5 de novembro de 2014

O Mestre

--- Walter Medeiros* – waltermedeiros@supercabo.com.br

A história do Rio Grande do Norte estaria incompleta se não fosse dada a verdadeira importância do Movimento Estudantil, que foi resgatado a duras penas por dedicados militantes que colocaram a luta contra a ditadura militar acima de qualquer outro interesse. Mas entre esses militantes existe uma pessoa cuja participação precisa ser bem situada, explicada e entendida. Trata-se de Juliano Siqueira, que já havia passado pelos porões da repressão e retomava sua vida estudantil como estudante de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, a partir da inauguração do campus.

Juliano foi a maior referência da resistência, tanto pela sua experiência e preparo, como pela liderança nata que levou a estudantada a reunir-se em torno das lutas que eram identificadas como necessárias e indispensáveis. Era um tempo em que a sala de aula da nossa turma – tive o privilégio de ser seu colega de curso – reunia nada menos que oito agentes da Polícia Federal e outros órgãos de segurança. Tempo em que todos desconfiavam de praticamente todos. A relação de confiança para participação nas atividades políticas era algo construído com o máximo de cautela, mas era impossível não correr certos riscos.

Nesse cenário iam sendo retomadas as atividades da política estudantil, das quais lembro bem a primeira, a eleição do representante dos estudantes de Direito no colegiado do curso. Disputa acirrada entre um civil, no caso eu mesmo, e um estudante de Direito capitão da Polícia Militar, Domício Damásio. Ganhamos a eleição com uma grande margem, o que nos deixava com um sentimento indescritível: um misto de vitória e vibração, com receio do que poderia advir naquele novo cenário. Depois nossos colegas democratas e socialistas foram sendo eleitos para os diretórios acadêmicos e finalmente para o Diretório Central de Estudantes - DCE, cuja eleição, a exemplo do que ocorria na política geral, era indireta: cinco presidentes de diretórios elegiam o Presidente do DCE.

Em 1976, na eleição para o DCE o candidato dos democratas e das chamadas esquerdas era o estudante de Direito Jair Elói de Souza. Mas havia uma informação de que poderia ter seu nome vetado pela Assessoria de Segurança e Informação – ASI, por conta da sua atuação política. Havia a impressão de que o meu nome seria menos visado, daí a decisão de registrarmos a minha candidatura a Presidente do DCE. Caso a candidatura de Jair não fosse vetada, eu retiraria a minha. E foi o que aconteceu. Depois de confirmada a candidatura, retirei a minha e aquele colega foi eleito Presidente do DCE, entidade que tinha sede no prédio do IFRN da Avenida Rio Branco.

Cada fato político de importância nacional era comentado e discutido pelas lideranças estudantis universitárias, que diariamente planejavam suas atividades nos mais diversos locais, sempre driblando aqueles agentes dos órgãos de segurança que podiam até saber parte dos nossos roteiros, porém eram seguramente despistados. Mas chegavam a desenvolver ações mais diretas na tentativa de inibir o movimento.

Em dado momento houve uma manifestação de estudantes em São Paulo, com cerca de cem participantes. Era uma grande multidão para a época onde três pessoas conversando já preocupavam à repressão. O fato foi noticiado por mim através da Rádio Cabugi, onde trabalhava como redator. Poucos minutos depois o diretor da Rádio, José Gobat foi chamado a dar explicações na Polícia Federal, que funcionava perto da sua residência, em Tirol. Ia ser noticiado na Tribuna do Norte, através de matéria de Edilson Braga, mas a PF tomou conhecimento e Agnelo Alves foi chamado para receber a informação de que a matéria estava censurada.

Nos dias seguintes os estudantes de Natal elaboraram e divulgaram uma nota de apoio ao movimento de São Paulo, numa reunião de cerca de sessenta pessoas realizada no Campus. Como resultado, todos foram chamados a depor para dar explicações na ASI ou na Polícia Federal. Naquele tempo a agenda dos colegas era complicada. François Silvestre também fazia parte da nossa turma de Direito e havia sido preso pela PF. Em dado momento invadiram e fizeram uma busca na casa de Juliano Siqueira, situada na rua Jundiaí. Lembro de quando nos reencontramos com ele e ele relatou sobre coisas que levaram, inclusive alguns poemas de sua lavra. Não sei se os resgatou.

Minha namorada à época (home minha mulher), Graça foi chamada à ASI e sofreu pressões para afastar-se de mim e dos demais participantes do Movimento Estudantil. Fui caçado em casa e na rua, até que me pegaram na redação da Tribuna do Norte e fui levado a depor na Polícia Federal, onde compareci por três dias. Ali fizeram acareação minha com François, para tentar criar contradições em nossos depoimentos. Quando cheguei à PF e fui levado à presença do superintendente Hugo Pôvoa, o professor Varela Barca estava tratando da liberação de um curso de Russo para um dentista que necessitava de literatura naquele idioma. Varela Barca afirmou que a partir daquele momento estava ali como meu advogado. Mas o policial garantiu não ser necessário que permanecesse. Também meu irmão Wellington Medeiros, chegando de viagem a São Paulo foi até a PF tomar pé da situação. Estava terminando meu depoimento e fui liberado, saindo com ele.

Em 1977, para concluir o curso, candidatei-me a orador da solenidade geral de colação de grau. Apresentei o discurso a ser proferido e fui chamado pelo professor Paulo Soares, que sugeriu retirar o discurso para que não fosse vetado. Disse-lhe que não desistiria e que se tivessem de vetar, que o vetassem. Assim ocorreu. O discurso foi vetado e o orador da solenidade naquele ano foi um sargento do Exército. Paralelamente eu havia sido escolhido orador da turma de Direito. Resultado: o mesmo discurso vetado eu li na Aula da Saudade, que ainda tenho na memória. O professor Américo de Oliveira Costa fez referência ao meu discurso considerando-me um “idealista”.

Os fatos importantes daquela época passavam pela discussão do grupo, que reunia estudantes de todos os centros, bem como agregados das lutas democráticas e, pela clareza com que conseguia interpretar e orientar as ações, a maioria tratava, merecidamente, Juliano como o Mestre. O local era determinado pelas circunstâncias: uma sala de aula, um cinema, um bar, o cineclube. Juliano conseguia transmitir um imenso amor à causa do povo, uma fé na força popular, uma esperança num futuro livre daquelas aflições, uma certeza em meio a um imenso mar de dúvidas. A lembrança de escrever esse relato tem, portanto, como objetivo, deixar esse registro da homenagem ao amigo lutador, a quem os potiguares e brasileiros devem parte do que conquistaram a partir dos avanços democráticos das décadas seguintes aos anos 70.

*_JornalistaO Mestre

--- Walter Medeiros* – waltermedeiros@supercabo.com.br

A história do Rio Grande do Norte estaria incompleta se não fosse dada a verdadeira importância do Movimento Estudantil, que foi resgatado a duras penas por dedicados militantes que colocaram a luta contra a ditadura militar acima de qualquer outro interesse. Mas entre esses militantes existe uma pessoa cuja participação precisa ser bem situada, explicada e entendida. Trata-se de Juliano Siqueira, que já havia passado pelos porões da repressão e retomava sua vida estudantil como estudante de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, a partir da inauguração do campus.

Juliano foi a maior referência da resistência, tanto pela sua experiência e preparo, como pela liderança nata que levou a estudantada a reunir-se em torno das lutas que eram identificadas como necessárias e indispensáveis. Era um tempo em que a sala de aula da nossa turma – tive o privilégio de ser seu colega de curso – reunia nada menos que oito agentes da Polícia Federal e outros órgãos de segurança. Tempo em que todos desconfiavam de praticamente todos. A relação de confiança para participação nas atividades políticas era algo construído com o máximo de cautela, mas era impossível não correr certos riscos.

Nesse cenário iam sendo retomadas as atividades da política estudantil, das quais lembro bem a primeira, a eleição do representante dos estudantes de Direito no colegiado do curso. Disputa acirrada entre um civil, no caso eu mesmo, e um estudante de Direito capitão da Polícia Militar, Domício Damásio. Ganhamos a eleição com uma grande margem, o que nos deixava com um sentimento indescritível: um misto de vitória e vibração, com receio do que poderia advir naquele novo cenário. Depois nossos colegas democratas e socialistas foram sendo eleitos para os diretórios acadêmicos e finalmente para o Diretório Central de Estudantes - DCE, cuja eleição, a exemplo do que ocorria na política geral, era indireta: cinco presidentes de diretórios elegiam o Presidente do DCE.

Em 1976, na eleição para o DCE o candidato dos democratas e das chamadas esquerdas era o estudante de Direito Jair Elói de Souza. Mas havia uma informação de que poderia ter seu nome vetado pela Assessoria de Segurança e Informação – ASI, por conta da sua atuação política. Havia a impressão de que o meu nome seria menos visado, daí a decisão de registrarmos a minha candidatura a Presidente do DCE. Caso a candidatura de Jair não fosse vetada, eu retiraria a minha. E foi o que aconteceu. Depois de confirmada a candidatura, retirei a minha e aquele colega foi eleito Presidente do DCE, entidade que tinha sede no prédio do IFRN da Avenida Rio Branco.

Cada fato político de importância nacional era comentado e discutido pelas lideranças estudantis universitárias, que diariamente planejavam suas atividades nos mais diversos locais, sempre driblando aqueles agentes dos órgãos de segurança que podiam até saber parte dos nossos roteiros, porém eram seguramente despistados. Mas chegavam a desenvolver ações mais diretas na tentativa de inibir o movimento.

Em dado momento houve uma manifestação de estudantes em São Paulo, com cerca de cem participantes. Era uma grande multidão para a época onde três pessoas conversando já preocupavam à repressão. O fato foi noticiado por mim através da Rádio Cabugi, onde trabalhava como redator. Poucos minutos depois o diretor da Rádio, José Gobat foi chamado a dar explicações na Polícia Federal, que funcionava perto da sua residência, em Tirol. Ia ser noticiado na Tribuna do Norte, através de matéria de Edilson Braga, mas a PF tomou conhecimento e Agnelo Alves foi chamado para receber a informação de que a matéria estava censurada.

Nos dias seguintes os estudantes de Natal elaboraram e divulgaram uma nota de apoio ao movimento de São Paulo, numa reunião de cerca de sessenta pessoas realizada no Campus. Como resultado, todos foram chamados a depor para dar explicações na ASI ou na Polícia Federal. Naquele tempo a agenda dos colegas era complicada. François Silvestre também fazia parte da nossa turma de Direito e havia sido preso pela PF. Em dado momento invadiram e fizeram uma busca na casa de Juliano Siqueira, situada na rua Jundiaí. Lembro de quando nos reencontramos com ele e ele relatou sobre coisas que levaram, inclusive alguns poemas de sua lavra. Não sei se os resgatou.

Minha namorada à época (home minha mulher), Graça foi chamada à ASI e sofreu pressões para afastar-se de mim e dos demais participantes do Movimento Estudantil. Fui caçado em casa e na rua, até que me pegaram na redação da Tribuna do Norte e fui levado a depor na Polícia Federal, onde compareci por três dias. Ali fizeram acareação minha com François, para tentar criar contradições em nossos depoimentos. Quando cheguei à PF e fui levado à presença do superintendente Hugo Pôvoa, o professor Varela Barca estava tratando da liberação de um curso de Russo para um dentista que necessitava de literatura naquele idioma. Varela Barca afirmou que a partir daquele momento estava ali como meu advogado. Mas o policial garantiu não ser necessário que permanecesse. Também meu irmão Wellington Medeiros, chegando de viagem a São Paulo foi até a PF tomar pé da situação. Estava terminando meu depoimento e fui liberado, saindo com ele.

Em 1977, para concluir o curso, candidatei-me a orador da solenidade geral de colação de grau. Apresentei o discurso a ser proferido e fui chamado pelo professor Paulo Soares, que sugeriu retirar o discurso para que não fosse vetado. Disse-lhe que não desistiria e que se tivessem de vetar, que o vetassem. Assim ocorreu. O discurso foi vetado e o orador da solenidade naquele ano foi um sargento do Exército. Paralelamente eu havia sido escolhido orador da turma de Direito. Resultado: o mesmo discurso vetado eu li na Aula da Saudade, que ainda tenho na memória. O professor Américo de Oliveira Costa fez referência ao meu discurso considerando-me um “idealista”.

Os fatos importantes daquela época passavam pela discussão do grupo, que reunia estudantes de todos os centros, bem como agregados das lutas democráticas e, pela clareza com que conseguia interpretar e orientar as ações, a maioria tratava, merecidamente, Juliano como o Mestre. O local era determinado pelas circunstâncias: uma sala de aula, um cinema, um bar, o cineclube. Juliano conseguia transmitir um imenso amor à causa do povo, uma fé na força popular, uma esperança num futuro livre daquelas aflições, uma certeza em meio a um imenso mar de dúvidas. A lembrança de escrever esse relato tem, portanto, como objetivo, deixar esse registro da homenagem ao amigo lutador, a quem os potiguares e brasileiros devem parte do que conquistaram a partir dos avanços democráticos das décadas seguintes aos anos 70.

*_Jornalista


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