Anchieta Fernandes
O bairro da
Ribeira é um dos mais importantes na história da cidade do Natal. Mas não há
uma data que indique com precisão em que ano começou a existir. Os
historiadores falam com referências indiretas. Em sua “História da Cidade do
Natal” (1), Luis da Câmara Cascudo afirma que “desde inícios da colonização
citava-se a região com suas características topográficas. Em 1603, ‘junto à
lagoa da campina’, Jorge de Araújo possuía uma olaria. Sabe-se, assim, que
antes de ali se construir razoável número de moradias o bastante para fixar um
agrupamento urbano, a indústria de fabricação de tijolos e telhas já começara.
Esta
expressão “lagoa da campina” define bem o que era o lugar. Cascudo explica: “E
porque a Ribeira? Ribeira porque a praça Augusto Severo era uma campina alagada
pelas marés do Potengi. As águas lavavam os pés dos morros. Onde está o teatro
Carlos Gomes tomava-se banho salgado em fins do século XIX. O português julgava
estar vendo uma ribeira, como pensou enxergar um rio no Rio de Janeiro.” (2).
A Ribeira
não era propriamente um bairro de Natal. No século XVIII ainda “era zona de
sítios para plantações morando apenas os guardas dos armazéns que vigiavam as
mercadorias exportadas para Pernambuco.” (3)Nos próprios documentos se
constataria a condição ambiental da região separada de Natal. O vigário da
paróquia situada na cidade fundada em 1599, Padre Dr. Simão Rodrigues de Sá,
pede terras devolutas defronte do cruzeiro da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, “indo pela estrada que vai desta Cidade para Ribeira.” (3)
Devido à
relativa distância entre a Cidade Alta e a Ribeira, temia-se ir para esta
última a altas horas da noite. Diz Cascudo: “Durante a noite nenhum cidadão da
Cidade Alta afrontaria os descampados da Ladeira, temendo, temendo o lobisomem
que corria nas trevas da sexta-feira, para ir bisbilhotar pela Ribeira, sombria
e triste.” (4) E mais: “em fevereiro de 1834 a Câmara Municipal pedia ao
Presidente da Província, Basílio Quaresma
Torreão, a criação de uma Escola para Meninos na Ribeira, argumentando que
‘seria para facilitar a concorrência destas que a deixam de fazer pelo grande
intervalo que há despovoado entre uma e outra povoação mormente pela decência
do sexo que tem de transitar por caminhos inabitados.” (5)
Em sua “Nova
História de Natal” (6), o historiador Itamar de Souza escreveu: “...a Ribeira
que conhecemos atualmente começou a delinear a sua fisionomia entre o fim do
século XVIII e o início do século XIX.” (7) Na verdade, pelo menos como
intenção de equipar com melhoramentos urbanos o bairro, a coisa começou
propriamente em meados do século XVIII. Pois, como Cascudo registrou, em
documento de 1633 já se mencionava a pontezinha para se atravessar o lameiro da
futura praça Augusto Severo até à Rua da Cruz (depois, Avenida Junqueira Aires,
hoje Avenida Câmara Cascudo) sobre o riacho embaixo. Inicialmente, era apenas,
“um tronco de árvore, transposto em equilíbrio instável.” (8)Depois, se
construiu de tijolos uma ponte mais segura.
Atravessar
a pequena ponte era algo até romântico, pois, como se diz em texto do jornal A
República (9), a ponte seria um “delicioso passatempo, idílio da juventude
sentimental, ponto de recordações agradáveis.” Mas não se pode ficar sempre na
lentidão do romantismo. Salte-se do passar do tempo dos namoros na pontezinha
setecentista. Salte-se para os finais do século XIX, descortinando o panorama
da evolução da cidade do Natal a partir da efervescência comercial da Ribeira.
No seu
livro, Itamar de Souza escreveu: “”A Ribeira, conhecida também por Cidade
Baixa, nasceu banhada pelas águas do rio Potengi e o seu desenvolvimento urbano
foi impulsionado pela construção do porto, cujas obras foram iniciadas no final
do século XIX.” (10) Além de cargas de importação e de exportação, os navios
que atracavam no porto também traziam
passageiros do exterior, e levavam passageiros que iam para outros estados ou
para fora do país. Dentro do estado, os passageiros se serviam principalmente
do trem da Imperial Braziliam Natal and Nova Cruz Railway Company, cujo prédio
da estação inicial, à praça Augusto Severo, foi inaugurado a 28 de setembro de
1881.
Dentro da
cidade de Natal, quem prestou muitos serviços nos transportes dos passageiros
urbanos foram os velhos bondes, primeiro os bondes puxados a burro, tráfego
inaugurado a 7 de setembro de 1908, indo da rua Dr. Barata à praça Padre João
Maria. Os bondes elétricos foram inaugurados no mesmo dia da inauguração da luz
elétrica na cidade, a 2 de outubro de 1911, tornando cada vez mais alegre e
progressista a fisionomia da cidade, e principalmente da Ribeira, centro de
comércio e de vida social.
A Câmara
Municipal de Natal publicou, em 1888, uma resolução dando novas denominações às
ruas da Ribeira. Pode-se constatar, através da relação estatística dos nomes
das ruas, que o bairro possuía mais de vinte ruas redenominadas.Saltando-se à
frente no tempo, constata-se que em 1897 o bairro possuía 696 casas e 2.800
habitantes, dentre eles, além dos profissionais comuns (criados, pescadores,
costureiras), os profissionais especializados em atividades mais técnicas
(médicos, engenheiros, tanoeiros).
Quando
estava findando o século XIX, em 1898, o natalense da Ribeira levava uma vida
romântica, mas numa cidade cujo movimentado comércio (existia até, na Ribeira,
uma loja com grande sortimento de fazendas, calçados, chapéus – tudo importado
da Europa, que tinha as pretensões dos donos justificadas pelo nome – O
Progresso), e alguns empreendimentos culturais não deixavam cair na rotina. Sob
a proteção do governador Ferreira Chaves (seu vice era o Dr. Francisco de Sales
Meira e Sá), que comandava do velho palácio da Ribeira – na Rua do Comércio, e
que depois se transformaria no cabaré Wonder Bar -, o meio intelectual ativava
o ano de 1898 com algumas iniciativas. Inclusive, foi neste ano de 1898 que se
começou a construção do Teatro Carlos Gomes (hoje, Teatro Alberto Maranhão).
Eventos
e Locais na Ribeira
Foi, pois, a
partir do final do século XIX, que o bairro da Ribeira passou a ser a região
mais significativa da cidade de Natal.Para caracterizar os ícones desta
significação, apontarei agora o que foi importante quanto a outras datas de
eventos e inauguração de locais, detalhando o que se refira a estes eventos e
locais.
No ano de
1898, pela primeira vez se viu cinema em Natal. A projeção das primeiras fitas
foi na Ribeira, é claro, mais precisamente, na Rua do Comércio (que depois se
chamaria Rua Chile), num depósito de açúcar, onde também eram apresentados os
espetáculos do Teatrinho da Fênix Dramática Natalense. Quem trouxe os primeiros
filmes a Natal foi Nicolau Maria Parente, inaugurando as exibições na noite de
sábado, 16 de abril de 1898.
Os primeiros filmes vistos foram documentários
do noticiário histórico internacional (principalmente de cenas filmadas na
Europa; como “O Jubileu da Rainha Vitória”, “O Casamento do Príncipe de
Nápoles”, “Banhos da Alvorada”, “A Chegada em Gôndola”, “A Comida aos Pombos na
Praça de São Marcos”, “A Catedral de Milão”, “O Panorama de Veneza”, “A Chegada
do Trem”).
No mesmo ano de 1898, era fundado o
Grêmio Polimático, cujos fundadores foram os escritores Antônio de Souza,
Alberto Maranhão, Manoel Dantas, Pedro Avelino e Tomaz Gomes. Era uma
associação de estudos literários, cuja redação era na Rua Dr. Barata, na
Ribeira.A sua fundação teve imediato resultado concreto, com o lançamento, no
mesmo ano de 1898, de sua revista, a “Revista do Rio Grande do Norte”, na qual
colaboraram nomes reconhecidos das letras potiguares, como Auta de Souza, Homem
de Siqueira, Henrique Castriciano, dentre outros. No livro “A Imprensa
Periódica no Rio Grande do Norte”(11), de Luiz Fernandes, está este elogio
sobre “A Revista do Rio Grande do Norte”: “A Revista do Rio Grande do Norte
veio ocupar lugar de honra nas letras potiguares e manteve-se em posição digna
e elevada durante todo o período de sua existência.”
Vale chamar a atenção para o fato de que
esta pioneira instituição cultural ribeirense, o Grêmio Polimático, não apenas
publicou a revista, mas estruturou-se como editora também , programando a
publicação de vários livros, saindo do prelo o poemeto “Mãe”, de Henrique
Castriciano, a da
novela “Sertaneja”, de
Policarpo Feitosa (pseudônimo de Antônio de Souza), dentre outros.
Em outra área das artes, a música, é bom
registrar aqui que, por decreto do então governador Alberto Maranhão (Decreto
nº 176, de 31 de março de 1908), foi criada uma primeira Escola de Música de
Natal. O decreto foi publicado no jornal A República, de quarta-feira, de 22 de
abril de 1908, e determinava que a escola funcionaria no prédio do Grupo
Escolar Augusto Severo, na Praça Augusto Severo.
Quando a Rua do Comércio (um dos locais
mais frequentados por clientes de lojas, bancos, farmácias etc.) foi calçada em
1908, a Ribeira já tinha atradição de centralizar o comércio da cidade de
Natal. O calçamento significavacontribuição para o progresso do bairro. Embora
que, ilusoriamente, proprietários de lojas se davam ao luxo de dar às suas
casas comerciais nomes europeizantes, como a Paris em Natal , ao lado do cinema
Politeama. Outra loja, também na Ribeira, tinha o nome bem característico do
estado de espírito modernizante; era O Progresso, com grande sortimento de
novidades.
Mas sem se preocupar muito com este
modernismo, outros estabelecimentos comerciais da Ribeira tinham a sua rotina
simples e convencional, mas por isto mesmo muito populares eles eram. Por
exemplo, o folclórico café Cova da Onça, na Avenida Tavares de Lira, que às
vezes se enchia de intelectuais e artistas (era o Café São Luiz da época), que
iam lá só para conversar, sem beberem nenhum cafezinho. Quando o café fechou
suas portas, surgiu a frase, repetida muitas vezes até hoje: “conversa é o que
fechou o Cova da Onça”.
Um bairro quase cidade independente, a
Ribeira supria as necessidades de mantimentos dos seus habitantes. Comprava-se
pães ou bolachas de várias marcas e tamanhos (grandes, miúdas, “regalias”,
brotes, “natalenses”, “primazias”) na padaria “Pão de Ouro”, de Lobato &
Cia. (também proprietários de uma alfaiataria), ou na “Padaria Central”, da
viúva Teixeira & Filhos. Livros eram comprados na Livraria Cosmopolita, de
Fortunato Aranha, à Rua 13 de maio, e que pelo São João vendia livros de sorte (“A Maniçoba”, “O
Pachola”, “O Bilontra”, “O Janota”, “O Oráculo de Canudos”).
Barba era tirada a $300 – trezentos
réis – na luxuosa barbearia “Quincó”, também na Rua 13 de maio, e que vendia
artigos para o carnaval (confetes, máscaras, “borboletas” para fantasias de
moças e bisnagas de lança-perfume). Aliás, por falar em lança-perfume, o
interessante é saber que até finais da década sessenta do século passado, o
lança-perfume, ou “cloretil” (como se dizia popularmente) era totalmente
permitido, e nos jornais saía a publicidade da loja Vianna & Cia., da Rua
Dr. Barata, anunciava vender "com“os melhores preços” da praça os lança-perfumes
“Rodovlan” e “Rigoletto” e o de luxo “Rodometálico”. Na imagem do “anúncio”, um
bebê carrega com ele um vidro de lança-perfume.
A 3 de outubro de 1917, o Decreto
Federal nº 3349 reconhecia de utilidade pública a Associação Comercial do Rio
Grande do Norte, cuja sede era na Avenida Duque de Caxias. O Presidente da
Federação do Comércio do RN, Militão Chaves foi, com seu irmão Raimundo Chaves
proprietários do famoso Armazém Natal, precursor dos shoppings, com matriz na
Cidade Alta e filiais na Ribeira e Alecrim.
Como já mostrei linhas atrás, em fevereiro
de 1834, a Câmara Municipal pediu ao Presidente da Província, Basílio Quaresma
Torreão, a criação de uma escola para meninos na Ribeira. E já registrei aqui
também a criação de uma pioneira Escola de Música, a funcionar no prédio do
Grupo Escolar Augusto Severo, na Ribeira. Pois bem: é isso mesmo. A Ribeira se
destacou também por sediar importantes estabelecimentos de ensino.
Pode-se mencionar principalmente os que
funcionaram na Praça Augusto Severo. Numa das esquinas da praça, está hoje o
prédio do Centro Clínico. Nele, funcionou, a partir de 1º de setembro de 1914,
a Escola Doméstica de Natal, rducandário pioneiro no Nordeste, idealizado por
Henrique Castriciano, estruturando um modelo primoroso de ensino das jovens
potiguares.
Outro prédio histórico na mesma praça, é
o que fica situado entre o Centro Clínico e o Teatro Alberto Maranhão. É o
prédio onde funcionou o primeiro grupo escolar do Rio Grande do Norte, o já mencionado
Grupo Escolar Augusto Severo, inaugurado a 12 de junho de 1908. Depois, este
prédio ainda teve mais outros usos, quase sempre dentro da área educacional.
Foi sede da Escola Normal e da Escola Isolada Noturna da Ribeira. Também
funcionando ali, em 1914. De 1952 a 1954, o prédio abrigou o Atheneu
Norte-riograndense; e de 1956 a 1974, o prédio sediou a Faculdade de Direito.
Com a transferência da Faculdade de Direito para o Campus Universitário, a Secretaria
de Segurança Pública passou a ter a sua sede no antigo prédio do Grupo Escolar
Augusto Severo.
Além da área educacional, a Ribeira tem
também, na sua história, a memória da religião. Na segunda metade do século
XVIII, já existia a capela do Senhor Bom Jesus das Dores, que depois se
transformou em igreja. A 9 de janeiro de 1932, o bispo da Diocese de Natal, Dom
Marcolino Dantas, criou a Freguesia (paróquia)do Senhor Bom Jesus das Dores.
Para muita gente, principalmente as
pessoas mais idosas, falar em Ribeira é falar em momentos agradáveis. Cinema e
teatro no Teatro Carlos Gomes (atualmente, Teatro Alberto Maranhão), inaugurado
na noite de 24 de março de 1904. A Tavares de Lira, onde, ao final ficava o
pequeno cais, de onde se partia de barcaça para a Redinha, era o ponto chic,
uma verdadeira festa para os habitantes e para os visitantes. Ali, aconteciam os
corsos carnavalescos, desfiles de carros de capota arriada transportando os
foliões mascarados e fantasiados que ativavam as “batalhas”, costume de se
jogar confete e serpentina de carro a carro, além de jatos de lança-perfume nos
vestidos e pernas das moças.
Registrando a importância da Avenida
Tavares de Lira (12), o historiador Itamar de Souza afirma, após mencionar
melhoramentos efetuados na referida avenida em 1919 (principalmente o
calçamento a paralelepípedo e desapropriações de imóveis para o alinhamento):
“...a avenida Tavares de Lira tornou-se a mais importante artéria do bairro da
Ribeira, e talvez de Natal, até o término da II Guerra Mundial. Escritórios,
bares, cafés, restaurantes, hotéis, praça de automóvel, tudo se aglomerava
naquele pedaço privilegiado da velha Ribeira, dando-lhe graça e movimento.”
Sem conseguir o nome do autor, Itamar transcreve trechos de um artigo
publicado no jornal A República, onde a avenida é definida como a alma da
Ribeira: “É uma avenida que exprime a alma tumultuada do bairro: a Ribeira. Há
de tudo nessa avenida. Deságua no Potengi, de cujo cais se admiram os poentes.
Tem a moderna gracilidade do ‘ficus-benjamim’, contrastando com as velhas
linhas coloniais de seus edifícios. Enfileiram-se, num contínuo aspecto de mais
de cem automóveis, em disparidade com as carroças e veículos inferiores que
também por ali transitam. Avenida de festa e de trabalho.. Cortam-na ainda os
bondes promíscuos, isto é, sem distinção de classes. Desfilam jornalistas e
jornaleiros. Senhorinhas gentis fazem o seu costumado passeio pedestre, rápido,
fugitivo, enquanto penetram a casa de modas ou verificam, de relance, o
movimento do ancoradouro. E, enquanto enchem de graça as calçadas da avenida,
aiasde toda feição também fazem o seu ‘footing’. A avenida Tavares de Lira é
bem a avenida democrática.”
Referências
bibliográficas:
1. Cascudo, Luis da Câmara. História da Cidade do
Natal, 2ª edição, Civilização Brasileira, 1980, p.131.
2. Souza,
Itamar. Nova História de Natal, 2ª edição, Departamento Estadual de Imprensa,
2008, p.234.
3. Souza,
p.236.
4. .Souza,
pp.293/294.
5. “Psicologia
da Avenida Tavares de Lira”, A República, 24/01/26.
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