Tarcisio Rosas
(Sociólogo e contista)
José Batista,
Zequinha ou simplesmente Zé, nascera e sempre vivera às margens do Potengi.
Quando criança, em gratas manhãs ensolaradas, mergulhava nas águas cálidas e
transparentes do calmo Canto do Mangue, ali brincando e, eventualmente, junto
com os colegas, recolhendo peixinhos coloridos para aquários, estes
diligentemente montados por sua mãe que os comercializava no Mercado das Rocas.
Que época!... - pensava, repassando aquelas cenas em quase êxtase.
Mais tarde fôra
iniciado na pesca em mar aberto (Santa Rita a Macau, ao norte, Redinha a Baía
Formosa na região centro-sul) e na tecedura de puçás e redes de arrasto, de
ambas atividades se tornando consumado mestre entre seus pares.
Anos a fio
naquela vida de sol/sal o deixara calejado, mãos fortes que nem tenazes, pele
curtida, semblante grave: testa franzida, lábios tensos e olhos fixos nalgum
ponto imponderável, talvez observando as insondáveis águas abissais que sempre
singrara.
Agora, aposentado,
vivia atormentado pelas singelas lembranças d’outrora. Sua “compulsória”
chegara com a artrite crônica, cansaço muscular e curteza de vista. O corpo
doía-lhe em tempo integral e singular sonolência acometia-lhe de vez em quando.
E, mais: na mesma proporção em que lembrava tudo do passado, esquecia não raro
quase tudo do presente. Perguntassem-lhe porventura o que almoçara na véspera
responderia peixe sem pestanejar, visto que se tratava de prato invariável; não
saberia, contudo, se fora arabaiana, cioba, xaréu, cavala, atum, tainha,
traíra, tilápia, piau, saúna, pescada, dourado, carapeba, curimatã ou qualquer
outra iguaria de nossa piscosa costa. E isso, de certa forma, o consumia por
dentro, provocando uma sensação de inutilidade que resultava em aguda
depressão.
Justo por seus
achaques mudara-se, conforme recomendação médica. A acentuada claridade no
Canto do Mangue agravava seus problemas de visão. Mas não conseguia afastar-se
do Rio e transferiu-se para as proximidades da Ponte de Igapó, além do cais do
refoles, hoje ocupado pela Base Naval, arrastando consigo todo o passado que
ficava a remoer, dia pós dia. Não fora diferente naquele 27 de agosto de um ano
qualquer.
Estava, como
sempre nos últimos tempos, à porta do seu mocambo observando o vário acontecer.
Nada escapava aos seus olhos experientes - embora enfraquecidos, agora mais
seletivos.
* * *
O olhar comprido
e o ligeiro esgar de sorriso do velho homem do Rio denunciavam a tristeza que
lhe ia na alma. Observava barcos à vela e algumas jangadas singrando em procura
do mar. Quantas vezes fizera semelhante percurso!... Nos mangues próximos,
crianças em alegre algazarra pescavam aratus, siris, caranguejos e outros
exóticos crustáceos, vez por outra afastando-se do lamaçal e mergulhando nas
águas turvas, outrora límpidas, do Potengi. Eles deviam estar na escola mas,
nestes tempos difíceis, era questão de sobrevivência participarem da formação
da renda familiar, com o que tinham a educação em segundo plano e a infância
parcialmente perdida.
Sentado em
rústico tamborete à porta do velho barraco, coisa de dez horas, pôs-se a
imaginar sua época e os ralhos de sua mãe, uma morena de corpo arredondado, voz
forte e coração mole: “Zequinha, onde ocê se meteu, moleque?!, gritava a cada
instante. Sorriu, de novo, um não-sei-quê de nostálgico no semblante. Crianças
são muito instáveis, irrequietas e irreverentes.
Uma asa-delta
fez acrobacias sobre sua cabeça e mergulhou lépida, desaparecendo num rasante
em direção à Redinha, enquanto portentoso navio resfolegava no porto em
formidáveis urros e um carro em alta velocidade cruzava a ponte de Igapó,
demandando as praias do litoral norte. O homem balançou a cabeça, desiludido:
“o alvoroço é o mal deste tempo!”, pensou, aduzindo: “só há progresso nas
máquinas”. Aperfeiçoada a cada instante, a tecnologia vai deixando para trás
valores humanos antes tidos como indiscutíveis - esta a essência do seu
pensamento.
Na verdade,
aquele raciocínio não era impressão de momento; mais que isso, aquela visão de
mundo se encorpara ao longo dos últimos anos, intensificando-se sobretudo desde
quando se aposentara. Vê-se, a pressa é um estado de espírito próprio aos
jovens. Paradoxalmente, os velhos parecem ter todo o tempo do mundo.
Tornando a fixar
os garotos, pouco a pouco, como se fossem imagens em dégradé, o conjunto de
gestos e cores passou a se confundir com cenas do remoto passado, para cuja
memória terá contribuído o sensual e intimista ruído das marolas lambendo os
suportes das velhas palafitas.
2
A Água fria aos
seus pés e a ânsia de se atirar no rio, como os colegas da mesma idade,
causavam alguma coisa intermediária entre euforia e medo, algo como
irresistível excitação pelo desejo de encarar o desconhecido, mas temendo-o.
Zequinha hesitou, claro. Na verdade, ainda estava bastante nítida em sua
memória o acidente que vitimara Ivo, outro menino da comunidade, apenas dois
anos antes. Tinha então oito anos mas a celeuma da vizinhança e o desespero da
família pareciam ter se cristalizado em suas retinas, tornando-o menos afoito.
Decidiu-se, enfim, tocando as pontas dos dedos na água e benzendo-se. Andou
alguns passos e mergulhou, sentindo confortável sensação de tepidez na pele. Emergindo cinco metros adiante, deu algumas braçadas
e aproximou-se dos companheiros.
“Zeca, cadê ocê
diacho?!”, gritava a mulher ainda jovem, apesar do excesso de rugas no rosto de
pele curtida e as mãos calosas, de dedos grossos e unhas malcuidadas. “O
condenado desse menino ainda acaba me tirando o juízo, ave-maria!”, prosseguia
a resmunguenta lavadeira. Na verdade, Maria não era lavadeira, apenas se
desincumbia dessa tarefa naquele momento. A1iás, a cada instante do dia tinha
uma tarefa a cumprir, como cozinhar, varrer o mocambo, lavar e passar peças de
roupa, tomar conta dos meninos e, ainda, ajudar o marido num quiosque anexo
preparando bolos, pastéis e cocadas à noite.
O Zeca apareceu,
finalmente, no entanto aos gritos: um molusco aferrara-se ao seu calcanhar como
uma tenaz e ele, apavorado, sentia calafrios. Pulando num pé só procurou o
aconchego da mãe, o que se revelou iniciativa pouco alvissareira. Rugiu ela,
então: “Desgraçado, só assim tu me procura, né?!”, e aditou a boa-nova: “Vou te
quebrar no pau, infeliz!”. O jovem sentiu-se encurralado entre respeitável pata
de caranguejo e a temível ira materna.
3
Semidesperto, o
velho levantou o pé automaticamente acariciou a cicatriz embranquecida. Àquela
noite tivera febre e delírios mas nunca mais desobedeceria a mãe. “Não há mais
crianças como naquele tempo” - sentenciou.
Nuvens escuras
perpassavam o céu, antes apropriado às asas-delta dos vôos juvenis. Esfregou os
olhos, bocejou. Absorto em divagações não percebera que o tempo, apesar da
aparente ociosidade, não parara, e que a tarde se fizera alta. Olhou uma última
vez os manguezais meio-destruídos pela poluição. Tudo em volta estava quieto,
irrepreensivelmente quieto. Não havia mais pressa.
Claro, não havia
mais crianças.
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