31 de outubro de 2017

A GRANDEZA DE UM PEQUENO ESTADO


O Rio Grande do Norte é um pequeno Estado, mas possuidor de uma grandeza extraordinária. Vejamos alguns inusitados exemplos, na formação dos privilégios ditos sagrados e profanos ou aquilo que a história nos registra com seriedade e absoluta autenticidade. Para fortaleza da fé, temos três dioceses e para glória das letras, 4 academias bem conceituadas: a de Letras, a de Trovas, a de Medicina e a de Odontologia.
Seguimos a literatura com unhas, nervos e dentes. Somos uma terra abençoada por Deus e agraciada pelos deuses. Em todos os países católicos e ditos apostólicos, romanos, espalhados pelo globo terrestre, a beatificação ou canonização que permite o santo subir aos altares só acontece com um agraciado. A Segunda Santíssima Trindade, composta com a presença do Filho – Jesus, Maria e José – deve-se à divina missão, aqui na terra, confiada pelo Pai para remissão dos nossos pecados. Nessa sagrada sequencia, aparecem os Três Reis Magos, feitos santos pela piedade popular, independente de qualquer dogma de fé. Os Reis Magos desembarcaram em Natal e habitaram o nosso Forte, em forma de retábulo, em 1598, isto é, 98 anos após a celebração da primeira missa, em terra brasílica. Das Onze Mil Virgens lideradas pela britânica Santa Úrsula faz-se muita restrição à peregrinação virginal devido ao caráter lendário que envolve aquelas vestais. Não se sabe se o martírio dessa multidão de santos foi praticado pelos hunos de Atila ou pela perversidade dos romanos de Maximiano, o que resulta mais de um século entre o vândalo e o bárbaro.
Cosme Damião, árabes, irmãos e médicos, amigos dos pobres e inimigos do dinheiro, afirma os hagiólogos que foram decapitados no governo de Diocleciano por ordem do desalmado procônsul Lísia, isso lá pelo ano 287. O papa São Felix IV, no ano 530, erigiu-lhes uma igreja em Roma e assim eles subiram aos altares. Por sua dedicação aos pobres e nunca lhes terem cobrado uma consulta, foram apelidados, em grego, de anargyroi (sem prata), os únicos médicos do mundo inimigos de dinheiro, um belo exemplo de pobreza que deve ser um repúdio à classe argentária da qual eles são legítimos patronos. Já tivemos, aqui, recentemente, uma dupla de policiais vigilantes e andarilhos crismados pelo Comando como Cosme e Damião. Ignoravam os xarás médicos da Arábia e, em vez de bisturi, usavam revólveres e cacetetes. Não eram inimigos do dinheiro, mas ganhavam pouco e nada lhes sobrava para esmolas ou ajuda aos amigos. São escorços raros, mas não são lendários. Quanto à canonização, o modelo predominante é a beatificação de apenas um escolhido recomendado aos céus através de meticuloso exame e, ainda por cima de tudo, obedecendo a processo acompanhado do advogado do diabo. Esse acusador diabólico já vem de longe. Para depurar a paciência de Jó, consentiu o Senhor a intervenção de Satanás e entregou Jó ao seu poder – ecce in manu tua est (Jó 2,6), e Jó ficou à disposição de Satanás cujo objetivo era esgotar-lhe a humildade. Aqui na terrinha do índio Poti, em breve por cuidadoso processo teremos 30 santos e mártires beatificados de uma só vez, o que muito fortalece a nossa fé.
Em todas as Academias literárias do mundo, a disputa por uma vaga é bastante renhida. Costumeiramente, dois conspícuos competidores lutam pela sorte da imortalidade olímpica. O vitorioso prevalece-se do critério de justiça; o derrotado sente-se injustiçado. Surgem dissabores e inconformações.
Algumas Academias são exageradamente muito exigentes. Schopenhauer, por exemplo, certa vez, concorreu ao concurso da Academia de Copenhague com seu livro Fundamento da Moral.
O livro estava cheio de insultos a Hegel. Foi candidato único e deixou de ser premiado. Passou a amar o seu cão sobre todas as coisas por ser o mais próximo amigo do homem.
Aqui entre nós outros, ad lucem versus, elegem-se 3 deles de uma só vez, no mais compreensivo processo de igualdade e imortalidade, porque cada um é único, livre e de bons costumes. Por serem únicos, não incorrem no risco da injustiça. Três posses lhes são asseguradas. No mesmo vagão, embarcam 3 sócios honorários ad majorem Academiae gloriam. Nesse belíssimo exemplo de tolerância universal, os três eleitos e os outros três escolhidos passam a gozar do mesmo encanto dos três deuses principais do Olimpo ou das três Graças da mitologia romana e brilham como as três estrelas da constelação de Orion, conhecidas como as Três Marias.
Nossa Academia segue fielmente o conselho de Tobias a seu filho: quod ab alio oderis fieri tibi, vide ne aliquando alteri facias – nunca faças aos outros o que não quere que os outros te façam. É essa a filosofia adotada pela nossa Academia de Letras, na grandeza de suas intenções e na presteza de suas adoções.
Na política, temos o clã, aquilo que no inglês medieval chamava-se clann e se restringia às tribos irlandesas e escocesas.
Nos tempos bíblicos, o clã era o mesmo que tribo e significava bastão, em hebraico shebet, emblema da tribo, símbolo de autoridade e comando. O cetro do rei ou o básculo do bispo. Os integralistas usavam, na lapela, a letra grega sigma, no sentido matemático de soma integral do produto; e o integralismo foi forte e valoroso, em nosso Estado. De tribos só tivemos as dos índios. Uma delas valorizou heroicamente o bastão de comando do guerreiro Poti. Nas festas de Momo, ainda hoje desfilam os índios do Alecrim, que servem de atração ao nosso carnaval.
Entre nós habitantes do pequenino Estado, dispomos da grei familiar, o que os romanos chamavam grex, no sentido de rebanho de gado miúdo. Nosso rebanho familiar é graúdo e congrega politicamente avós, pais e netos. Os latinos faziam grande diferença entre sobriuns e patruelis, o que nós englobamos como sobrinhos. Sobriuns era o filho da irmã e patruelis o do irmão. Nota-se que entre os romanos havia um pouco de preconceito na relação de parentesco. Nepos, nepotis era o neto. Cícero, no seu De lege agraria, chamou a esse nepos de perdulário. No Evangelho, tem igual conceito o filho pródigo – filius vivendo luxuriose.
Quanto ao nepotismo (o vínculo com o neto) três infalíveis papas o transformaram em favoritismo excessivo dispensado ao seus sobrinhos, porque nepote passou a ser sobrinho do Santo Padre. No livrinho chamado Arte de Furtar, esse nepote é reconhecido como confidente do Soberano Pontífice. A Arte de Furtar, se não é lido, é pelo menos muito apreciado em nosso país, porque aqui se furta com arte. E o nepotismo, em nosso Estado, aperfeiçoou-se com mais graça do que aquela concedida pelos papas e traduz os seus invejáveis privilégios.
Entre outras maravilhas, Natal ainda goza da reputação de possuir o melhor clima do mundo. Possui também a fama de ser o Estado onde mais se rouba bancos, o que permite ao assaltantes o privilégio pela facilidade da rapina. O que antes era violência, hoje se registra como simples ocorrência. A Segunda Grande Guerra abalou o mundo. As batalhas ocorreram muito distante do nosso Cabugi ou dos estrondos de Baixa Verde. Duas mil léguas longe daqui aconteceu o Dia D houve a pacificação pela invenção do armistício e, finalmente, a assinatura da rendição do Japão, lá pela baia de Tóquio.
Antes disso, o Presidente americano se dignou conferenciar pacificamente com o nosso Presidente brasileiro, aqui no estuário do Potengi amado. No auge da guerra, desfilaram, pelas ruas e Natal, personalidade ilustres oriundas de outros países: generais, príncipes e estrelas da constelação de Hollywood. Terminada a guerra, coube a Natal a glória inusitada de ter sido o Trampolim da Vitória, o teatro de hostilidades mais pacifico do universo, no qual jamais se viu um exército em marcha belicosa ou se ouviu um tiro de canhão, a não ser a festiva salva de tiro reservada ao general, o que se chama tiro de festim e só serve para assustar crianças e abalar os nervos dos velhos.
Festim é uma palavra tão miúda que até lembra chumbo de espingarda na caça de arribaçã, o que também é um privilégio reservado à nossa macambira e seria bem mais proveitoso se não houvesse a intervenção do IBAMA. Do nosso Trampolim da Vitória fez-se um filme “for all” – para todos. Nenhum relacionamento com forró. A invasão holandesa concorreu para fertilizar o viveiro de mártires e de santos. Durante aqueles longos anos de ocupação, nosso estado assemelhou-se à Roma de Vespasiano e a nossa capital chamou-se garbosamente Nova Amsterdam. É pena que os invasores não tivessem imposto o idioma batavo para maior engrandecimento de nossa cultura linguística e de nossa hagiografia no rastro dos bolandistas ocupados com a Acta Sanctorum.
O nosso índio Poti, herói de raça, nascido ali em Aldeia Velha, recebeu a graça do batismo com o santo nome de Antônio e o título de Dom, uma distinção de tratamento só concedido a reis e bispos entre Espanha, Portugal e Brasil, Por pouco não foi santificado para honra e glória da aldeia.
Num Estado castigado pelas estiagens, dispomos da maior barragem do mundo, o que deixou a Assuã arrasada. Em 1991, tivemos a divina graça de recebermos cristamente o legítimo representante de São Pedro, que veio direto do Vaticano encerrar, aqui em Natal, o XII Congresso Eucarístico Nacional. E por último, ainda usufruirmos do Carnatal, no que somos genuinamente criadores, competindo momescamente com o outro de Sapucaí. Isso nos permite a feliz oportunidade de ensaiarmos a batalha de confeti e brincarmos irresponsavelmente 2 vezes por ano durante 2 semanas consecutivas, o que nos cabe 15dias de festas intermitentes. Como a folia foi criação nossa e já se espalhou por outros Estados e municípios, já nos obrigamos cobrar direitos autorais.
Em matéria de botânica, possuímos o maior cajueiro do mundo. Nas arrojadas navegações e descobrimentos de terras longínquas, recebemos a visita de Américo Vespúcio que em junho de 1499 velejou pelo delta do Açu em cujas margens fundou feitorias. Isso pelo menos é o que nos dizem alguns historiadores inventivos.
 Já agora somos responsáveis pelo descobrimento do Brasil. A carta de Pero Vaz foi erroneamente data na ilha de Vera Cruz, porque Porto Seguro é o Cabo de São Roque, onde Cabral desembarcou em 1500. A primeira missa celebrada em terra firme foi diante dos primitivos potiguares e Jorge Dosoiro foi transferido de Sam Thomé para Touros. O Cabugi de Aluizio Alves - é o monte Pascoal avistado por Cabral. Não é maravilhoso?!
Recentemente, um respeitável médium, com experiência “na vida passada”, o que ele chama de “pretérito espiritual”, em entrevista ao suplemento Podium (07.09.98), disse que, na Praia de Natal, existiu uma “Base dos Atlantas” chamada Atlan, anagrama de Natal, Isso há 1.500 anos, presumivelmente A.C. quando o mar aqui era gelado.
Não vamos discutir o trânse mediúnico ou o karma kardecista envolvendo o perispírito. O importante, segundo o médium, é que atualmente “encontra-se reincarnado aqui em Natal a maioria dos discípulos que seguiram Jesus, no seu ministério”. Par engrandecimento da cidade isso nos basta.
Essa visão mediúnica não é só privilégio seu, é também nosso privilégio ter essas santas criaturas vivendo entre nós outros tão distanciados da pregação de Jesus. Ora, Jesus, depois da ressurreição, na aldeia de Emaús, apareceu a 2 discípulos incrédulos. Aqui em Natal temos uma outra Emaús, onde fica A Morada da Paz. Nessa morada silenciosa, em breve, depois de sepultada, reflorescerá uma nova imortalidade acadêmica, em forma de quiliasmo. Aquilo que estava previsto para o ano 1000, em Jerusalém, com a vinda de Jesus, poderá acontecer em 2001, em Natal, na aldeia de Emaús, em Parnamirim, que será o segundo Trampolim da Vitória. Em breve teremos lá inaugurada a Academia dos Renascidos.
Por outro lado, no setor cultural, Natal é a cidade que lança mais livros no mundo, em todos os gêneros literários, às vezes até dois livros por mês o ano inteiro. Quem sabe se o autor do Paraíso Perdido também não está reencarnado entre nossos bons intelectuais reorganizado seu segundo pandemonium, o que será um achado.
Com estas mudanças no curso da história favorecendo e engrandecendo nosso pequenino Rio Grande, fica também provado que o barão de Munchausen nasceu em Natal e não em Hanover e privou da amizade do barão da Redinha, ad majorem terrae gloriam.
Se Jesus um dia voltar à terra, estou certo de que virá para Natal. Aqui jamais será crucificado e viverá em paz entre os ladrões. Os poucos judeus que migraram para cá ainda não tiveram tempo de erigir um sinédrio (em Pretório nem se fala) por conseguinte estaremos sempre livres de Anás, Caifás e Herodes; e que Pilatos permaneça lá no Credo onde o colocou Santo Atanásio para ser relembrado nas missas dominicais. Esqueçamos Judas. Presumivelmente, segundo as tradições do século IV, foi a Fortaleza Antônia, em  Jerusalém, que serviu de Pretório ou Tribunal onde Jesus foi julgado. Aqui em Natal temos a Fortaleza dos Reis Magos, que também tem a forma de estrela (Pentágono dos Magos) e para lá, na tradição da estrela de Belém, Dom José, rei de Portugal, nos mandou, em 1755, as três imagens dos Reis Magos, outro privilégio da cidade presépio. Que queres mais?
Deixemo-nos embalar nesse doce enlevo de vida alegre e gozemos dos privilégios que Deus se dignou reservar para taba de Poti. Hoje já podemos repetir imperativamente sem nenhum exagero de plágio:
-Criança!... não verás Estado nenhum como este; e não fiques aí a ouvir estrelas. Nosso céu é limpo e estrela não é sino que se ouça. Quando Bilac inventou de ouvi-las estava surrupiando uma frase de Arsêne Houssaye, que as ouviu antes dele, segundo nos revela Agrippino Grieco; Rafael Cansinos Asséns, citado por Jorge Luis Borges, gabava-se de estudar as estrelas em 14 idiomas. Muito antes dele, o capitão inglês Francis Burton, tradutor de As Mil e Uma Noites, deixando seu povo familiarizado com os 40 ladrões das Noites Arábicas, arrogantemente, dizia que sonhava com as estrelas em 17 idiomas. Ambos eram astrólogos sonhadores. Nossos poetas de cá, por mais inspirados, não chegaram a tanto. Olham as estrelas sem ouvi-las nem contá-las; e em plácido silêncio perdem-se no mundo da lua, o que é outro encanto da terrinha querida.
-Criança!... não verás Estado nenhum como este.... ora você veja só!...


(Transcrito do Jornal “O GALO” maio/junho 1999 – José Melquíades de Macedo (falecido), foi professor da UFRN, escritor e romancista).

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