológicos, de estudos e crítica sobre outra área cultural – que é o cinema (uma outra paixão de MC, já que foi cineclubista em Natal, fundador do Cine Clube Marista, e ex-presidente do Cine Clube Tirol)  - continuou contribuindo com novos livros ao levantamento das questões que dizem respeito aos quadrinhos.
   Em 1972, publicou (novamente pela Vozes, de Petrópolis) o livro “Para Ler os Quadrinhos – Da Narrativa Cinematográfica À Narrativa Quadrinizada”, onde “focaliza uma das mais profundas relações estruturais da arte contemporânea a partir da problemática da leitura, instaurando a narrativa como pólo centralizador de duas linguagens distintas; a relação cinema/quadrinhos” (do texto na contracapa). Sempre apoiado na semiologia e numa leitura criativa oriunda da vanguarda, MC deteve-se nos mais variados aspectos: a imagem, a tela e a página de revista, o primeiro plano, os cortes elípticos, a decupagem, os blocos significacionais (expressão, aliás, criada por MC, para definir a composição gráfica de momentos narrativos) etc.
Dez anos depois, a visão de MC sobre os quadrinhos atingira um razoável embasamento político. Em 1982, aEditora Achiamé, do Rio de Janeiro, publicou seu livro “Uma Introdução Política Aos Quadrinhos”. Nele, oescritor seridoense analisou, dentre outras vertentes temáticas, as seguintes: o papel dos quadrinhos em relação à luta dos trabalhadores; a questão de um quadrinho politicamente combativo; a ideologia dos super-heróis; o imperialismo cultural em Mickey e Tio Patinhas; o negro e a mulher nos comics; o mundo de Mafalda; o imaginário gráfico no quadrinho moderno; a relação cartum/quadrinho e o quadrinho alternativo brasileiro; Zeferino e Graúna: a escrita de Henfil.
A seriedade da pesquisa histórica e da colocação críticae teórica de MC levou o Ministério da Cultura, através da FUNARTE, a encampar a publicação do seu livro “História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros”, que foi lançado em 1990, em uma edição da Europa – Empresa Gráfica e Editorial, do Rio de Janeiro. É um livro de mais de 100 páginas, todo ilustrado, e abrangendo toda a produção brasileira no gênero, inclusive as criações de desenhistas e roteiristas do Rio Grande do Norte. Este livro recebeu o Prêmio cubano Las Palmas.
   O sexto livro de MC sobre o tema revestiu-se de uma característica interessante: desde o título (“Quadrinhos, Sedução e Paixão”, publicado pela Vozes em 2000), mostrou que o crítico sério, marxista, sociólogo das comunicações, era também um leitor apaixonado dos quadrinhos. Ou – como é explicado na orelha do livro –afinal, a febre sociológica, que norteava os primeiros ensaios sobre os quadrinhos, nos anos 60 e 70, já passara. O momento exigia uma reflexão mais profunda sobre as potencialidades criativas e seus devaneios oníricos, assim como continuava exigindo uma visão acurada de seus embates ideológicos e de sua relação com as novas tecnologias e algumas das demais linguagens do campo artístico.
   O último livro de MC sobre o tema quadrinhos, que foi “A Escrita dos Quadrinhos”, publicado em 2005 pela editora Sebo Vermelho, traz um estilo que emociona, substancializado inicialmente (primeiro capítulo: “Meus primeiros gibis”) pela memória. MC escreve/explica: “meus amigos, minhas amigas, companheiros e companheiras de viagem cultural, não estou aqui para fazer teoria, pois já o fiz (particularmente em Para ler os quadrinhos, 1972, e Quadrinhos, sedução e paixão, 2000). Estou aqui, istodespedida.”
   Esta última frase pode levar às lágrimas os amigos do escritor falecido. Mas seria apenas uma maneira de dizer, emocionadamente, que era o último livro sobre quadrinhos que ele escreveria? Porque, embora tenha um estilo mais juvenil (até humorístico em determinados trechos) e um leque de assuntos mais abrangente que apenas quadrinhos (incluindo ficção científica, cinema, pintura etc.), no livro o impulso de teorizar não deixou de estar presente (e isto não é uma coisa negativa; teorizar é necessário para se explicar posições críticas e análises de linguagens); como, por exemplo, a visão da poeticidade visual dos quadrinhos (v.p.81 do livro: “Em sendo uma escrita gráfica, as Histórias em Quadrinhos alimentam-se formal e estruturalmente de procedimentos técnicos visuais que estão em sua base semiótica de produção e realização. Por isso mesmo, mais do que outros discursos da arte sequencial (particularmente, cinema e telenovela), os quadrinhos podem se aproximar da poesia visual”.
   É importante saber que, em “A Escrita dos Quadrinhos”, MC não condenou o uso internáutico dos quadrinhos. Diz ele: “Os quadrinhos, que sempre se valeram do papel como suporte material, passam a ser uma nova linguagem, ainda em fase de transição criadora, a partir de elementos de sua própria linguagem, além de procedimentos técnicos comuns à computação gráfica, ao cinema de animação e à interatividade proporcionada pela internet e suas maravilhas no campo das conquistas provenientes da tecnologia.”

   No entanto, MC, como um sempre elogiável humanista aberto à visão planetária, alerta no livro que “praticamente toda a África e partes consideráveis das Américas e da Ásia ainda não vivem o processo de informatização de seus núcleos sociais”; e que “seus problemas de sobrevivência não são meras abstrações metafísicas. Esses núcleos, considerados socialmente, precisam antes lutar por conquistas básicas mais urgentes, sem as quais a dignidade humana pode se perder no mais vazio e cruel dos mundos. Afinal, para a grande maioria de seus habitantes, massacrados pela fome e pela miséria, trabalho,moradia, transporte, saúde, alimentação e educação fundamental são mais importantes do que qualquer hipertexto.”

Texto publicado na edição do Suplemento cultural "Nós, do RN" - fevereiro de 2014

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