Luciano
Capistrano
O historiador Câmara Cascudo em sua História da cidade do
Natal, relata a saga de um alvissareiro, que do alto da torre da matriz, era
testemunha ocular das transformações ocorridas na cidade. Nesta pesquisa
apresentamos o “alvissareiro” da história, materializado em Manoel Dantas, Luís
da Câmara Cascudo, Eloy de Souza, Jorge Wilheim, Henrique Castriciano, Alberto
Maranhão, Januário Cicco (memorialistas, poestas, romancistas, entre outros
artesãos da palavra) e Bruno Bougard, João Galvão, Manoel Dantas (fotógrafos).
A imagem e a literatura, como fonte de pesquisa da história. A imagem sempre
esteve presente como fonte importante para entender o passado. Ao longo dos
séculos XIX e XX, a fotografia se consolidou como invento, essencial no
registro de paisagens naturais e culturais. O documento histórico, não é mais
restrito a documentos escritos, cada vez mais, a imagem ganha campo entre
historiadores. A utilização desta nova fonte histórica faz parte da nova
historiografia.
A literatura em todas as suas vertentes, compõem hoje,
com a fotografia uma fonte repleta de possibilidades para a pesquisa histórica.
O historiador, por seu oficio, dialoga permanentemente com o passado. Este
fazer histórico o leva a andar entre arquivos públicos e privados, buscar
construir os caminhos e descaminhos das gerações passadas é a tarefa primeira.
Um labutar, por entre, poeiras, revirando velhos manuscritos, documentos, hoje,
fontes que dizem mais do que uma carta de amor ou um balancete comercial. O
objeto pesquisado não exerce a mesma função de outrora.
No tempo presente o olhar do historiador, dá “voz” ao
passado através de sua interpretação do documento selecionado. Construir os
caminhos do passado, através da palavra e da imagem, este é o desafio da
historiografia atual. Esta pesquisa histórica objetiva a construção da história
da cidade de Natal através da utilização do acervo fotográfico do IHGRN
(Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte) e do jornal A
República, e da produção literária do Rio Grande do Norte, tendo como recorte
temporal 1901 e 1920. Neste sentido, selecionamos algumas “vozes do passado”,
poetas, ficcionistas, memorialistas, enfim narradores de uma época passada, o
que possibilita conhecer a transformação do espaço urbano a partir do “olhar”
do cronista, materializado no fotografo, muitas vezes não identificado, e dos
escritores que testemunharam a ocupação da capital Potiguar.
O educador Henrique Castriciano, Potiguar de Macaíba,
amante dos velhos e empoeirados papéis, em uma de suas crônicas publicadas em A
República, de 18 de março de 1908, afirmou: sinto um intenso prazer quando me cahe sob a vista,
bordado pelos arabescos que as traças costumam por nas laudas antigas, um
documento qualquer, onde ventou algum traço de vida dos nossos antepassados
(CASTRICIANO in ALBUQUERQUE, 1994, p. 129). É muito prazeroso encontrar
testemunhos de nossos antepassados, entre os caminhos das traças.
Os historiadores, até por força do seu oficio, em muitos
momentos, já vivenciaram a mesma sensação relatada pelo idealizador da Escola
Doméstica. Sobre o trabalho em arquivos, recorremos ao historiador
Bacellar(2006,p24):
O trabalho com fontes manuscritas é, de fato, interessante, e todo
historiador que entra por essa seara não se cansa de repetir como os momentos
passados em arquivos são agradáveis. Grandes obras historiográficas tiveram sua
origem nas salas de arquivo, onde muito suor e trabalho foram gastos, após
semanas ou meses de paciente e dedicada fase de pesquisa.
Revisando baús antigos, encontramos os testemunhos das
gerações de outrora, fontes materializadas em correspondências, relatórios de
governos, inventários, testamentos, periódicos, enfim, em uma profusão de
fontes impressas das mais variadas matrizes. Em visitas a arquivos públicos ou
particulares, também encontramos fotografias, outra fonte importante na compreensão
da sociedade do passado, seus costumes, seus dilemas.
Esta construção histórica, caminha de mãos dadas com a
memória. A memória constitui-se no elemento essencial na construção da
identidade. Deste modo, pode-se apreender que as identidades, coletiva ou
individual, formam-se a partir dos elementos da memória. Vejamos o que diz a
professora Ferreira(2004, p.98):
A iniciativa de diferentes setores da sociedade para recuperar e
divulgar suas memórias, através de livros, exposições, inauguração de
monumentos e criação de centros de memória, tem como objetivo reelaborar
identidades, difundir uma determinada visão sobre o passado (é bom lembrar que a memória, como a
história, é sempre produto de seleção feita no vasto campo do passado), e
reforçar a imagem pública de grupos ou personagens. São projetos em geral
concebidos para valorizar o registro de trajetórias institucionais ou pessoais,
para confirmar, a importância de eventos considerados fundadores, bem como para
instituir ou atualizar determinadas celebrações.
A memória é, então,
resultado dos vestígios das gerações passadas, ainda preservados, sejam eles na
forma material ou imaterial. Reveste-se no elo atemporal, fator de pertença das
gerações. A memória social, é assim, o reconhecimento do cidadão do hoje,
enquanto construção dos seus antecessores. Como afirmou o professor
Mesentier(2005, p.168):
Diferente da memória individual, a memória social se constrói ao
longo de muitas gerações de indivíduos mergulhados em relações determinadas por
estruturas sociais. A construção da memória social implica na referência ao que
não foi presenciado. Trata-se de uma memória que representa processos e
estruturas sociais que já se transformam. A memória social é transgeracional e
os suportes da memória contribuem para o transporte da memória social de uma
geração a outra.
Construir uma “cidade memória” é fazer uma viagem no
tempo através de livros, fotografias e periódicos. Fontes encontradas em
arquivos particulares e públicos. E como Henrique Castriciano, poder sentir
imensa alegria ao encontrar, por exemplo, em um número de “A República”,
notícia referente aos espetáculos ocorridos no saudoso Polytheama, brindar
nossos olhos com as imagens de Natal, captadas pelo fotografo suíço Bruno
Bougard e nos deliciarmos com prazerosas leituras de poetas, ficcionistas,
memorialistas e pesquisadores da história urbana de Natal.
Ao olhar o passado através do cronista da palavra ou da
imagem, o historiador esta utilizando uma fonte documental importante na
construção de um tempo determinado, é o caso de Natal dos primeiros anos de
1910. Exemplo são as crônicas de Henrique Castriciano, publicadas na A
República, e as fotos de Bougard,
tiradas no alto da torre da igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação.
Vejamos:
“Sempre surgem idéias neste sentido apparecem os
inveterados pessimistas: ‘Natal não é terra para isto’; cream-se dentes quando
tal reconhecer; ora carrapato com tosse; taes são as phrases que somos
obrigados a escutar, não raro com impectos de concentrada revolta.
No entanto vamos
caminhando, vagarosamente embora, porque os nossos recursos são insufficientes.
De alguns annos a
esta parte, construímos o theatro, o jardim, nivelamos e calçamos
diversas ruas, entre as quaes a Avenida Rio Branco, cujo
aformoseamento era um dos
impossíveis desta terra, concertamos o Baldo e o Mercado, a cidade
substituiu os seus velhos lampeões de gaz commum pelos de acetyleno”.
(CASTRICIANO, 1994, p.15-17).
Este fragmento do
texto de Castriciano é bem ilustrativo quando nos referimos a construção
histórica, tendo como fonte crônicas, pois, demonstra a utilização de
pressupostos históricos na pesquisa do passado urbano. Um viés presente nas
abordagens da história das cidades, espaço privilegiado quando se pensa na
produção de periódicos locais.
A imagem também
tem na construção histórica do espaço da urbe uma importância fundamental, ver
a evolução através de fotos captadas no inicio do século XX, é um instrumento
metodológico de grande valia para o historiador da cidade. Neste sentido as
fotos de Bruno Bougard, fotografo suíço que visitou Natal na primeira década do
século passado, tem uma relevância muito grande para o oficio do historiador.
A Natal de 1908, encontrada pelo fotografo suíço, tinha
pouco mais de 20.000 habitantes, era uma cidade ainda com características
coloniais, com ruas estreitas, casas conjugadas e erguida em um enorme areal.
Sua situação geográfica dificultava a locomoção de pessoas, o “caminho” do rio
e do mar, eram talvez as melhores opções para os viajantes que aqui aportavam.
Do alto, então,
nasceu a cidade sob a vigilância do “alvissareiro”, testemunha ocular da
abertura de ruas, do nascimento de bairros e da construção de pontes, Natal de
mar, rios e dunas, esta era a cidade vista do alto da torre da matriz, local
onde o observador do tempo, pode presenciar as intervenções urbanas ocorridas
na urbe. Como fez Bougard em 1908.
Uma cidade em transformação, que conhece o Bond, a
energia elétrica, as ruas planejadas de Cidade Nova, bairro criado pela elite
republicana, havida em fazer esquecer o passado monárquico, com as vielas do
período colonial, com sua habitações insalubres. Essa cidade, então, caminhando
para a modernidade tem na escrita poética de Jorge Fernandes o registro do novo
tempo construído no período, aqui um pouco tardio, da Belle Époque.
O BONDE NOVO
O bonde que inauguraram
É amarelo e muito claro...
Sua campa bate alegre e diferente das
outras...
E seus olhos vermelhos indicam
Petrópolis...
Anda sempre cheio por que é novo...
Chega na balaustrada espia o mar...
E os passageiros todos nem olham pro
mar...
Só vêem o bonde novo...
Aquele bonde só devia sair aos domingos
Pois ele é a roupa domingueira
Da Repartição dos Serviços Urbanos...
(FERNANDES, 1970, p. 83).
A poesia de Jorge Fernandes,
apresenta a cidade moderna, com seus novos meios de transporte, sua nova forma
de sentir e ver a paisagem. Uma cidade se modernizando e deixando no baú da
memória relatos como o de Eloy de Souza, sobre a dificuldade dos antigos
moradores da urbe em acompanhar os cortejos fúnebres. Como sair da Ribeira,
bairro baixo da cidade, ir segui até o alto, do hoje Alecrim, onde se encontra
o primeiro cemitério da cidade.
“
Já perdemos o hábito de fazer quarto aos moribundos e breve chegaremos à
perfeição de deixar os defuntos entre a Bica e o Alecrim, por falta de
convidados que cheguem ao cemitério.
Pobres
mortos! Também é tão difícil ir à vossa morada! O caminho é tão áspero e a
areia tão mortificante! [...]
Natal,
minhas senhoras e meus senhores, se transforma e sente-se que aos poucos irá
deixando essa amarga tristeza que ainda lhe dá um aspecto soturno e mau.
Há
jardins desgradados e felizmente livres da retouça dos herbívoros e da maldade
destruidora de que nos vamos libertando. As árvores já podem crescer na santa
paz do Senhor, e a Natureza completará certamente o esforço do homem.
A
cidade desperta de seu sonho três vezes secular e eu sinto bem a alegria de ver
que a estão vestindo de novo, para alegria de uma vida nova. [...]
O
mesmo esforço que tem rasgado avenidas empedra o areal, ameniza as ladeiras,
saneia as terras alagadas. Começou a viação urbana e o bonde cimentará de vez a
obra de pacificação entre os dois bairros”. (SOUZA, 1999, P.44-45)
Na
história da cidade encontramos nos cronistas fonte ricas em informações
referentes ao processo de urbanização, como essa supracitada de Eloy de Souza,
em Costumes Locais. A cidade de Natal em
seu processo de urbanização avança em direção as dunas, vencendo as diversidades
de sua geografia, chega ao alto, desce o canal do Baldo e aporta no hoje
Alecrim. Parte distante da urbe, constrói dois equipamentos urbanos, que os
cidadãos de outrora queriam longe do perímetro urbano: O Cemitério e o Lazareto
da Piedade, símbolos da intervenção do poder público na zona até então tida
como rural. O medico Januário Cicco, descreve o Alecrim dos primeiros anos da
década de 1920:
O bairro do
Alecrim se desdobra em Bôa Vista, Baixa da Belleza e Refoles. Em plenas ruas do
Alecrim, cercado pelas habitações, está o Cemitério de Natal, de edade secular
e impróprio, pela saturação, de exercer a sua funcção bíblica de reverter em pó
o envolucro da alma do peccador. A uns 200 metros da Cidade dos Mortos ficam
fontes de abastecimento d’agua á população de toda a Natal. (CICCO, 1920,
p.7-8)
Enfim, como
propomos neste artigo, a construção histórica da cidade de Natal através de
seus fotógrafos e cronistas, busca encontrar novos caminhos metodológicos da
pesquisa histórica, tendo como referencial a produção de imagens e de escritos
produzidos entre 1901 e 1920, na cidade de Natal. Ao concluir, lembro Câmara
Cascudo e seu Alvissareiro, personagem que nesta pesquisa não encontra-se no
alto da torre e sim na produção literária e fotográfica da capital Potiguar.
REFERÊCIAS
CASTRICIANO, Henrique. A esmo. In: ALBUQUERQUE, José Geraldo de
(Org.). Seleta: textos e poesias. Natal:
RN Econômico, 1994, p. 15-17.
FERNANDES, Jorge. Livro de
poemas. Natal: Fundação José Augusto, 1970.
FERREIRA, Marieta de Morais. Nossa
história. Rio de Janeiro, v. I, n. 8, p. 98, jun. 2004.
MESENTIER, Leonardo Marques de. Patrimônio urbano, construção da
memória social e da cidadania. Vivência.
Natal, n. 8, p. 167-177, 2005.
SOUZA, Eloy Castriciano de. Costumes locais. Natal: Sebo Vermelho; Verbo, 1999
Nenhum comentário:
Postar um comentário