Valério
Mesquita*
O ponto alto das comemorações dos 137 anos
da emancipação política e administrativa de Macaíba continua sendo o
bicentenário de nascimento do seu fundador Fabrício Gomes Pedroza, cujas cinzas
foram trasladadas do Rio de Janeiro para a igreja matriz de Nossa Senhora da
Conceição. O vinte e sete de outubro de 1877, pela lei nº 801, Macaíba – que
antes se chamava Coité – desmembrou-se de São Gonçalo. Aí amplia-se o período
de esplendor comercial do porto de Guarapes que irradiou energia econômica a
todos os quadrantes. Monopolizou o sal para o sertão, incentivou a indústria
açucareira do vale do Ceará-Mirim, financiou a produção adquirindo as safras
das fazendas de algodão, cereais, couros e peles. Fundou a “Casa dos Guarapes”
e do alto da colina comandou o seu mundo de transbordamentos, onde tudo era
rumor, vida, agitação, atividade.
É nesse vácuo de duzentos anos que reside a
minha perplexidade. Um silêncio dominado pelo abandono e a indiferença. Ninguém
coloca em cena a coragem de contemplar restituído o universo oculto de Fabrício
que fez brilhar o nome de Macaíba dentro e fora do Rio Grande do Norte, na
segunda metade do século dezenove. Não bastam, apenas, reprisá-lo com lendas e
narrativas, como tivesse sido um mundo de ficção. Melhor que a dispersão da
palavra solta é ouvir o eco de suas paredes reerguidas, das vozes trazidas pelo
vento das vidas que não se pulverizaram mas renasceram pelas mãos das novas
gerações. Esse universo semidesaparecido, clamo por ele, aqui e agora,
afirmando que a melhor imagem de um homem, após a morte, não são as cinzas, mas
a obra que legou à posteridade, revivida e restaurada como reconfortante e fiel
fotografia de sua história e vida.
Como
guerreiro solitário, luto há quinze anos pela restauração dos escombros do
empório dos Guarapes. Como membro, àquela época, do Conselho Estadual de
Cultura do Estado, consegui o tombamento. De imediato, no desempenho do mandato
parlamentar obtive do governo a desapropriação da área adjacente. Batalhei, em
alto e bom som, junto aos gestores públicos a elaboração do projeto
arquitetônico, que, até hoje, dormita em armário sonolento da burocracia. Foi
uma agitação, apenas, que não se moveu nem comoveu. Saí dos movimentos da
superfície oficial, para as janelas da imprensa e outras vozes, em coro
uníssono, oraram comigo pelas ruínas da mais reluzente história da economia do
Rio Grande do Norte: os Guarapes. Todo esse conjunto de verdades fixas foi
ilusão imaginar que a lucidez jamais se disfarçaria em surdez. Como enfrentei e
venci no passado, partindo de perspectivas débeis e precárias, óbices quase
intransponíveis para a restauração das ruínas do Solar do Ferreiro Torto e da
Capela de Cunhaú, sinto que não perdi os laços entre a fragmentação do sonho e
a fé incondicional no meu pragmatismo, de que tudo, até aqui, nada foi em vão.
Reproduzir
a realidade, tal que se imagina que fosse, o burburinho comercial e empresarial
daquele tempo de Fabrício, faz-nos refletir e aprender para ensinar aos jovens
de hoje através de exemplos, imagens e ritmos, a saga de que vultos como o dele
iniciaram uma figuração, nova, nítida e luminosa, pouco tempo depois, numa
Macaíba que começava a nascer com Auta de Souza, Henrique Castriciano, Tavares
de Lyra, Augusto Severo, Alberto Maranhão, João Chaves, Octacílio Alecrim e
outros que construíram em modelos de vidas o prestigio da terra natal – que não
se evapora, nem se desmancha. Essa realidade para mim é tensa e inquieta,
porque cabe hoje revivê-la em todos nós. É imperioso que os nossos governantes
tracem esboços para uma saída, uma superação, criando-se fendas e passagens,
para juntos, todos, respirarmos o oxigênio da convivência com os nossos
antepassados. Se todos nós pensarmos assim, com cada palavra significando
labareda, lampejo, no centésimo trigésimo sétimo aniversário, derrubem, pois,
os obstáculos que impedem as luzes da memória dos Guarapes refletirem sobre a
posteridade. Se assim não agirmos tudo será cinzas.
(*)
Escritor.
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