Paulo Jorge
Dumaresq
Ansioso.
Não foi de outra forma que o ator e produtor teatral João Antonio Vale recebeu
a reportagem em seu imóvel encravado na rua da Misericórdia, de frente para o
espelho do rio Potengi, na Cidade Alta. Nos preparativos do bate-papo já foi
soltando o verbo e adiantando histórias de vida nas quebradas do mundaréu.
Brindou o dramaturgo Racine Santos com cerveja e a imagem de Santa Teresinha que
nunca lhe deixa faltar dinheiro em casa.
Em sua autodefinição, confessa que é
uma pessoa de alma boa, mas ao mesmo tempo explosiva. Sente intensamente as
paixões e por isso tem sempre muito amor para dar. Acrescenta que gosta de
trocar experiências com os colegas de profissão e celebrar a vida. “Atualmente,
estou mais pé no chão. Depois da faixa dos 50, a gente se ama mais e dá mais
valor ao que faz”, ressalta.
Nascido
a 23 de junho de 1959, na solar Areia Branca, lembra que desde sempre quis ser
ator. João Antonio credita ao pai José do Vale – seu ídolo - a paixão pela
arte. Conta que era levado pelo genitor para o circo e sob a empanada observava
atentamente os dramas que se desenrolavam no picadeiro. Era a fagulha que
precisava para sentir o fogo de representar queimar suas entranhas. O pai foi
seu maior incentivador.
Conforme
o ator, nos anos 1960 havia grande efervescência cultural em Areia Branca,
inclusive a cidade contava com um cinema de 600 lugares. Nos dias de hoje, o
berço de Carlos de Souza, Deífilo Gurgel, Mirabô Dantas, Rodrigues Neto e Tico
da Costa é caricatura de si mesmo: “Independente das equivocadas gestões
municipais, eu me orgulho muito da minha cidade. Adoro ser de Areia Branca.
Tenho uma relação maravilhosa com o mar. Gosto do movimento das ondas. O mar é
muito misterioso”.
Nas
idas e vindas da família, mudou de cidade algumas vezes, até se estabelecer em
Natal. Mossoró e Fortaleza também estiveram no seu caminho quando criança. Morando
em Natal no início da década de 1970, vai estudar na Escola Estadual Sebastião
Fernandes, onde começa a fazer teatro aos 12 anos. Representa em adaptações dos
romances “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, “Barro Blanco”, de José
Mauro de Vasconcelos, e “Iracema”, de José de Alencar.
Descoberto
por Racine Santos, estreia oficialmente no espetáculo “A Festa do Rei”, na pele
do personagem Coró. De cara, ganha o prêmio de Ator Revelação no Festival
Norte-rio-grandense de Teatro, promovido pela Fundação José Augusto (FJA). O
passo seguinte foi mambembar com o
trabalho pelo interior do Rio Grande do Norte na Kombi da Fundação. No
espetáculo, contracenava com os colegas de ofício Patrocínio Bessa, Fafá Bibi e
Kinha Costa.
Envolvido no movimento teatral da
capital, João Antonio presta vestibular e ingressa na primeira turma de Artes
Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mas é jubilado
por não frequentar as aulas. Na segunda metade dos anos 1970, toma parte no Grupo
Aquarius de Teatro e representa nas peças “Simbad, o Marinheiro” e “A Farsa do
Advogado Pathelin”, ambas dirigidas pelo dileto amigo Lenício Queiroga.
As
lembranças dos amigos são gás lacrimogêneo nos olhos de João Antonio. Vertendo
lágrimas, cita Racine Santos e Lenício Queiroga como os seus mestres no teatro.
Com Queiroga, aprendeu os macetes da produção. Racine o descobriu ator e o empurrou
para o palco. “Fiz cerca de 10 peças. ‘Apareceu a Margarida’ é meu termômetro
de ator. Gosto também de fazer o coronel Chico de ‘Elvira do Ipiranga’. E
adorei interpretar o José do auto Jesus de Natal”, destaca.
São Paulo
Com o intuito de mudar de ares e
fazer cursos na área teatral, João Antonio se manda para Sampa no início da década
de 1980, e na Pauliceia permanece oito anos. Representa na peça “A Morte do
Imortal”, de Lauro César Muniz, faz curso de voz com Eudosia Acuña Quinteiro e frequenta
o curso do recém-criado Centro de Pesquisas Teatrais (CPT-SESC), com o renomado
diretor Antunes Filho.
Em
1984, Antunes Filho ensaiava “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare. Quando
passou no teste do CPT, João Antonio ficou no núcleo de Ulisses Cruz. Com dois meses de ensaios, Antunes entrou na sala e
o “roubou” de Ulisses Cruz para representar o personagem Teobaldo no elenco de
“Romeu e Julieta”. O ator não chegou a estrear.
Se
a experiência com Antunes Filho propiciara crescimento artístico, por outro lado
João Antonio precisava sobreviver na selva paulistana. Como a vida não é para
amadores, abraçou o ofício de estilista de vestidos de noiva. Montou atelier na
rua São Caetano, no bairro da Luz, e abafou a
banca, conquistando uma freguesia que o fez se manter com dignidade na
Pauliceia durante oito anos. Desenhar bem não desenhava, mas conseguia
conquistar as noivas pelo modo como manuseava os tecidos. “Foi uma experiência
fantástica. Um aprendizado de vida. Aquilo era um teatro. As clientes ficavam
na minha mesa atraídas pelo meu carisma. Eu só tenho que agradecer a Deus”,
depõe.
Outra
experiência marcante foi em Aracaju, onde conheceu o encenador Luiz Carlos Reis
que o dirigiu no monólogo “Apareceu a Margarida”. Sublinha que o projeto escola
começou em Aracaju. Lá mesmo, fez uma dobradinha com Luiz Carlos, que
apresentava o monólogo “Junto ao poço”. Quando
voltou para Natal deu continuidade ao projeto em parceria com o também produtor
Lula Belmont.
Ribalta
Anos
depois, criou a Ribalta Produções que está em plena atividade. “Acima de tudo,
prezo a formação de plateia. Isaque Galvão, por exemplo, participou do projeto
na condição de aluno espectador e depois enveredou pelo teatro e pela música,
influenciado pelo projeto. Eu me preocupo com os textos e com a encenação dos
espetáculos selecionados. O projeto escola contribui com a cultura teatral da
cidade”, garante o produtor. Hoje em dia – confessa em letra de forma – assiste
pouco às produções locais.
Ator
de grandes recursos cênicos, João Antonio participa de três edições do
espetáculo “Um Presente de Natal” e da edição de 2005 do auto “Jesus de Natal”.
Lamenta que o primeiro não seja mais apresentado no centro histórico, uma vez
que era uma maneira de congregar a família cristã em torno de um espetáculo
natalino. Em contrapartida, afirma que não integrará mais nenhum megaespetáculo,
porque não tem paciência para aturar ensaios quase diários. Nos espetáculos a céu
aberto, conheceu atores da voltagem criativa de Crésio Torres, Gleydson Almeida,
Ijailson Moreira, Pedro Queiroga e Clenor Junior, que, na sua opinião, é um
artista completo.
Rasga
elogios também para a velha guarda. Considera Eliene Albuquerque a melhor atriz
potiguar. Cita, ainda, Beto Vieira, Fátima Arruda, João Pinheiro, Marcio Otávio
e abre parêntesis para a atriz Kinha Costa, que mora atualmente em Joanesburgo,
na África do Sul. Nomes (con)sagrados do teatro natalense.
Histórias
pitorescas tem para contar. A mais hilariante envolve o ator e dramaturgo
Rodrigues Neto, que chegou bêbado no Teatro Alberto
Maranhão para atuar no espetáculo “A Farsa do Poder”, de Racine Santos.
Preocupado com a situação crítica do amigo, o ator Geraldo Maia resolve dar um
banho em Rodrigues Neto. Na hora da apresentação, o autor de “Dom Quixote
Visita o Nordeste” disse suas falas na íntegra, enquanto que João Antonio e Gilberto
Sérgio esqueceram falas do espetáculo e ainda foram repreendidos em cena por
Rodrigues Neto.
Pisando
com os pés molhados sobre o fio desencapado do projeto escola, João Antonio
produz atualmente o espetáculo infantil “O Sítio do Pica-pau Amarelo” e o
adulto “Dom Casmurro”, ambos da Companhia Monicreques, com direção de Clenor
Junior, como também o monólogo “O Atheneu”, com o ator Luciano Luz. Presume que
agenciou mais de 40 espetáculos teatrais por meio do projeto escola. Marca
difícil de ser batida no estado. Na condição de ator, continua apresentando
“Apareceu a Margarida” e volta ou outra representa em “Elvira do Ipiranga”.
Amarelo
é a cor preferida de João Antonio Vale. Na Umbanda, é a cor de Xangô-Caô e no
candomblé de Oxum. Já
as cores do seu teatro são azul e vermelho. Na cozinha, gosta de preparar
frango e feijão, mas no corre-corre da vida não tem muito tempo para se dedicar
à arte culinária.
Prestes
a completar 54 anos, a relação de João Antonio com o dinheiro não é das
melhores. Dinheiro na sua mão é furacão. Confessa que não sabe administrar os
cobres. Mas hoje encontrou na assistente Nilda a pessoa ideal para gerir as
finanças. Declara que tem muito orgulho da atual equipe da Ribalta Produções.
Em
que pese não frequentar muito a igreja, o artista crê que a religião é
importante para se conectar com Deus. Busca na filosofia kardecista respostas
para seus questionamentos sobre a vida e a morte. A felicidade vai buscar
sempre, pois adora viver, mesmo com as fraturas sentimentais e os desafios
diários que tem de transpor na luta pela sobrevivência. Assim é João Antonio
Vale. Sem tirar nem pôr.
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