Ângela Felipe
(leitura a partir do folder)
Anchieta
Fernandes
Entre 22
de junho a 18 de julho de 2012, na Pinacoteca Potiguar, esteve aberta à
visitação pública uma inusitada exposição. Comohá dois anos atrás não tive
tempo de me deter melhor na qualidade desta exposição, mostrando o seu valor, o
faço agora neste suplemento, após rever por acaso o folder da referida
exposição, com trabalhos fotográficos por Flora Maia. Denominada “o sagrado
feminino”, a exposição reuniu no mesmo espaço a obra pictórica de Ângela Felipe
e a obra poética de Mary Ibanhes. Interessante é que os poemas de Mary (como
bem o observou Paulo Nolasco em texto no folder) são “signos de imagens
plástico-visuais”.
E a
arte de Ângela Felipe, como podemos lê-la? É só deixar a sensibilidade do olhar
captador viajar através de curvas e cores (com predomínio do vermelho e suas
gradações – laranja, amarelo queimado, róseo), nuances e fragmentos de
movimentos. A junção das palavras e das formas pintadas em uma mesma exposição
é assim deduzida no texto de Xico Bezerra no folder: “Quando me deparo com a
obra de Ângela, belas mulheres num juntado de cor acompanhadas de um misticismo
delicado que se espalha ao redor, percebo a existência de poemas com rimas de
cor brotadas de pincéis que matizam versos, como se fossem todos eles oriundos
de uma aquarela colorida (...)”.
Aba-Puru suavizado
Como
uma projeção multiplicada do “Aba-Puru” tarsiliano, sem a mesma
intencionalidade antropofágica, as telas de Ângela Felipe suavizam a
agressividade do cacto no “Aba-Puru”,entendível no entanto a referida
agressividade do “Aba-Puru” por ser o quadro de Tarsila um símbolo de um
movimento (o modernismo de 22), que agrediu as formas tradicionais da arte. Já
a arte de Ângela Felipe é a depuração dessa agressividade modulada para o
caminho da visão transfiguradora, onde as cabeças umas são sem olhos, e outras
tem os olhos fechados como que na contemplação da paisagem interior.
Paisagem
esta que comporta igualmente objetos que introduzem no circunstancial a
satisfação de ver fora a gratuidade da oferta dos elementos da natureza: flores
(v. as telas “Rosa do Deserto”, “Rosa Serenada”, “Dorme a Flora”, “Mulheres e
Girassóis” e “Magia”), algodão (v. as telas “Colhendo Algodão” e “Colheita
Compartilhada”), aves (v. as telas “Somos Um” e “Renascença”) e a
simultaneidade de interioridade e exterioridade na alegria (talvez “o sagrado
feminino” também)de assumir a vocação do corpo da mulher em trabalhar para
gerar a vida (v. a tela “Amor”, onde a barriga da grávida dispõe ao olhar
receptivo do observador um verde atenuado, na perspectiva de um fruto/futuro
esperançado).
Instrumentos musicais
e o corpo feminino
O
toque, a pincelada de Ângela Felipe não ilude em sua motivação estética. O
sonho traduzido em formas, cores e gestos inusitados, é o antídoto que
possibilita suportar a falácia do conviver humano. Aderindo à referencialidade
dos instrumentos musicais, está não apenas reforçando a sensibilidade de
“poemas com rimas de cor brotadas de pincéis”, como interpretou Xico Bezerra,
mas vendo a rima, que é pura música vocabular, como um dos prazeres femininos,
religião e prazer em uma espécie de focos barrocos, numa versatilidade de
pesquisa quase surrealista.
Aliás, se fôssemos procurar uma escola
estética a que poderia se filiar a arte de Ângela Felipe, encontrar-se-ia pelo
menos três: o surrealismo temático (exemplificável na tela “Rosa dos Ventos”, onde
à figura humana se associam asas – de anjos? de pássaros? de borboletas? –
eternos símbolos do eterno feminino que protege, que liberta, e que põe as
cores nas almas), o cubismo geometrisante (v. a tela “Travessia”)e o modernismo
brasileiro (intuído a partir da tela “Aba-Puru”, de Tarsila do Amaral). Mas,
sem querer eu dizer que é influência direta, pois Ângela tem seu próprio
estilo.
A arte
dela é como a de outros pintores ao longo da história da arte, que são
listáveis na linhagem do fantástico, iniciada pelos holandeses Jerônimo Bosch e
PieterBruegel, e seguida pelo italiano Giuseppe Arcimboldo, o belga René
Magritte, o espanhol Juan Miró, o alemão Marx Ernst, o francês Francis Picabia,
o russo Marc Chagal, o suíço Henry Fuselli e até o brasileiro Bernardo Cid. Mas
as figuras de Ângela não são quase sempre participantes de grupos, de
coletividade (v. Bosch e Bruegel). Com algumas exceções de outras, é o sonho
artístico e o sentimento-vida de uma mulher.
V. por
exemplo o emocionante e transfigurativo retrato da tocadora de viola
sul-matogrossense Helena Meireles, que aprendeu a tocar sozinha e escondida, em
uma época em que a viola era um instrumento proibido às mulheres (v. a tela “A
violeira”, onde o braço da viola se encurva num abraço amoroso, e beijando o
rosto da genial instrumentista). Aliás, a presença dos instrumentos musicais de
corda se repete em outras telas, expressando uma estesia da forma do corpo
feminino (v. as telas “As Musicistas”, “Cumplicidade”, e “Safo – A Décima
Musa”), que é a beleza maior a seduzir o carente olhar masculino.
E o sagrado feminino da arte de Ângela
Felipe tem nuances de perspectivas puramente originais. No já referido quadro
“Safo – A Décima Musa”, a evocação do que, por vezes, é o mais bonito nas
mulheres – longos cabelos, que aqui, na arte, se sobrepõem ao corpo do
instrumento, exercitando na imagem o movimento do corpo feminino, no detalhe
dos cabelos que esvoaçam, adensando a visualização do gesto de ternura de duas
mulheres que se abraçam. A mesma ternura, agora de motivação religiosa, daquela
que se crê cheia de poderes sobrenaturais, a “Benzedeira”, que, com ternura de
mãe benze a menina.
Obra aberta
Como
toda arte contemporânea, o trabalho de Ângela Felipe também se enquadra na tese
umbertoequiana da “obra aberta”. Afirmou o escritor alexandriense (de
Alexandria, Itália): “Uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é
também aberta, isto é, passível de
mil interpretações diferentes, sem que isto redunde em alteração de sua
irreproduzível singularidade” * Então, o que diz Ângela, com sua arte, na tela
“Duas Marias e Uma Madalena”? É preciso recorrer às definições dos elementos
estéticos da arte contemporânea. Como atua. A arte verdadeira, profundamente
sígnica.
A arte
nascida do sentimento profundo de beleza em seu resultado criativo. Uma arte
inteligente, que não representa a forma humana com captação fácil fotográfica,
e sim apresenta a forma da imagem interior, concretizada em ângulos inusitados,
cobertos por cores e brilho de pinceladas compulsivas. É uma arte que não traz
uma cena pronta. A tela pergunta ao observador que a olha. A tela “Duas Marias
e Uma Madalena”pergunta: entre as três figuras onde estão as duas Marias e uma
Madalena? Será que Madalena é a composta em verde? Ou as duas Marias são as
figuras em verde e laranja, e Madalena é a figura em azul?
Todas
as três de mãos postas, cabelos eriçados, braços para o alto, elevando o
contemplador da obra a uma altura acima da mediocridade geral, onde pontificam
os preconceitos, a violência e a ignorância, esta últimasendo
assumida como a condição (falsa
condição)para ser feliz. Mas o elevar-se acima da mediocridade geral é
uma das interpretações da obrade Ângela Felipe. Uma obra que é também quase um
prazer genético imediato, não tão acima do comum dos mortais. Dentro da
possibilidade de abertura da obra de Ângela Felipe, poder-se-ia recepcionar
outra visão de um detalhe figurativo: aquelas pequenas cabeças.
Traçadas
por ela do jeito a remeterem a uma semelhança ao gene primordial, pois são como
que gotas espermatozóicas nascendo sobre corpos femininos, para formarem o
em-si do processo evolutivo biológico. Assim, Ângela Felipe conta a verdadeira
História da espécie, melhor que qualquer historiador oficial. Mas existem,
dentro do sentido de abertura da obra, as telas que se apresentam como puros
enigmas a serem decifrados no plano da leitura abstrata. O que são, ou o que
simbolizam as curvas em azul, vermelho, preto sobre fundo verde centralizado no
branco da tela “Tríade”? São cajus multicoloridos? É o mistério da beleza na
arte de Ângela Felipe.
·
NOTA: Citação de trecho do livro “Obra Aberta”,
do escritor italiano Umberto Eco, em sua primeira edição brasileira, publicada
em 1968 pela Editora Perspectiva S.A. Na coleção Debates, e em tradução por
Giovanni Cutolo.
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