11 de novembro de 2016

CRÔNICA DO ADEUS


Para Militão Chaves, pai (in memoriam)
           
        Bené Chaves**

            Casualmente o vi pela última vez antes dele descer o patamar de sua residência e se dirigir ao consultório médico. Houve um pequeno diálogo de palavras atenciosas naquele rápido encontro. Depois também saí para minhas tarefas rotineiras, ficando no ar um clarão do derradeiro momento em que passamos um pelo outro.
         E quando chegou cedo da noite fui avisado que meu pai, que vira por acaso no começo daquela tarde, sentira-se mal na antessala da médica que já o examinara. Depois de um eletrocardiograma em que tudo estava bem ele tivera uma tontura e desfalecera nos braços da profissional. 
            Diante do acontecido voei ao lugar indicado. Embora detestasse hospitais, tive de entrar no mesmo. Fiquei ainda mais nervoso quando vi um punhado de gente, algumas pessoas chorando, outras simplesmente conversando, adiante terceiros discutindo assuntos alheios. Um medo tomou conta de meu corpo, ele tremulou quando soube que se tratava de um caso sério.
            Horas e horas se seguiram de angústia e desespero ao me confrontar (e, claro, todos que também se encontravam no local) com a triste realidade. Então, dois dias depois, vieram notícias sombrias e desenganadoras, metralharam enfim o infeliz anúncio: - O coração não suportou, está morto.
            É evidente que naquele momento se acabara mais uma existência, uma singular existência. Seria, porém, verdade o que diziam? Morto? Ou estaria apenas sonhando? Ninguém acreditou na voz rouca e cortante. Houve um burburinho no suposto silencioso hospital...
            Era um dia de uma manhã normal, nuvens cobriam pouco a pouco um céu meio azulado, de cor infinda. Nada mais podia ser feito, apenas os trâmites finais para a derradeira morada. Eu fiquei espantado, irritado e não dormi naquela noite. Somente a chorar e desacreditando ainda no irreversível fato e ato. Pensei que talvez pudesse estar vivendo um sonho de olhos abertos.
         E a vida, parecendo ser mesmo uma verdadeira utopia, não passava de um ato violento. Desde o momento da feitura de um ser humano. O prazer vivenciado no instante era delicioso, óbvio, nada se comparava àquele deslumbramento. E quando nascia dali uma pessoa de raras alegrias e muitos problemas ou tristezas, os culpados éramos todos nós.
            Argumentei que o desaparecimento súbito ou não de um ente querido também era outro tipo de brutalidade, fazendo, então, entristecer-me de tais ocasiões. E concordei quando um amigo comentou que a morte seria como uma porrada na cara. Ou no estômago.
         Todos teriam, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar o nefasto episódio. Era apenas uma questão de tempo e sorte. Ou azar. Então, senti-me impotente diante de atos impiedosos e desprezíveis, de um verdadeiro conjunto de conseqüências danosas.
            Achei, inclusive, que houve displicência no atendimento médico, essas coisas de aparelhos adequados em locais certos, etc., etc. Pra se ter uma leve idéia não existia um balão de oxigênio no consultório, daí todo o embaraço.
         Contudo, nosso coração é mesmo traiçoeiro, dizia para mim, parece uma máquina a enferrujar-se com o tempo. Nada o detém. E tudo agora era tarde, não adiantavam lamentações, disso sabia e repetia. O inevitável estava ali.
            Eu falava, andava, procurava um meio de fazer vogar minha inútil luta contra a morte, me juntava às multidões, gritava que vivia num mundo de farsas, de expressões idiomáticas (e também idiotas), de malevolências. Desejava uma vivência eterna, terna, aqui na terra, uma vida sem crueldades, ambições inescrupulosas, desprazeres quase irrestritos, um mundo justo.
         Um mundo onde o Bem sempre superasse o Mal. Embora soubesse que desde os primórdios as coisas já tivessem nascidas erradas, padronizadas e traspassadas de fanatismos e cobiças. Nada se criou de saudável.
            Lógico que há de se convir que eu quisesse uma bela existência para todos, talvez fosse uma luta ineficaz, porque se sabia relacionada a uma indeterminável ação vivente. Andei um tanto pela rua deserta, queria ficar sozinho, pensar em algo que pudesse condicionar meus argumentos. E tudo parecia ser em vão... Estaria  perdido nas trevas? Então desabafei: putavida!
            Mas, os fatos relatados na sabedoria que me era peculiar, na certa se orientariam para se amoldarem aos preceitos do meu inelutável desejo. Sofria com as mazelas dessa ignóbil vida que não aceitava. Pra que desgraça maior?
         Ficavam somente os resíduos espalhados no turbulento cotidiano. A morte estava ali, se defrontando e se insurgindo contra todos os presentes ou ausentes. Ela se tornara dona absoluta de nós.  
            Embora o tempo estivesse normal uma tempestade invadiu lá fora, razão pela qual me fez acordar de um pesadelo. Ou melhor, me fez aceitar, embora com fúria, de sua impactante e brutal realidade. Copiei, então, uma ideia genial, dois pontos:
         E como no melhor da ficção, imitando o filme “Superman”, que o cineasta Richard Donner realizou em 1978, dei vários vôos ao redor da terra e a fiz retroceder alguns anos. Era a arte querendo modificar a vida. Consegui, com isso, juntar, não somente meu pai, mas também os entes queridos. E, então, todos surgiram a cantar e encantar como nos velhos tempos. Seria a minha renúncia dali em diante...
            Continuemos neste delírio?

**Bené Chaves é escritor / poeta e escreveu este texto meses depois do ‘encantamento’ de seu pai ocorrido em 1984.
                
                                 

                                                   

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