Estou
chegando a uma idade (ou já desembarquei?) na qual a evocação de antigas e
perdidas amantes, matérias de memória ou de sonho, não incomoda sequer minha
mulher. O mais que a recordação provoca é um muxoxo. De condescendência. Ou ceticismo.
Pois
vá a confissão em boca de cena: Natal foi minha amante desde eu menino. Nem
conhecia os calores femininos e ela já era meu segredo. Tudo que era, tudo que
possuía, seus mistérios, e dengues, e faceirices, e simulações – eu conhecia no
silêncio de minhas caladas tentações e posses. Natal era meu alumbramento. E
não se diga que o menino de então não conhecia cidade maior do que a sua
Mossoró. Não, não. Já vivera em Fortaleza. Natal era uma eleição, uma opção.
Uma tendência.
E
pela vida afora, daquela infância perdida a este velhice mais perdida ainda,
ela tem sido minha obsessão constante, fiel. Livre ela aos ventos que vêm do
mar e eu preso aos ciúmes, ternuras. Às coisas mais secretas e inefáveis do
querer-bem.
Natal
mudou, aleluia. Não mudou minha paixão pela cidade que se multiplica sem perder
sua unidade. Cresce biblicamente em graça e em sabedoria: ela cresce e eu
diminuo. O progresso não a avilta. Maior e quase cosmopolita, ela não é a “vaca
colorida” ou “vício de pedra”, como das grandes cidades maldizia Nietzsche pela
boca de fogo de Zaratustra.
Natal
cresce sem perder a identidade, sem esfarelar seus miolos, sem soltar seu
tutano, mantidos os escondidos que fazem a glória das autênticas cidades dos
homens.
A
minha primeira Natal foi a dos anos 40. Haviam rastros ainda de americanos que
não conseguiram ordinarizá-la. Lá está a Ribeira, ali o Alecrim, Petrópolis, as
Rocas proletárias, Tirol de Enéas Reis e Xixico Couto. Bondes, mangueiras,
sombras e iluminações. Sobradões. Sítios. Solares dos últimos coronéis ainda
não devastados pela cupidez da especulação capitalista, materialista. Foi a
Natal de minha gente: Enéas Reis, Xixico Couto, Eutiquiano, tia Justa, tio
Manuelzinho, o mulato Chagas, matinês do Rex, barracas na pracinha (cadê Ivone,
meu bem?), Tirol terminando aos pés do Aero Clube, Redinha quase
exclusivamente.Natal do “Jornal de Natal” Café, Sandoval, Calafange, Floriano,
Dom Marcolino, Zé Varela. (Como eram gostosos os cigarros daqueles tempos,
fumados às escondidas, comprados a retalho, Selma, Astória, Mistura Fina,
Continental. Iguais, só as tentações não realizadas de ousar as noites longas
nas ruelas proibidas de uma Ribeira que só despertava às desoras).
Natal
dos anos 50. Cheguei, adolescente, trazido por Djalma Maranhão. Pensão
Comercial da Rua Coronel Bonifácio, hoje Câmara Cascudo. Cuidados de dona Rosa,
atenções de Morais. A aventura macha de morar sozinho. Trabalhava no “Diário de
Natal” de Edilson Varela e admirava, de longe, respeito reverencial, justo
respeito, Edgar Barbosa, Américo de Oliveira Costa, Danilo. Tempo de
convivência diária com Leonardo Bezerra, Guaracy Queiroz de Oliveira, João
Batista Pinto, William Cobbett, Araken Irerê Pinto, Aderbal Morelly, Ticiano Duarte,
Luiz Maranhão Filho, Antônio Pinto de Medeiros, Ferdinando Couto.
Era
a descoberta da inteligência, o orgulho de confraternizar com a melhor
juventude da cidade, as noites ouvindo preleções de Leonardo, as madrugadas,
sozinho, no quarto mínimo da pensão humilde, querendo descobrir, em velhos e
ensebados manuais clandestinos, o que era mais-valia e se toda propriedade é um
roubo.
Natal
jovem, irreverente, carnavalesca, poética, política, subversiva, diurna e
vespertina a preparar longas noites de vigílias. Bares. Sorveteria Cruzeiro.
Taboleiro da Baiana. A cervejinha na Pensão Ideal. As putas que nos passavam
gonorreia e humildade.
Tudo
era deslumbramento. Newton Navarro, Dorian Gray, Meira Pires, Manuel Rodrigues
de Melo, Esmeraldo, Luiz Maria Alves, a redescoberta de Jorge Fernandes, José
Gonçalves de Medeiros. A pungência inata de Gilberto Avelino. Cascudo já era
Cascudo. Monumento. Mito. Primeiro – por justiça justa justíssima. Primeiro
Cascudo. Depois os outros.
Depois
Natal nos anos ásperos de 60. A mesma humanidade. Escorrendo, quente, espumoso,
o leite gordo da ternura humana. A solidariedade instantânea de Woden, radical
até na generosidade. O encontro com Maria Emília-Berilo, que marcou tanto e
tanto enriqueceu minha vida. Sanderson, Luiz Carlos, Rubens Lemos, Antônio
Melo, o reencontro com a competência de João Neto, Luiz Maria Alves, Celso,
Myriam Coeli (Maria do Céu), Zila. Amei tanto Natal dos anos 60 que lhe dei, de
nascença, minha Raíssa. Natal – 60 prolongava a Natal de todas as décadas, de
tal forma fascinante que adotei. Mossoró, Aracati, São Paulo, Ouro Preto,
Salvador, São Luís.
A
derradeira Natal foi recente. Eu já alcançado por um enfarte do miocárdio e uma
isquemia cerebral. A cidade maior sem perder sua estatura. Fiel aos seus
valores e desvalores, enriquecida por outras fortunas. Que Natal se renova sem
cirurgia plástica e envelhece alegre com o segredo guardado da eterna
juventude.
Os
Alves – Aluízio, Agnelo, Gobat. Ednólia e Geraldo Melo, as noites estiradas na
conversa amena. João Ururahy, Lalinha e Genibaldo, Zélia Freire, Teresa, Romeu
Aranha, Nídia Mesquita, Marta e Milson, Roberto Varela, Serejo, Albimar, Paulo Tarcísio,
Paulo Macedo, Odilon, Sarinho, Américo, Mário Moacir Porto, Veríssimo, o
admirável Vivi, Elenir Fonseca, Haroldo e Selma, Nei Marinho, Nei Leandro,
Tarcísio Gurgel, Leopoldo Nelson, Franklin Jorge, Eulício, Socorro Trindad,
Gualberto, Marcos Aurélio, Rejane, Mariza. Próximo ou distante, presente, Nilo
Pereira, o mestre, mais doce do que todo Ceará-Mirim.
Multidão.
Diante da multidão, Jesus teve pena, Diante da humana gente de Natal, eu me
ufano de meu país. Afonso Celso e eu. Porque se cada pessoa é ela e sua
circunstância, as circunstâncias natalense têm grandezas. Paris seria melhor
sem os parisienses? Natal carece de seu povo. Completa-se com ele. O mar, os
morros, as dunas, o verde, os botecos, freges e forrós, os grande e os miúdos,
becos e avenidas, calçadões e vielas, povo. Eis Natal humana. Que deve parar de
crescer se não quiser desafiar o bom senso do meio termo.
Depois
de deixar Natal pela última vez, fisgado pôr outra isquemia cerebral, aviso da
delicadeza da Providência, passei a visita-la às pressas, às escondidas quase,
o tempo necessário para beijar os netos e por a benção nos filhos. Com medo,
quem sabe? Do visgo que Natal tem, o mesmo visgo de Mossoró e São Paulo, o
perigo de não querer voltar, achar que pode se dar ao luxo da capital o
interiorano matuto, mais certo no silêncio de seu caritó, entre livros, os
olhos voltados para o pé de cajarana plantado por sua Mãe, faz oitenta anos.
Ela,
minha mãe, Dolores Couto, quando falava de sua Escola Doméstica,com Jacira,
Alda, Emília, Maria de Lourdes, Ilnah, Elza, Anatilde e Ricardina, dizia – “no
tempo em quer eu era gente...” No tempo em que eu era gente, podia viver Natal.
Hoje, não. Há muitas cruzes erguendo seus braços na procura da eternidade.
Natal também passou a ser para mim um campo santo. Chão sagrado. Repouso de
guerreiros. Os idos. Os idos.
Natal
é isso. Só? Mais. Muito indefinível nos seus contrastes, pecados e santidade,
risos e lágrimas, passado e futuro. A luz ardente dos refletores. A brisa fria
de suas madrugada obscuras e insones.
Recife
e São Luís lembrariam Veneza. Recife, para o Mestre Alceu, tem o cheiro de
Florença. O que me lembrou Natal lá fora, nas Oropas agora dos impossíveis?
A
luminosidade de Roma sua espontaneidade, sua abertura, até sua molecagem
gostosa. Apimentada. Com pimenta malagueta.
Se
eu não tivesse encontro marcado para daqui a pouquinho com meus pais e avós,
juro que esperaria o fim do sonho em Natal. Tia Carmem, tio Enéas, Eider,
Eutiquiano, Berilo, Myriam e Zila, Barca e Antônio Pinto, contariam histórias.
Cascudinho as decifraria todas e lhes daria as origens.
Se
não blasfemo – Deus me livre e guarde – que céu teria mais gosto de céu?
Dorian
Jorge Freire (falecido), escritor e jornalista. Transcrito do jornal “O Galo” – dezembro/89.
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