José Lívio Dantas
Do PEN Clube do Brasil
Com O Spleen de Natal (Amarela Edições, 1996) e agora
estes Ensaios Mínimos, Franklin Jorge
doutora-se, por assim dizer, como um dos membros mais representativos da Escola
do Ceará-Mirim. Já tive outra oportunidade, em circunstância jornalística, de
aludir ao caráter comum que essa cidade do Rio Grande do Norte infunde em seus
filhos, como humanistas e figuras de expressão nacional nas letras científicas,
filosóficas, jurídicas, históricas e literárias propriamente ditas. E
lembro-me, ao dedilhar das teclas, de Rodolfo Garcia, Juvenal Antunes, Edgar
Barbosa, Nilo Pereira, Jaime Adour da Câmara, Padre Jorge O’Grady e Gerardo
Dantas Barreto, uma pleiâde em que não pode faltar o nome do cronista-mor Júlio
Gomes de Senna com seu bem documentado Ceará-Mirim,
Exemplo Nacional.
O traço característico dessa escola é a
síntese que seus membros fazem do particular com o geral, da aldeia com o
mundo, do detalhe com a macrovisão. Nisso são magistrais. Olham para o pormenor
e vêem a paisagem; falam de sua querência – para nordestinizar esse bonito
vocábulo gauchesco – e se universalizam; voltam-se para dentro de si
próprios e redescobrem a humanidade. Não é sem razão que são chamados de
humanistas, ceará-mirimente humanistas.
Dois capítulos nestes Ensaios Mínimos, entre dúzia e meia de outros, bastam
para comprovar a díade particular-universal, aqui tão bem conjugada por
Franklin Jorge: Meu Montaigne e Palmyra revisitada.
Do pensamento de Montaigne, em pouco
mais de uma página, Franklin faz uma leitura perfeita, em sintonia com dois dos
maiores intérpretes do autor de Ensaios: Sainte-Beuve no
século passado e Merleau-Ponty em meados deste. Onde Sainte-Beuve diz:
"Être homme, voilá sa profession", Franklin completa: "Seu
ofício consiste em viver em plenitude a circunstância". E quando
Merleau-Ponty destaca que o ceticismo de Montaigne tinha duas faces,
significando que "rien n’est vrai, mais aussi que rien n’est
faux", nosso autor arremata: "Chega a ser pirrônico em sua
capacidade de duvidar das certezas. Sabe que o medíocre é dogmático e ignora a
dúvida".
Em Palmyra
revisitada, Franklin Jorge nos leva ao pequeno mundo de Palmyra Wanderley – a
Cidade do Natal com suas praias Redinha, Do Meio, Areia Preta e seus bairros
Alecrim, Refoles, Rocas, Tirol, Petrópolis. Por esses topônimos ela chega aonde
chegaram Auta de Souza, Gabriela Mistral, Edna Saint Vincent Millay, Cecília
Meireles, Florbela Espanca e Henriqueta Lisboa, cada qual em seu mundo próprio.
Franklin sabe disso. E tanto sabe que não teme paragonar Palmyra com, por
exemplo, a lusa Florbela. Pois quem não vê que ele estava pensando no soneto Rústica ("Um vestido de chita bem lavado,/
Cheirando a alfazema e a tomilho") quando se refere às “lavadeiras das
Quintas” do soneto obra-prima da poetisa potiguar?
Partem, cantando, à
luz das alvoradas,
Molhando os pés na relva dos caminhos.
Molhando os pés na relva dos caminhos.
“Sabiá que tivesse penas de ouro”, na imagem de Andrade Muricy, ou a “cigarra dos trópicos” segundo Agripino Grieco, Palmyra Wanderley encontra em Franklin Jorge seu cultor ideal, um escritor para quem um verso como “Molhando os pés na relva dos caminhos” soa com a mesma plasticidade e a mesma beleza eufônica de “Verlaine? Il est caché parmi l’herbe, Verlaine” de Mallarmé.
Outros Franklin Jorge pelo século vinte
e um a fora certamente darão prosseguimento a essa vigília em torno da poesia
de Palmyra. Como o faz com espírito e coração, com inteligência e sensibilidade
nosso Franklin Jorge de hoje. Aliás, sua missão intelectual parece ser mesmo
essa: velar com olho “proustiano” e “alado” por nossos deuses lares:
Auta, Palmyra, Juvenal, Cascudo, Myriam, Edgar, Zila e Caldas, para mantê-los
em posição simétrica com os que mais mereçam ser velados no plano particular
como no plano universal, sem exclusão de um pelo outro. E note-se que ele é um
ceará-mirinense de apenas dois meses de vida naquele jardim de Academos à
margem de canaviais. Tempo que lhe foi suficiente para receber, no leite que mamou,
seus melhores e mais autênticos eflúvios. Salvo seja.
*Prefácio de “Ensaios Mínimos” (Inédito), originalmente publicado no “Correio
Braziliense”, D.F., 1990.
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