Minha
mãe é a Caridade,
Minha
esposa a Liberdade,
O
DIA TRINTA – sou eu!
Parafraseando
esta expressão dos versos finais do poema “30 de Setembro”, de Paulo de
Albuquerque, poderíamos dizer que a comemoração do centenário do 30 de setembro
de 1883 ultrapassa a fronteira do justo regozijo mossoroense, para se definir
como a data principal da Abolição em terras norte-rio-grandenses. Pois se a Lei
Áurea assinada pela Princesa Isabel (Lei 3.353, de 13 de maio de 1888) foi que
tornou possível a abolição oficial da escravatura no Estado (segundo Câmara
Cascudo em “História da Cidade do Natal” – “tornou livres, em toda a Província
do Rio Grande do Norte, a 482 escravos”), no entanto Mossoró abriu o caminho
libertador em 1883, seguida por Açu em 1885 e por Caraúbas em 1887.
Assim,
o 30 de setembro somos todos nós, norte-rio-grandenses que defendemos e lutamos
pela liberdade, e que naquele episódio marco da cidade Princesa da Zona Oeste
nos fizemos representar através de alguns abolicionistas não naturais de
Mossoró (dentre outros, Romualdo Lopes Galvão, de Triunfo; Almino Afonso, de
Patu; Aderaldo Zózimo de Freitas, de Caraúbas), que, juntando-se a
mossoroenses, cearenses e a alguns estrangeiros com amor à causa cívica e
humana da Sociedade Libertadora Mossoroense tiraram de vez a algemas ao
elemento servil, com uma vibração e um entusiasmos até então inéditos em toda a
história do nosso Estado.
A SECA: UM IMPULSO
Por
incrível que possa parecer, a seca foi um dos motivos impulsionadores do
acontecimento. Este fenômeno climático, que é registrado desde o ano do
descobrimento do Brasil por Pedro Alvares Cabral, e que se repete, quase
regularmente, em ciclos de 11 anos, atingiu cores das mais trágicas durante os
anos 1877, 1878, 1879. Levas e levas de retirantes partiam pelas estradas
poeirentas (ainda não asfaltadas) em demanda das capitais, onde os navios nos
portos os esperavam para os conduzirem à Amazônia ou ao sul do país. Rui Facó
descreve o quadro em seu livro “Cangaceiros e Fanáticos”: “Os nordestinos
emigravam seminus, descalços, famintos”. Famílias inteiras se desgarravam,
separavam-se impiedosamente pais e filhos, marido e mulher.
Muitas
destas separações eram consequência da venda de escravos, pois os fazendeiros
viam-se na contingência de vendê-los aos senhores do sul, já por causa da
difícil situação da agricultura que tornavainútil a mão de obra escrava, já
porque tinham de com a venda dos escravos saldarem os débitos contraídos. A
visão do sofrimento de inúmeros escravos partindo para o sul (onde os senhores
eram por vezes mais cruéis), separando-se dos seus familiares; isso juntando-se
à constatação prática de que o sistema econômico baseado na mão de obra escrava
estava falindo despertou em Mossoró as elites comerciais, intelectuais e
políticas para o gesto pioneiro.
É
Walter Wanderley quem o afirma num dos capítulos do livro biográfico sobre
“Paulo de Albuquerque, o Poeta da Abolição”: “Aquela situação advinda da seca
de 1877, que se prolongou até meados de 1880, foi a pedra de toque para que se
desse início ao movimento de libertação dos escravos em Mossoró. Ricos e
pobres, especialmente os escravos, sofreram na carne o drama que tanto
devastara o Nordeste. Chegavam a Mossoró, vindos de outras plagas, os senhores
donos de escravos fugidos que eram vendidos a outros senhores. Estava, assim
iniciado esse comércio que desencadearia reações as mais justas da consciência
livre dos mossoroenses”.
IDEAIS MAÇÔNICOS
A
conjuntura econômica que indicava o caminho à Abolição, foi auxiliada em
Mossoró pelos ideais sociais da Maçonaria. Em 1882, os primeiros escravos
alforriados na cidade (Herculana e Luiza), o foram com a verba “fundo de emancipação”
(criada pelo Gabinete do Visconde do Rio Branco) e com donativos de membros da
Loja Maçônica “24 de junho”, sociedade pioneira em Mossoró e que fora fundada a
24 de junho de 1873.
No
“Manual Geral da Maçonaria”, esta é assim definida: “Maçonaria é a atividade de
homens estreitamente ligados que, mediante o emprego de imagens simbólicas, e formas
emprestadas na sua maioria ao ofício de pedreiro e à arquitetura, trabalham
para o bem da humanidade procuram nobilitar-se a si e aos outros, moralmente,
para assim atingirem uma comunhão moral dos indivíduos idêntica à que eles já
formam uns com os outros, embora em pequena escala”.
É
claro que, de acordo com estes princípios, a Maçonaria, que na América tivera
desde o início uma atuação muito diferente das suas congêneres europeias (na
Europa, os maçons tinha principalmente o objetivo de fazer propaganda anti-religiosa;na
América, suas atividades foram principalmente políticas, influenciando bastante
na libertação dos países do Continente da tutela europeia, mormente no Brasil,
onde a Independência foi praticamente uma vitória da Maçonaria, pois D. Pedro I
e alguns membros do seu ministério eram maçons, sendo o nosso primeiro
Imperador o Grão-Mestre da Loja do Grande Oriente brasileiro), poderia se interessar
em entrar na luta pela Abolição da Escravatura. Daí que foi no recinto da Loja
Maçônica “24 de junho” (aliás, é bom registrar que o dia 24 de junho é
importantíssimo nos anais da Maçonaria, pois uma tradição indica que a primeira
sociedade maçônica foi fundada a 24 de junho de 1717) que se fundou, a 6 de
janeiro de 1883, a Sociedade Libertadora Mossoroense, idealizada por Romualdo
Lopes Galvão e tendo como primeiro Presidente o cearense Joaquim Bezerra da
Costa Mendes.
O
trabalho da Libertadora começou, fazendo propaganda da idéia abolicionista,
auxiliado pelos sermões do vigário da paróquia de Santa Luzia, padre Antônio
Joaquim Rodrigues, pedindo aos paroquianos participarem da causa comum. Nestor
Lima escreveu: “Em diferentes etapas foi-se concretizando o ideal libertário.
Os grandes dias de festa nacional ou datas queridas à cidade e às famílias eram
solenizados com sessões magnas da Libertadora, para alforriar cativos”. Na
época, foi também criado um clube de ex-escravos, o Clube dos Espártacus (homenagem
no nome a um trácio que liderou vitoriosamente uma revolta de escravos e
gladiadores na Roma dos Césares), que abrigava escravos fugidos. Cenas
emocionantes foram presenciadas por Mossoró naqueles dias, como o major Romão
Filgueira entrando na Câmara Municipal de braços dados a uma escrava
recém-liberta.
ALMINO AFONSO
Fora
marcado o dia 30 de setembro de 1883 para a proclamação oficial, em sessão
solene, da libertação dos escravos em Mossoró. Com o intuito de representar na
solenidade 14 entidades abolicionistas do Ceará chegou a Mossoró, a 28 de
setembro (data bastante significativa na história do abolicionismo brasileiro,
pois a 28 de setembro de 1871 a Lei do Ventre Livre declara livres todos os
filhos de mulheres escravas, nascidos daquela data em diante), o norte-rio-grandense
de Patu, Almino Afonso, futuro Senador da República.
Orador
inflamado, ele pronunciaria durante as festividades do dia 30 mais de 20
discursos, em praça pública e no recinto oficial da solenidade. Foi dele uma
das mais belas frases, no sentido literário: “Nós hoje somos livres como é
livre a brisa sussurrante nos leques dos carnaubais”. Corajoso, redigiu um
telegrama desafiador ao Imperador: “Imperador Pedro Segundo – Corte. Mossoró
acaba libertar seus escravos embora contra a vontade de Vossa Majestade”. E ao
pedir a Romualdo Galvão para assinar com ele este telegrama, tendo Romualdo
manifestado um certo receio, AlminoAfonso exclamou: “Romualdo, não seja
covarde. Quero mostrar ao Imperador de que são capazes os caboclos do Patu e do
Campo Grande”.
O DIA 30
Para
descrever em detalhes tudo o que ocorreu a 30 de setembro de 1883, em função
das festas da proclamação da abolição da escravatura, seria necessário um
livro. Nas páginas de jornal, o máximo que se pode fazer é um resumo. Imagine-se
uma explosão de alegria coletiva, onde elites e pessoas das mais humildes
condições participaram do mesmo estado de euforia e integração pessoal nos
preparativos e concretização da festa.
Walter
Wanderley escreveu (livro referido); “Durante uma semana os negros prepararam a
ornamentação a cidade, conduzindo em carros-de-boi palmas de carnaubeira que
iam sendo colocadas no centro da cidade. Bandeiras de todos os países eram
colocadas nos seus mastros distribuídos pela atual rua 30 de setembro até à
praça da Cadeia. No dia 29, no entanto, eram iniciadasas comemorações,
fazendo-se uma marche auxflambeaux,à
noite, à luz de archotes, constituindo-se um espetáculo indescritível. Conta-se
que mais de cinco mil pessoas tomaram parte nessa passeata”.
No
dia 30, realizou-se a sessão oficial no recinto da Câmara Municipal,
iniciando-se às 12 horas e prolongando-se até altas horas da noite, após outro
préstito que percorreu as ruas mossoroenses, com esta formação conforme descrição
de uma reportagem no nº de 23/10/1883 do jornal “O Libertador”, de Fortaleza:
adiante marchavam as meninas; as autoridades depois, as comissões Libertadoras
do Ceará, Belém e Recife, os propagandistas na terceira coluna; e “as
multidões, por fim, repercutindo o hosana e o bendito da Liberdade assinalavam
o nascimento de uma nova era”.
A
sessão constou de discursos, recitativos e cantos (os
hinos abolicionistas foram cantados por crianças, conforme a narrativa
empolgada e empolada da Ata da Sessão do dia 30 de setembro de 1883, escrita
por Maurício Olegário do Rego Farias e ditada por Almino Afonso: “Feito, a
custo, o silêncio, levantaram-se de pé as crianças brancas e louras, e as
virgens morenas mais belas, como um bando de faisões dourados, que no solene
rebôo, baixassem das regiões do céu, ou surgissem do ninho das auroras,
cantando e gorjeando os Hinos da Redenção e o bendito da Liberdade”). O
Presidente da Libertadora pronunciou a frase proclamando: “Mossoró está livre:
aqui não hámais escravos”.
Enquanto
isso, a cidade toda era um fervilhar de cores, luzes e sons. Casa iluminadas em
profusão, monumentos alegóricos pelas praças, arcos de flores, bandas de música
tocando, girândolas espocando e foguetes pirotécnicos formando desenhos e
frases alusivas à data nos céus da cidade libertária. As festas pela libertação
mossoroense ainda prosseguiram por mais sete dias, com passeatas, banquetes (no
salão da Escola Noturna os escravos libertos ofereceram um aos seus
libertadores), bailes e distribuição de cartas de ABC aos recém-libertos.
UMA DATA CÍVICA
O
dia 30 de setembro é a data cívica principal de Mossoró, sobrepujando as datas
da criação do município (15 de março) e da cidade (9 de novembro) no destaque
oficial e no afeto popular. Coincidentemente, em anos posteriores a 1883 alguns
acontecimentos de importância para a cidade de Souza Machado ocorreram
justamente num dia 30 de setembro: em 1904, inauguração da Estátua da
Liberdade, na Praça da Redenção; em 1917, fundação do Democrata Clube; em 1932,
instalação do Coro Orfeônico da Escola Normal de Mossoró; em 1945, fundação da
Associação Mossoroense de Estudantes; em 1948, instalação do Museu Municipal de
Mossoró; em 1949, instalação da Companhia Melhoramentos de Mossoró S.A.; em
1953, inauguração do Monumento ao ex-Governador Dix-Sept Rosado, na Praça
Vigário Antônio Joaquim; em 1971, inauguração da agência local da APERN
(Associação de Poupança e Empréstimo do Rio Grande do Norte).
O
dia 30 de setembro deveria ser uma data inspiradora de nossos artistas e
escritores. Apesar de já terem escrito sobre ela alguns poetas (dentre outros,
Paulo de Albuquerque, José Martins de Vasconcelos, Cosme Lemos e Maria Sylvia –
autora do Hino do Centenário do 30 de setembro), o que está faltando é os
episódios e os personagens do dia 30 inspiraram narrativas ficcionais (contos,
romances – como na tradição dos bons escritores universais que criam
obras-primas literárias baseando-se nos episódios da história do seu povo),
peças de teatro, canções, telas, desenhos, estórias em quadrinhos fotonovelas,
filmes, montagens especiais para nossa televisão (Canal 5). Afinal de contas,
repita-se, o dia 30 somos todos nós, é nossa gente, nossa história e nossa
tradição.
*Transcrito da Edição Especial do Jornal A
República, Comemorativa do Centenário da Abolição dos Escravos, em Mossoró
(30/09/1983).
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