8 de outubro de 2020

Ratos no cinema

 


                   
Anchieta Fernandes
                    
        Na noite de 23 de dezembro de 1944, obteve sucesso em Natal uma nova apresentação de filmes pela Coordenação de Assuntos Interamericanos.Desta vez, o local da mostra de filmes foi a sede do jornal natalense A República. Curta-metragens com temas de guerra, musicais, uma mini-biografia do profeta Nostradamus e um filmezinho educativo intitulado “Juquinha e os Ratinhos”. Quarenta e quatro anos depois, a 10 de julho de 1988, cerca de 500 crianças e dezenas de adultos lotaram as poltronas da sala de projeções do Centro de Convenções de Natal, para verem a exibição do filme que estava inaugurando o I Festival de Cinema Infantil de Natal. Título do filme inaugural:Fievel, um conto americano. É isso mesmo: era o maravilhoso desenho animado produzido por Spielberg, contando as peripécias do ratinho Fievel, imigrante russo em busca de melhora de vida na América.
       Ratos no cinema tem havido muitos (emparelhando quase com a mesma quantidade de cavalos, cachorros etc.). Mas, se o rato (da espécie mamífero roedor)é um animal tão nocivo ao homem, destruindo livros, emporcalhando queijos, trazendo a peste e outras doenças aos seres humanos, porque é que em muitos filmes (principalmente em alguns desenhos animados)eles são vistos com a ternura e a condescendência, que só poderiam serem dadas a animais úteis aos homens? É algo a ser estudado e explicado por psiquiatras. Quanto a mim, simples pesquisador da história e da linguagem da Sétima Arte, cabe-me apenas apreciar ou não apreciar (como também não aprecio quando, em velhos cinema-poeiras, guabirus e ratazanas correm por sobre meus pés, entre as cadeiras, indo em direção aos porões de depósito das casas cinematográficas)filmes com ratos na história, como destaque principal ou apenas como objetos complementares da cena.
        Cabe, portanto, dizer que, o tema dos ratos foi desenvolvido no cinema através das duas tecnologias: desenho animado e fotografia animada, algumas vezes o animal um pouco fazendo o trabalho de ator por si mesmo, e não desenhado por mão humana. Essa mão humana é que torna o rato de características humanas, falando, rindo ou chorando, preparando tocaias para derrotar o inimigo (no caso de Tom e Jerry, principalmente, a imortal criação de Fred Quimby, depois adquirida pela produtora Hanna-Barbera, e onde o pequeno ratinho Jerry sempre vence contra as táticas supostamente acertadas do grandão gato Tom, e ainda sai da cena em humilhação final, zombando do gato.
         Se eu sugeri, linhas atrás, que o fato de muitos ratos no cinema serem tratados com ternura e condescendência, pode ser estudado ou explicado por psiquiatras, o viés contrário, o fato de alguns cineastas usarem ratos de verdade para mostra-los como símbolos do terror não precisa ser estudado ou explicado. Tá na cara que, embora o mal que eles causam aos seres humanos seja proveniente de sua inocência, pois as características genéticas e biológicas deles são naturais, decorre daí que nada lhes dá nenhum sinal explicativo do porque os seres humanos os rejeitam e querem sempre mata-los.
         Aliás, nem todos os seres humanos os rejeitam. Os ratos, dentro de uma interpretação gótica, podem ser considerados símbolos do mal, e então seres humanos mensageiros do medo e da morte precisam deles, para ajudarem na macabra tarefa. Vampiros, por exemplo. Um dos primeiros filmes da história do cinema onde foi colocada uma quantidade exagerada dos roedores como co-adjuvantes, foi Nosferatu, o filme de 1923 do alemão F.W.Murnau, onde ele faz uma primeira versão cinematográfica do personagem Conde Drácula, que nasceu literariamente em livro de BramStoker. No filme, Nosferatu (que é o nome que Murnau deu a Drácula, já que não conseguira autorização de Stoker para fazer o filme com o nome original do personagem) chega a Bremen em um caixão preto, acompanhado de centenas de ratos transmissores da peste.
       Após cinco anos do lançamento dos ratos de Murnau, um empresário norte-americano da indústria de entretenimento veiculada em desenho animado e histórias em quadrinhos, e defensor dos valores da ideologia ianque, resolveu formalizar em um personagem, o modelo de bem e do bom exemplo para as crianças de todo o mundo: nascia em 1928 o rato Mickey Mouse. Walt Disney, o referido empresário, aparecia como o seu criador. Mas o verdadeiro criador de Mickey foi UbWerks, um dos talentosos desenhistas que Disney usava em sistema capitalista nos estúdios, sem inicialmente lhes dar o crédito da autoria.
       No começo, Mickey era mesmo um personagem simpático, um “menino” de grandes olhos e grande cauda, vestindo apenas uma sunga preta, abotoada com dois botões brancos. Eram historinhas engraçadas, sem nenhuma intenção ideológica cimentando os roteiros. Pode ser até que Walt Disney tenha merecido receber aquele prêmio especial da Academia de Hollywood, em 1931, pela criação de Mickey em seu estúdio (embora não se possa negar que foi ele quem escreveu alguns roteiros iniciais das peripécias do rato), ainda mais porque, quando as histórias do rato imaginário foram adaptadas para históriasem quadrinhos, em 1930, em desenho de Floyd Jottfredson, o personagem passou a ganhar velozmente popularidade. Segundo o escritor Goida (1), nas mãos de Jottfredson as histórias de Mickey tinham personalidade, humor e criatividade gráfica, tornando-se Mickey um cclássico.
       No cinema, pode-se mencionar aqueles encantadores curta-metragens, depois sendo apresentados na tv; é exemplo, O aniversário de Mickey, onde o rato, em determinado momento rege uma orquestra da qual participam todos os seus amigos, Pato Donald, o cachorro Pateta etc. Aliás, por falar em música, podem também serem mencionados três momentos especialmente geniais da presença de Mickey na telona: o primeiro é no filme Fantasia, de 1940, releitura visual de grandes obras da música clássica , com Mickey sendo o personagem do episódio dedicado à peça para orquestra de Paul DukasO aprendiz de feiticeiro, onde os desenhistas do estúdio Disney fizeram Mickey se travestir também de regente de orquestra para, coberto com um chapéu de feiticeiro, multiplicar uma vassoura em várias, que ficam obedecendo ao ritmo da música para trazerem latas e latas de água para perto do “maestro”, quase afogando-o.
       No mesmo filme, é também genial o momento em que Mickey desenho, cumprimenta com um aperto de mão o maestro ao vivo LeopoldStokowski, da orquestra de Filadélfia, que está regendo as apresentações das peças musicais no filme, e que acompanham os criativos efeitos gráficos e luminosos criados pelos desenhistas contratados para a empreitada. Por fim, outra presença musical de Mickey no cinema, é no filme Marujos do Amor, realizado em 1946 pelo diretor George Sidney, e onde o rato, depois de ter sido regente orquestra em outros filmes, agora mostra outra faceta do seu talento humano (é claro que do talento dos desenhistas a serviço do estúdio): vira um partner bailarino, acompanhando os passos do famoso Gene Kelly, que também no mesmo filme dá chance a uma menininha negar de dançar com ele.
       O destaque pessoal de um rato só, no contexto do desenho animado, nem sempre prevalece como índice de machismo dos desenhistas. Concomitentemente com o Mickey foi criada nas primeiras histórias sua companheira, a ratinha Minie, inicialmente caracterizada por vestir somente a saia de bolinhas. E antes de fazer sucesso mundial, ao desenhar as aventuras do ratinho Fievel (1986), o desenhista Don Bluth já fizera para o mesmo produtor (Spielberg) o filme A Ratinha Valente (1982). Teve até o filme Roedores da Noite (1995, dirigido por Dan Golden), onde o lugar cenário do filme é habitado por uma sociedade de mulheres-ratos.
       Incrível é que desmascarando o partypris de que ratos são animais nojentos, só trazendo nocividade aos seres humanos, houveram filmes onde não somente um herói rato, mas um casal (rato e rata)se torna heroico em benefício de seres humanos. Foi o que aconteceu a partir do casal de ratos do filme Bernardo e Bianca, realizado em 1977 pelos diretores Wolfgang Reitherman, John Lounsbery e Art Stevens. No filme, o casal de ratos se aventura entrando num pântano, para salvar uma menina órfã, aprisionada e explorada por uma mulher gananciosa, que só pensa egoisticamente nela mesma, em procedimentos para ficar rica. Mas os cientistas humanos sabem para que servem os ratos; para serem utilizados como cobaias em experiências de laboratórios, provocando neles estímulos adversos.
       Daí que em 1980, o diretor francês Alain  Resnais fez uma brincadeira comparativa entre seres humanos e ratos, em seu filme Meu Tio da América, realizado no referido ano. Segundo o crítico Jairo Arco e Flexa, os personagens do filme “encontram uma realidade cada vez mais hostil que os leva a agir exatamente como as cobaias do laboratório (...).” Daí que, “num tom jovial absolutamente inesperado para um cineasta com seu currículo, Resnais faz em algumas cenas os atores colocarem na cabeça enormes máscaras de camundongos.” (2) Pergunte-se: estas máscaras expressam mesmo aquilo que somos: ratos-cobaias à mercê do laboratório divino? Ou à mercê do laboratório das humilhações engendradas pelos sistemas políticos?
        Assim tem sido os ratos dentro deste especial imaginário da arte e da criatividade humanas. Sua presença no cinema, sejam eles repugnantes no contato de sobrevivência com o dia-a-dia das pessoas comuns, ou necessários aos testes de laboratórios científicos, eles tem alimentado a diversidade temática da Sétima Arte. As cenas engraçadas e às vezes humanamente ternas das histórias do Mickey tem agradado crianças em todas partes do mundo. As cenas assustadoramente maléficas do gênero terror, com ratos sendo a mola central dos enredos, tem prendido a atenção de platéias de sádicos, curiosos ou candidatos ao ofício de investigadores desde os anos vinte do século passado. Documentários sociologicamente importantes como alguns que tem mostrado cenas de pessoas de extrema pobreza se alimentando de ratos tem servido a um despertar da consciência política. Filmes como o de Resnais servem a uma reflexão sobre nós mesmos, enquanto vítimas de uma suposta divindade ou de sistemas governamentais supostamente necessários.
         E a fantasia (científica ou não) vai usando roedores no cinema. E se eles, por conta de uma mutação genética, aumentassem o seu tamanho, de maneiras a dominarem os homens, transformando-os em alimentos para ganharem mais proteínas (como no filme Olhos da Noite, de 1982, dirigido por Robert Clouse)? E se nós, seres humanos, formos apenas objetos biônicos a fazer parte do plano de um planeta terra concebido pelos ratos (como está no filme A Boléia Pela Galáxia, de 2005, dirigido por G.Jennings)?E se de repente tivéssemos que conviver com oito mil ratos em nosso ambiente (como está no filme Indiana Jones e a Última Cruzada, de 1989, dirigido por Steven Spielberg)?
Referências bibliográficas:
1)      Goida, Enciclopédia dos Quadrinhos, L&PM, 1990, p.149

2)      Flexa, Jairo Arco e, revista Veja, seção Cinema, nº 661, 6 de maio de 1981, p. 123.

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