Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com
01) Na chamada "Cinco
Bocas", território humano e sentimental de Macaíba, não existe mais o bar
"Gato Preto", que tem suas origens nos primórdios da
"civilização". Foram mais de cem anos de história viva, de pastores
da terra, das nuvens, das estrelas, queimando vigílias na província submersa.
Chão sagrado de antepassados, povoado de rostos ocultos, de figuras pálidas por
longas noites assombradas. Nele vislumbro os vultos inaugurais de Zé Solon,
Alberto Silva, Chico Cajueiro, Lula Ramos, Jorge Chocalheiro, Zé Pelado, Manoel
Sabino, Chico de Dulce, Banga, Sinval Duarte, Manoel Pixilinga, Jorge de Papo,
Odilon Benício, entre tantos outros que desapareceram vítimas do tempo, esse
astrólogo arbitrário. As “Cinco Bocas” ferinas, são cinco ruas que deságuam
como um rio noturno na intimidade simples dos lençóis de minha terra. Rua do
Cajueiro, rua do Benjamim, beco de seu Alfredo, beco do Mercado e rua da Cruz.
Esse pedaço de chão no centro de Macaíba carrega a saga lírica, popular e
mística de muitos obreiros que gastavam saliva diariamente no pórtico de suas
entranhas, de suas calçadas. O "Gato Preto", sempre foi o antigo
desterro de mim mesmo, da infância perdida mas petrificada no silêncio de suas
paredes. Mas, o que importa é que por onde andei eu carreguei o seu andor.
Mesmo deformado fisicamente, o seu espírito vive. Basta contemplá-lo e
deixar-se envolver na sua atmosfera densa, no centro de Macaíba. Era um bar,
com todos os seus habitantes. Figuras opacas, empíricas, etílicas. Todos
reduzidos a humanidade comum. Todos crentes de que a verdade e a vida nunca
estão num único sonho mas em muitos. Era o nosso “Grande Ponto” que tombou e
morreu como o de Natal. Tanto ontem quanto hoje, caracterizou-se como um
cenário profuso e difuso, tecido de conversas banais, de palavras soltas,
malandras, boatos, chafurdos soprados pelo errante vento da esquina. Tudo
coisas fugidias: prateleiras, garrafas solitárias e eternas, sinucas, bilhares.
Todos os seus notívagos caminheiros são incertos, dispersos e derradeiros. Aí
de nós se não fosse o mistério do nome, do 13, do “Gato Preto”. Por que “Gato
Preto”? Não sei. As coisas misteriosas são fascinantes.
02) Na primavera política
do início dos anos sessenta no Rio Grande do Norte, pontificava na província
submersa de Macaíba, a imbatível Pensão da Esperança. Nasceu no fragor das
lutas eleitorais e foi a nau catarineta do aluizismo. Nela singrava o mar
encapelado da política macaibense, a capitã de longo curso e minha prima
Graziela Mesquita. Bacurau de cinco estrelas, Grazi era uma das dissidências
dos Mesquita. Situada à rua de Nossa Senhora da Conceição, a Pensão da
Esperança, era também o Porto Seguro das caravanas, das manifestações
aluizistas e quem fosse arara jamais seria hóspede. Graziela solteirona
invicta, mas parecia uma matrona romana. Andava nas pontas dos pés, como se
fosse desabar de frente. Pesava-lhe muito o imenso busto-arbusto. Elétrica,
vibrante, frenética e fanática, era simpática com todos os seguidores da causa.
Nesses tempos trepidantes tivemos uma relação política difícil mas respeitosa.
Isso influiu, para que, mas tarde, tornássemos correligionários, até a sua
morte. A Pensão da Esperança era o termômetro político da cidade mas também o
alvo possível das manifestações hostis do dinartismo radical. De quando em vez,
ocorriam "atentados à bomba" no recinto, obra de alguns
ativistas sorrateiros para perturbar o sossego de Graziela e testar o seu
prestígio. Mas, nem era preciso. Como um raio, riscava à porta o delegado de polícia
para as necessárias averiguações e prisão dos culpados. Grazi era intocável, um
patrimônio tombado e vivo da cruzada da esperança. Outro enfoque político digno
de nota, era a sua fiel ala-moça, treinada para cantar as canções de Aluízio. "Cigano
feiticeiro, teu feitiço, ai meu Deus, eu faço tudo, tudo pelo governo seu e o
eleitor o que deve fazer? É virar cigano e votar com você". Isso sem
falar na canção principal que dizia que "Aluízio Alves veio do sertão,
lá do Cabugi...". Assim se passou uma página folclórica, melódica,
ingenuamente dramática e humana da vida política de Macaíba, que teve na Pensão
da Esperança o oxigênio natural desse mundo frágil e encantado. O seu antigo
endereço desapareceu com a sua proprietária, só restando a memória visual e
auditiva da reconstituição dos gestos, das verdes bandeiras pandas ao vento, do
ruído da multidão, da silhueta de Graziela, tudo como uma saudade suspensa no
ar, mas renovada todas as vezes que passo pela calçada.
(*) Escritor.
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