Carlos Henrique G.
Leiros
Nos idos de 1970, o bairro do Alecrim rivalizava em
importância com a Cidade Alta, e ainda não havia se transformado no subúrbio
triste e impessoal de hoje, abraçado por uma feira com manias de grandeza e
despido dos velhos casarios. Respirava-se ali uma atmosfera de burgo; tinha-se
ali noção das redondezas. Bastava que se subisse a uma cumeeira e a visão dos
prédios de baixo porte se alongava, emoldurada por árvores velhas e quintais
saudosos. Isso não existe mais. O Alecrim era sinônimo de classe-média, terra
de amanuenses e funcionários públicos. Ninguém cabia em si de tanto orgulho dos
loucos, como Lambretinha e Corisco, o primeiro chutando as latas de lixo, e o
segundo jurando morte àqueles que o acusavam de haver roubado as imagens da
Igreja de São Pedro ou mordido o nariz de Frei Damião.
Eram os tempos do Cine São Luiz, do prédio da Souza
Cruz na esquina da Presidente Bandeira, recepcionando quem desembocava dos
lados da Sílvio Pélico, da Base Naval, da Alfaiataria de Ebenezer e da casa de
Tatu, figura das mais folclóricas do bairro. Ali, no comecinho da Presidente
Bandeira, eu morei por anos. Na Presidente Bandeira, principal do Alecrim, vivi
tempos de garbo e traquinagens, chegando a conhecer bem o seu primeiro terço,
que se estendia até as imediações das funerárias e do velho prédio do Detran,
já uma famosa sinecura.
Depois do relógio, para os lados das Quintas
profundas, eu nunca me aventurei. Tampouco conhecia o lado oposto, além da
feira, nos confins do “Chapéu Cagado”, onde, dizia a minha mãe, morava um louco
encarcerado. Além do Café Vencedor, terras de Brasa de Goma e seu feérico
desempenho de alcova, muito menos. Fui menino apenas da Presidente Bandeira e
cercanias. É dessa época a minha experiência com o saudoso serpentário. Não me
lembro por quais mãos o sinistro ônibus se apresentou perante o bairro. Lembro
somente que minha mãe ou meu pai comentou a respeito. Um belo dia ele estava
lá, e eu o vi, estacionado na calçada d'A Girafa, com o povaréu ao redor.
O serpentário era motivo de assunto em qualquer
lugar, e todos comentavam s o b r e o ô n i b u s comprido e niquelado, c o m a
s j a n e l a s gradeadas, e repleto de gaiolas, onde, dizia-se, a g l o m e r
a v a m -s e bichos peçonhentos de toda a sorte e à vista de todos, bastando
apenas que o incauto pagasse uma módica quantia para ter acesso ao covil d a s
f e r a s , n u m fantástico arremedo de Freak Show ou Feira de Aberrações. Na
porta do serpentário, um velho de aspecto dantesco completava o ambiente, que
se tornaria propício a inúmeros dos meus pesadelos. Logo cedo, fazia-se a
romaria dos curiosos - homens puxando meninos, cabrochotes da feira, gente
desocupada – formando fila. Uns estrebuchavam na saída, aos trotes e aos
prantos de medo.
Outros se retiravam desmistificando o espetáculo,
mas, nesses, eu nunca acreditei. Diziam-me que entre os animais aprisionados as
cobras eram a sensação, mas não se podiam descartar os aracnídeos e roedores
ferozes, timbus, etc. O único senão era a insuportável catinga que exalava do
velho ônibus, fruto dos dejetos e urina acumulados. Como nunca reneguei
qualquer patifaria infantil, idolatrava e defendia até mais não poder o
serpentário e seu suspeito mestre de cerimônias, principalmente quando os
adultos se queixavam do mau cheiro e ameaçavam queixas à Saúde Pública. Ali
compareci diversas vezes, acompanhado de Francisca, uma saloia amulatada que
era dama de companhia de minha mãe. E por uns tempos, abandonei a farda de
polidoro (do Exército, com coturno e tudo), com a qual desfilava o dia inteiro ao
redor da casa. Mas os dias do serpentário estavam contados.
Não sei se por queixas ou por simplesmente
representar uma atração sazonal, uma certa manhã o ônibus anoiteceu e não
amanheceu. Foi-se a maior sensação daqueles tempos no Alecrim, pelo menos para
mim. Diria mais: na minha humilde concepção de criança, nada suplantou o
serpentário. Nem as comédias no Cine São Luiz; nem as passeatas ao som de “vou
barrar o fechador”; nem as visitas ao túmulo de Baracho. Que me de s culpem
Lambretinha e Corisco, Brasa de Goma e a Velha da Carimã, todos guardados no
coração como adorados bibelôs. Mas é que diante do maravilhoso serpentário,
tudo parece apenas coadjuvante em minha já nublada memória de alecrinense.
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