4 de novembro de 2014

O primeiro dvd de Dudé


                             Anchieta Fernandes

Em uma próxima vaga na Academia Norte-riograndense de Letras, bem que poderia ser eleito por unanimidade – mesmo sem ele próprio ter se candidatado – o compositor, cantor, humorista e tão poeta nas letras de suas músicas Dudé Viana (José Viana Ramalho ou JoséFilho). Vocalista e instrumentista talentoso, este caraubense já fez shows em nosso Estado, em João Pessoa, Recife, Fortaleza, no Rio de Janeiro, no norte do país e, internacionalmente, no Chile. Antes da era dos cds, gravou o compacto duplo “Seca no Sertão” (1980) e o lp “Embaixo das Estrelas” (1987). O seu primeiro cd foi “Violas e Cantigas” , gravado em 1997. Depois, gravou o cd “Acredito em Você”.
Em 2013, lançou o seu primeirodvd, uma obra primorosa, linda pelas letras e músicas, com alguns toques informativos sobre a vida do músico/poeta, e sobre a terra norte-riograndense, e com o título “O andarilho das canções Dudé Viana & amigos”. É bom ressaltar que as imagens do dvd destacam a beleza da paisagem norte-riograndense (praias, o Morro do Careca, a Serra do Lima, a vegetação atual do sítio Poço Redondo, do município de Caraúbas, onde ele nasceu), fixando  também certos aspectos dos costumes tradicionais do povo, como a procissão dos vaqueiros na Festa de São Sebastião, padroeiro da paróquia de Caraúbas.

Mas é bom lembrar também que este é um dvd não exageradamente regional, pois, gravado no Rio Grande do Norte, em Amapá, no Rio de Janeiro e em Brasília, tem títulos como “Morena de Macapá” (parceria com Paulo Gurgel) e “Brasília, a Menina” (parceria com Roberto Homem). É um dvd brasileiro, acima de tudo. Consequentemente, é bom ouvi-lo e vê-lo, prestar atenção às letras (para apreciá-las como puros poemas, sejam as do próprio Dudé, como por exemplo “Olhos de Cristal”; ou as das parcerias com bons poetas, como “Ah! Se eu fosse um poeta”, com Salete Pimenta Tavares, ou “O Pilão Sertanejo”, com o poeta e folclorista Deífilo Gurgel.

Podemos apreciar na obra musical de Dudé o ecletismo. Ele é cósmico em “O Brilho das Estrelas” (“se todo mundo olhasse as estrelas/não perderia a fé no criador”)e romântico em “Olhos de Cristal”(“moça bonita/dos olhos de cristal/menina do Leblon/te levo pra Natal/nas dunas coloridas/da praia de Tibau/a gente faz amor/no imenso coqueiral”); mas também é erótico em “O andarilho e Clarisse”(“ela me provocava/tirando a roupa e deixando no chão/passei a beijá-la num ritmo frenético”), além de apresentar a filosofia de auto-ajuda em “Toque a Vida” (“Toque a vida, viva/viva o amor e saiba porque/viver é se soltar e sair na chuva”).

Uma coisa a ressaltar também neste primeiro disco/imagem e som na tecnologia dvd (sigla de digital vídeo disc, tecnologia de comunicação em imagem e som inventada nos Estados Unidos, no começo do século 21)de Dudé é a homenagem a certos profissionais da sociedade nordestina: vaqueiros (“Nas rédeas do vaqueiro”), a catadora de mangaba (“Xote da Mangaba”), a piladora de pilão (“O pilão sertanejo”), o jangadeiro (“Canção do jangadeiro”), o violeiro (“Cantoria na Mata”). Aliás,como disse Roberto Homem, Dudé vem de uma linhagem de cantores inspirados em violeiros e cantadores, como Elomar, Vital Farias , Xangai e outros.

Não por acaso, o cenário da faixa “O poeta do povo” aproveita as telas ilustradas como cenário de fundo (por trás dos músicos), utilizando desenhos calcados em capas de folhetos de cordel. Aliás, os cinegrafistas filmadores das imagens exteriores são gente que sabe captar muito bem a beleza do meio ambiente que os cantadores de cordel também vivem e cantam. O trabalho de câmera de Cruzeiro Vídeo é muito bom. Como também o é o trabalho de edição a cargo de Vlademir Almeida (um exemplo claro de sua inteligência e criatividade: o movimento de sobreposições alternativas de planos na apresentação da música “Seca no Sertão”).

Em contraste, o que dizer do jeito de cantar de Dudé? Ele tem uma voz muito boa, harmônica, melodiosa (sai-se até muito bem no vocalizo de antes e depois de cantar a letra de “A Ponte”, que é um poema de Zila Mamede); sabe encadear a harmonia estendendo-a à procura do encaixe modal à letra de “Ah!se eu fosse um poeta”, que é um poema de Salete Pimenta Tavares não feito originalmente para ser musicado. Mas, justamente por se inspirar no cantador de cordel, Dudé não desenvolvemuito o cromatismo da escala tonal, fica muito na fronteira do meio tom, entre o som agudo e o grave. Também não tem muita versatilidade no que diz respeito ao comportamento corporal de palco.

Ele é muito diferente de Jair Rodrigues, que deixava os câmera-men dos shows de televisão doidos, tontos, sem saber como acompanharem a figura do cantor para captar a sua imagem, ele correndo, deslisando de um lado para o outro do palco, balançando a cabeça, saltando, mexendo os braços, fazendo ginástica, plantando bananeira. Dudé é muito parado. Talvez seja o estilo imutável dele. Mas, por exemplo, na apresentação da música “Festa na casa dos Carneiros”, ele poderia ter aproveitado todas aquelas pessoas que se banhavam na piscina do Olho D’Água Park Hotel, e puxado uma verdadeira ciranda festiva, todos cantando e pulando, com alegria no rosto, acompanhando o cantor.
Mas, afinal o dvd é uma antologia de shows, e vale a pena destacar o melhor destes shows. É emocionante, por exemplo, a “Canção para Tico da Costa”, homenagem de Dudé e Nildo Santos ao cantor areia-branquense falecido em 2009. Na canção, a belíssima voz de Camila Salinas faz parceria, cheia de ternura, com o cantor,que ao final deixa no ar um belíssimo improviso com o seu violão. Emocionante também é, na faixa 18, uma parte falada, não cantada: antes de Dudé cantar a “Canção do Jangadeiro”, conversa com o pescador Cássio Carlos de Lima, que narra a triste história do seu pai, que morrera à deriva, em cima de uma jangada.

.No dvd, a característica de ser aquilo, ter aquela simpática alcunha que Tarcísio Gurgel lhe botou (“o andarilho das canções”), fez Dudé ser um ótimo documentarista visual de peculiaridades de diversas regiões brasileiras, seja, por exemplo, nos estilos arquitetônicos de templos religiosos (v. a propósito a fachada quase barroca da Igreja Matriz de Caraúbas, e a fachada modernista, niemayeriana da Catedral de Brasília), ou nas tipicidades do vestuário (o vestuário do vaqueiro nordestino, marcado pela utilização da indústria do couro; ou os trajes de cores fortes das apresentações do Grupo de Marabaixo Tia Sinhá, de Macapá, Amapá).

Além destes aspectos arquitetônicos e de vestuário, tem a ilustração dramática de uma lenda indígena nordestina, a partir de um poema de Aucides Sales: “Cantofa e Jandi”. É uma peça artística no gênero romance de cordel,de que fala Câmara Cascudo no “Dicionário do Folclore Brasileiro”. “Foram poemas feitos para o canto nas cortes e saraus aristocráticos, e não a poesia democrática e vulgar, feita para o povo. No século XVI, a recriação foi um processo de acomodação ao gênio popular.”Interessante observar como temos verdadeiras vocações para a interpretação. Lúcia Tavares no papel da índia Cantofa, e LadjaLaysla no papel de sua neta, a mocinha índia Jandi, trabalharam muito bem.

A equipe de produção dos shows e do dvd não trabalhou muito efeitos especiais. Apenas mostrou ser muito eficiente o efeito da fumaça em “Nas asas daTam”, construindo imagens que lembram nuvens desgarradas, em formatos que os aviões da empresa aérea atravessam, transportando passageiros do Nordeste para o Norte, ou para o Sul, e vice-versa na viagem de volta. Dentre eles, alguns que esperaram Dudé para fazerem acompanhamento ao cantor e instrumentista; alguns, aliás, excelentes músicos, como o sanfoneiro caraubense Caçula Benevides, o conjunto jovem Meirinhos do Forró, outro violonista que é Raimundo Amoedo, acompanhando Dudé no show em Mar. Hermes.

O dvd “O andarilho das canções Dudé Viana & amigos” é um objeto de arte enriquecido por diversos fatores de valoração. As letras das músicas divulgama poética do humano, desde o preâmbulo, antes mesmo do filme começar a se desenvolver faixa por faixa. Com a imagem do cantor parada, sobre palavras indicativas do roteiro do filme (principalmente as cidades de Natal, Macapá, Rio de Janeiro e Brasília), se ouve a voz do cantor (que foi vítima de um infeliz erro judiciário, passando mais de um ano preso sem culpa), cantando um hino alegre à sua vitória na liberdade: “Voa minha liberdade/não existe mais prisão/depois do bem da vida/o bem maior é a liberdade.”

É um dvd muito detalhista, inclusive na densidade da identidade familiar, aparecendo fotograficamente familiares de Dudé, contando-se o seu pai vaqueiro José Daniel Carneiro, mãe, irmãos, sobrinhos, primos, tios, toda uma constelação familiar. Não é algo negativo não. É até uma espécie de colaboração informativa. Afinal, Dudé já enobrece o nome familiar com sua arte, ao lado da Condessa Laly Carneiro, do padre Benevides (que foi superior dos jesuítas na região), do vereador Antonino etc. Me lembrou o dvd que o astro da música country americano Willye Nelson gravou, em 2001, justamente com familiares na capa.

Muitos outros elementos valorativos podem se encontrar neste bonito dvd tão potiguar, tão criativamente potiguar. No passar das imagens, o exílio do nosso olhar, de filhos do sertão obrigados a contemplar a seca e dura paisagem de prédios, pontes altas e passarelas cheias de gente agoniada e preocupada com os problemas urbanos, se reconcilia com a também seca mas suave ao nosso coração paisagem do sertão, da galharia da caatinga, e dos grandes pátios das fazendas onde se realizavam as vaquejadas.No comunicar das letras, a força das mensagens (“Por que não paras, motosserras/e as queimadas nas florestas”).E a poesia pura (“passarinhos construtores, castores”).


Finalmente, uma última coisa a elogiar no dvd é a apresentação dos créditos, ao final, quando os nomes vão subindo na tela bem devagarinho, dando tempo ao espectador ler tudo, e não como ocorre em certos dvds ou até em filmes hollywoodianos, num total desrespeito à mostragem dos nomes. Aqui ficamos sabendo que as tão bonitas imagens deste dvd foram devidas à competência de gente como Thiago Praxedes Amorim, Josiene Santos, Roque de Sá etc. Felicidade aqui no sertão tem nomes e nomes, mas é principalmente Dudé Viana. O andarilho das canções. Mostrando poesia por diversos cantos do país, sob o olhar atento de Cruzeiro Vídeo.

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