4 de junho de 2014

Pássaros, aves, cinema

     
                   

Anchieta Fernandes

            Se eu quisesse apenas relembrar os gorjeios que agradaram os ouvidos das platéias do mundo, e não os grasnidos que irritaram as platéias do mundo, estaria registrando algo sobre as pequenas aves que apareceram nas telas cinematográficas, e não sobre as grandes aves que também apareceram nas telas cinematográficas. Mas o cinema é democrático. A gravação magnética do aparelho de filmagem para a pista sonora da fita não escolhe o tipo de som que vem de microfones via alto-falantes. Com ajuda do aparelho sincronizador, documenta para a leitura apreciativa do espectador não somente o som produzido pela siringe de pássaros canoros.
            Estes animais que tem asas e bico estão presentes em filmes, dando-nos a beleza dos trinados que o pássaro emite somente quando o Mr. Hulot, no filme “Meu Tio” (1958), de Jacques Tati, deixa o reflexo solar da vidraça bater na gaiola; ou dando-nos a beleza visual do pairar majestoso das asas dos condores na Cordilheira dos Andes, no filme “O Vôo do Condor” (1985), de Michael Andrews. Aliás, na primeira mostra de filmes em Natal, a 16 de abril de 1898, foi visto um dos primeiros filmes feitos pelo inventor da Sétima Arte, Louis Lumière, cuja câmera pegara a imagem de aves, sendo este o curta-metragem “A Comida Aos Pombos na Praça de São Marcos, em Veneza”.
            Qual o cinéfilo que não recorda uma cena encantadora de Chaplin, no filme “O Circo” (1928), quando ele, como mágico, não controla o momento de os pombos saírem das caixas misteriosas, e a balbúrdia tira o segredo do número, vários pombos saindo e voando desordenadamente? Na história da projeção de filmes em todo o mundo, muitas crianças devem ter soltado gargalhadas ao verem esta cena. Como também devem ter-se enternecido ao verem e ouvirem outras cenas em outros filmes. Por exemplo: a menina que vem da Índia para morar numa mansão rural, na Inglaterra, no filme “O Jardim Secreto” (1993), de Agnieszka Holland, vê um tordo se tornar seu único amigo, nos primeiros dias na mansão.
            Sobre o filme “Voando Para Casa” (1996), de Carroll Ballard, o crítico Rubens Ewald Filho opinou, em seu livro “DVD News Guia de Filmes” (edição relativa a 2001), que “é de extraordinária beleza e sensibilidade”, e nele “tudo funciona, desde o elenco (...) até as cenas verossímeis com os animais.” Conta a história de uma menina que, juntamente com o pai, adota um bando de pequenos gansos, e treina eles para o vôo migratório. Por sinal, este tema, de crianças gostando de aves e as ensinando a agirem naturalmente em suas atividades anatômicas, biológicas, seduziu outros diretores. O filme “Kess” (1969), de Ken Loach, conta a história de Billy Casper, que desde menino se afeiçoa aos falcões, treinando um deles.
            Talvez o vôo belíssimo das grandes aves, e a música do gorjeio dos pequenos pássaros despertem o imaginário de muitos artistas do cinema a criarem histórias com pássaros que terminam por agradarem bastante às crianças. Foi o caso de desenho animado “A Maravilhosa Viagem de Natal” (1986), de Brian Cosgrove, onde uma garotinha recebe um papagaio tagarela como presente de Natal, e o bichinho a leva em uma viagem cheia de fantasias. E se em alguns filmes, humanos ajudam e treinam aves, em outros são os pássaros que ajudam os humanos. Dentro de uma série de filmes adaptados dos personagens de Hans Christian Andersen, nasceu a menina que de tão pequena é chamada Polegarzinha.
            No desenho animado “A Polegarzinha No Reino Encantado” (1993), do diretor australiano Richard Slapcznski, um sapo rapta a Polegarzinha, que, no entanto, termina salva por uma andorinha, levando-a para uma terra encantada. Um dos mais famosos contos de fada de Andersen é “O Rouxinol”, onde um rouxinol trinando maviosamente no jardim imperial salva o imperador de uma terrível doença que o fazia delirar. O cinema aproveitou esta história com variações. Sempre usando a dupla inseparável, o imperador e a ave canora, Em “O Rouxinol” (1983), de Ivan Passer, a questão não é salvar o imperador de uma doença, e sim de inimigos que querem lhe tomar o trono. Este argumento deu até prêmios.
            Foi na década 40 do século passado. No Festival de Locarno (Suíça), foi premiado um filme oriundo da Tchecoeslováquia, filme desenvolvido com animação não desenhada e sim usando com maestria bonecos, marionetes: “O Rouxinol do Imperador” (1949), do admirável artista Jiri Trnka. Aliás, não é fora de propósito lembrar aqui que na Tchecoeslováquia tiveram também outros gênios da animação que também usaram o tema dos pássaros. Foi o caso, por exemplo, de “O Tesouro da Ilha dos Pássaros” (1952), de Karel Zemã, desenvolvido em três dimensões. Os pássaros já são animais cativantes, e quando o cinema mostra a beleza deles através de uma técnica tão comunicativa assim é um presente.
            Resulta que muitas vezes passamos a ver os pássaros via /sétima Arte sob as lentes da simbologia. No filme “Napoleão” (1926), de Abel Gance, este “pioneiro do cinema”, ao lado de Griffith e Eisenstein “desenvolvendo a gramática cinematográfica” (como disse Rubens Ewald Filho), existe uma superposição da imagem de uma águia sobre a figura do general francês, talvez simbolizando o grande vôo do conquistador sobre o mapa de suas investidas guerreiras na Europa e na Ásia. E no filme “A Nós a Liberdade” (1931), de René Clair, o prisioneiro fica embevecido com o canto dos pássaros nas roseiras. Mas os pássaros podem acrescentar algo a mais aos prisioneiros além da simples alegoria de ouvir seus gorjeios.



            Estes gorjeios podem significar a lembrança de ouvi-los quando criança, em plena liberdade. Mas no caso do filme “O Homem de Alcatraz” (1962), de John Frankenheimer, o relacionamento pássaros-prisioneiro pode significar também a dignidade e a capacidade humanas, reveladas inclusive por trás das grades. O personagem é baseado na figura real de Robert Stroud, famoso prisioneiro da prisão norte-americana Alcatraz (onde esteve preso também o mafioso Al Capone), condenado à prisão perpétua, mas que com o passar do tempo, de tanto cuidar e observar pássaros doentes que pousavam na janela de sua cela se tornou um cientista, um ornitólogo conceituado por seus ensaios.
             Determinadas aves são belas em si mesmas, no seu porte, no jeito com que se apresentam aos nossos olhos, mesmo sem estarem voando ou cantando. Em seu comentário ao filme “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), de Elia Kazan, no livro-antologia “Clarões da Tela” (publicado em 2006 pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Irene de Araújo Van Den Berg, falando sobre um aspecto da trama, conta que a personagem Blanche, induzida a “confessar seus encontros amorosos”, primeiro diz que foram no Hotel Flamingo, embora depois diga que o nome do hotel Tarântula. Irene deduz então, tirando sua conclusão do nome do animal que dá nome ao hotel.
            Diz Irene: “O flamingo, sensível e delicado símbolo da elegância e requinte, cedia lugar à imagem do traiçoeiro, do agressivo, do cruel, enfim, daquele que assumia completamente o prazer, o desejo e o consumia até o último pedaço.” Mas outra ave bela e elegante em seu jeito de se apresentar é o cisne.Porisso, que fica algo belo por onde ele passa e onde fica. No filme “O Lago dos Cisnes” (1968), dos diretores russos Appolinary Dudko e Konstantin Sergeiev, e baseado em famoso bailado do compositor Tchaikovsky, cisnes habitam e nadam num lago negro, mas quando o príncipe Siegfried vence o gênio do mal, o lago dos cisnes vira uma clareira alegre, ensolarada, cheia de flores.
            A mesma ave serviu de motivo a outra peça musical, de outro compositor, o francês Saint-Saenz, e que foi parar no cinema. Foi “A Morte do Cisne”, que entrou no documentário cinematográfico “Ballet Bolschoi”, dirigido em 1958, na Inglaterra, por Paul Czinner. Mas, que dizer da razão de estarem também em alguns filmes, aves tão ridículas, sem gorjeios e sem vôos, como os pingüins? Não sejamos preconceituosos. Diretores talentosos aproveitaram o jeito engraçado dos pingüins andarem, e foram longe com filmes de animação, imaginando, por exemplo, eles como incríveis sapateadores musicais (v. “Happy Feet – O Pinguin”, de 2006, de George Miller, que chegou a ganhar um Oscar).
            Ou como surfistas (“Ta Dando Onda”, de Ash Brannon e Chris Buck, de 2007), no capítulo da imaginária humanização dos animais. Que é isto – humanização? É supor animais praticando gestos ou assumindo atividades que só a inteligência humana permitiria. Se a gaivota Fernão Capelo (v. o filme “Fernão Capelo Gaivota”, de 1973, de Hall Bartlett), tem este nome humano, planeja voar mais alto e mais rápido que os outros, e arranja uma namorada, isto é também humanização. Já dois patos do desenho animado dizneyano (Pato Donald e Tio Patinhas) têm sua humanização identificável a partir do hábito de vestirem roupas humanas.
            No filme “O Professor Aloprado” (1963), de Jerry Lewis, um pássaro preso numa gaiola, no laboratório do Professor Kelp, começa a falar dando conselhos e termina por se transformar num homem, aumentando a racionalidade e a inversão de gênero do tema. Quando os ianques resolveram usar o desenho animado para exportarem seu imperialismo ideológico através da chamada “política de boa vizinhança”, visando principalmente países da América Latina, idealizaram o papagaio humanizado Zé Carioca, criado pelo desenhista brasileiro Renato Canini, e lançado em dois filmes: “Alô, Amigos” (de 1943) e “Você Foi à Bahia?” (de 1945). Mas o desenho animado brasileiro tem seus próprios pássaros.
            No filme “Sinfonia Amazônica”, de Anélio Latini Filho, que é o primeiro longa-metragem brasileiro de animação (realizado em 1952), há tico-ticos dançando ao ritmo do chorinho e pica-paus atuando como percussionistas. Fora da técnica de4 desenho animado, outros pássaros brasileiros estão focalizados em documentários, captados em curta-metragem. Em 1938, por exemplo, Humberto Mauro documentou o joão-de-barro e araras na série “Riquezas Naturais”; e em 1948, documentou o azulão, no nº 2 da série “Canções Populares”. Para introduzir algo na faixa sonora, Mauro se serviu da música de Jaime Ovalle, com letra do poeta Manuel Bandeira, associando-a à imagem do homem que solta o pássaro.
            Aqui é bom lembrar que no Brasil duas aves denominam prêmios cinematográficos: a gaivota, denominadora do prêmio do Festival do Filme do Rio de Janeiro, que existe desde os anos 70 do século passado; e o Coruja de Ouro, que é o troféu instituído pelo Instituto Nacional de Cinema, e que premiou inicialmente os melhores do cinema brasileiro de 1969, destacando-se Glauber Rocha como Melhor Diretor, pelo filme “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”; Antônio Carlos Fontoura como Melhor Roteirista, pelo filme “Copacabana Me Engana”; Affonso Beato como Melhor Fotógrafo, pelo filme “O Bravo Guerreiro”; Grande Otelo como Melhor Ator. Pelo filme “Macunaíma”; e Odete Lara como Melhor Atriz (“Copacabana Me Engana”).
            Sendo os pássaros tudo isto de positivo que já foi mostrado, chegaram, no entanto, certos cineastas a tentarem identificar o possível lado negativo deles, apenas  simbólico ou não. Principalmente abutres ou corujas, carregam às vezes imagens ameaçadoras. Em seu filme “Limite” (1931), o diretor Mário Peixoto acrescentou ao tema (a própria impossibilidade de se viver) uma imagem-signo: os abutres que aparecem na cena de abertura e no final do filme, como mensageiros do mau agouro que perpassa esta impossibilidade de se viver. No filme “Inocência” (1983), do diretor Walter Lima Jr., o crítico Gilberto Stabili destacou o pio da coruja como prenúncio de um desenlace trágico.
            Mas as imagens mais ameaçadoras de pássaros, que se viu no cinema, foram as do filme “Os Pássaros”, realizado em 1963 pelo mestre do suspense Alfred Hitchcock. A trama traz pássaros de todo tipo atacando em enormes bandos os habitantes de uma pequena cidade da Califórnia, Bodega Bay. Gaviões, corvos, pardais e até galinhas se unem no grande exército ornitológico, para desfecharem uma fúria inusitada sobre qualquer ser humano – seja adulto ou criança, de qualquer sexo. Chegam a matar um fazendeiro. Da ameaça visual na rua (o grande número de corvos pousados na fiação pública dos telefones) à caça direta às suas vítimas em suas casas, eles aterrorizam.
            O crítico Antônio Barreto Neto, através de um comentário analítico do filme, na revista paraibana “Panorama Cinematográfico de 1964”, fez algumas perguntas tentando entender a alegoria hitchcoquiana: “Que significa a revolta dos pássaros? A vingança das aves contra a humanidade que por séculos e séculos os tem caçado e aprisionado? A reação da natureza às infrações cometidas contra as suas regras pelo homem? A ira divina ante a desagregação moral da sociedade moderna? A desordem do universo? A morte da civilização? O fim do mundo anunciado no estribilho apocalíptico do bêbado na cena do restaurante?” Talvez, sim, seja tudo isso.

            Mas, embora o tema seja importante, é bom não esquecer a criatividade do diretor. Para aumentar o impacto emocional das platéias, ele incluiu uma inovação: o trautonium, uma máquina de sons eletrônicos, capaz de destacar ou reproduzir ruídos, e inventada por Frederick Trautwein. É então que o gralhar áspero da voz de certas aves, aparece na trilha sonora do filme muito mais áspero e alto, atacando os sensíveis ouvidos de muitos espectadores, já apavorados pela ameaça visual, representada pelo incrível número de aves. Dizem até que a atriz principal do filme, Tippi Hedren, encontrada por Hitchcock na televisão, ficou após o filme à beira de um ataque de nervos.  

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