A
MÚSICA POTIGUAR NO VARAL DE MANASSÉS
Manassés
da Silva Campos nasceu em Natal, no dia 31 de janeiro de 1962. No
último sábado de junho, ele foi sabatinado, em Brasília, por uma
equipe de primeira que me acompanhou nessa entrevista para o “Zona
Sul”. O repórter Roque de Sá (http://agenciatempo.com.br/)
cuidou não apenas da cobertura fotográfica, mas também encaixou
perguntas que facilitaram a montagem do mosaico da vida de Manassés
Campos. O violonista e empresário da gastronomia, Ricardo Menezes
(que está de casa nova, o Ancoradouro Sushi & Grill), utilizou
sua amizade de décadas com o entrevistado para preencher as lacunas
da história que eu e Roque tentávamos destrinchar. E Manassés não
mediu palavras para contar seu lado mais conhecido de jornalista,
poeta, compositor, músico e servidor público, como também revelou
a formação evangélica, a curta passagem pelo Exército e o sonho
não realizado de ser um pesquisador de teoria estética da
literatura. (robertohomem@gmail.com)
ZONA SUL
– Conte sobre sua família.
MANASSÉS
– Lá em casa todos temos nome começando com a letra “M”.
Miguel, meu pai, é da família Campos, de Lajes do Cabugi. Minha
mãe, Maria, é de São José de Mipibu. Míriam é a irmã mais
velha. Trabalhou muito tempo com o marido, Orismar Carlos,
construindo aquelas lojas da Sport Master. Ela diz que ainda é
empresária, mas hoje em dia não faz nada, só aproveita a vida.
Milca, a segunda, é servidora pública aposentada. Moisés é
servidor da Funasa. Mirtes também é aposentada do serviço público.
Depois dela, eu nasci. Em seguida veio Miguel Júnior, que é
servidor público da prefeitura de Natal, e Marinésio, que a gente
chama de Nezinho. Ele também é funcionário público.
ZONA SUL
– O que o seu pai fazia da vida?
MANASSÉS
- O homem que morava no interior, naquela época, normalmente
trabalhava com a terra. Fazer isso em Lajes, pleno sertão brasileiro
(lá passa anos sem chover), era praticamente impossível. Meu avô
tinha terras na região, mas improdutivas. Ele criava cabras e,
quando chovia, gado. Papai se mudou para Natal na busca de trabalhar
em alguma coisa. Virou ourives: montou uma joalheria para
comercializar ouro e joias. Mamãe saiu de São José de Mipibu para
estudar em Natal. Lá os dois se encontraram, casaram e formaram a
família. Meus pais têm mais de 60 anos de casados. Antes de ser
ourives, papai foi do Exército, na época da Segunda Guerra.
Conheceu mamãe quando deixou a vida militar. Quando casaram, ele se
converteu ao evangelho. A minha formação religiosa é evangélica.
Meus pais são da Assembleia de Deus.
ZONA SUL
– O que a religião evangélica representa para você?
MANASSÉS
– Por ter sido criado dentro dos conceitos e da doutrina
evangélica, eu, naturalmente, tenho um temor reverencial. Há quem
discorde, mas acho que esse temor reverencial de um Deus onipotente,
onisciente e onipresente é que segura a humanidade, sobre vários
aspectos. Se não tiver esse freio de acreditar em Deus, as pessoas
perdem o senso de humanidade.
ZONA SUL
– Há diferenças entre o evangélico de ontem e o de hoje?
MANASSÉS
– Os evangélicos de antigamente se modernizaram ou se adequaram a
uma nova realidade. As igrejas não podem se isolar, como se num
mosteiro estivessem, e fugir de um mundo real que a sociedade vive
hoje. A televisão ditou novos costumes, rotas e roteiros a serem
seguidos. Na minha infância, mamãe não podia usar batom, brinco ou
cabelo curto. Tudo o que pudesse proporcionar uma atratividade maior
às pessoas do sexo feminino era proibido. Principalmente nas igrejas
evangélicas mais conservadoras e tradicionais, havia essa proibição
talvez para evitar que os homens olhassem as mulheres com os olhos do
desejo, digamos assim. Hoje é diferente: elas vestem calças
compridas, cortam cabelo, usam brinco... ZONA SUL –
Os pastores ganhavam muito dinheiro?
MANASSÉS
– Só posso falar pelo que vi. Quem eu vi foi o meu pai. Ele
construiu muitas igrejas, não apenas do ponto de vista religioso,
mas físico também. Lembro que - com seis ou sete anos de idade - eu
o via preparando a massa, carregando tijolo, manuseando a colher de
pedreiro e construindo um templo. Papai nunca teve casa ou carro
comprados com o dinheiro da igreja. Ao contrário: quando havia algum
problema em alguma igreja evangélica do interior, quando algum tempo
estava caindo, quem ia resolver era ele. Sobre essa experiência eu
posso falar, a dos outros eu não sei. Papai hoje tem 86 anos e é
uma referência, é um dos pilares da igreja.
ZONA SUL
– E a música, como surgiu na sua vida?
MANASSÉS
– Meu pai tocou saxofone, antes de eu nascer. Começou quando era
militar e, depois, tocou na igreja. Não o vi tocar. Devo ter herdado
geneticamente esse gosto pela música. Quando minhas irmãs se
tornaram adolescentes, papai comprou para elas um acordeom. Por volta
de 1974, ele adquiriu também um violão. Meu irmão, Júnior, foi
quem primeiro começou a tocar alguns acordes. Pouco tempo depois, eu
também comecei a me interessar pelo violão. Comecei naquele
autodidatismo, buscando as notas. Todos os meus irmãos ou sabem
tocar alguns acordes em acordeom ou no violão. Até mamãe tocava
pandeiro.
ZONA SUL
– Que tipo de música você costumava ouvir?
MANASSÉS
– Comecei a me interessar pela MPB aos 12 anos, quando ouvi Milton
Nascimento. Um amigo me emprestou o elepê “Milagre dos peixes”.
Na mesma época, também fui atraído por músicas de Caetano, Gil e
Ivan Lins, entre outros, que tocavam nos carros de som de campanhas
políticas. A partir daí, juntava cada tostão que ganhava para
comprar discos. Em 1978, eu já tinha uns 200 discos. Além de MPB,
tinha rock pauleira (Uriah Heep, Black Sabbath e Kiss) e rock
progressivo (Rush). Até hoje sinto uma identidade grande com o
“Clube da Esquina”. Me identifiquei tanto com Minas Gerais, que
terminei me casando com uma mineira. Quando escutei “Beijo partido”
e quando ouvi “Minas” fiquei pensando: “que negócio é esse,
quem é esse povo, onde é essa nação?”.
ZONA SUL
– Nessa época, onde você estudava?
MANASSÉS
– Estudei em São José de Mipibu até completar 14 anos e entrar
na ETFRN, no curso de Mineração. Lá encontrei colegas que
compartilhavam do gosto pela música. Entre eles, Sueldo Soaress,
Ricardo Menezes, Santa Rosa e Zanoni, que infelizmente morreu
tragicamente há pouco tempo. Na Escola estudavam pessoas de várias
vertentes culturais, étnicas e sociais. A convivência no dia-a-dia
permitia a cada um captar e absorver aspectos da vida do colega. Era
uma coisa muito louca. Nessa época eu estava aprendendo uns acordes
de violão. Quando não sabia uma música, ia procurar naquela
revista Vigu (Violão e Guitarra). Ela trazia a informação musical
bem organizada. Quando você tocava, sentia que o acorde encaixava
direitinho. Depois surgiram outras publicações meio alinhavadas,
não muito bem trabalhadas.
ZONA SUL
– Por que você optou por Mineração?
MANASSÉS
– Na vida, às vezes você faz escolhas sem saber o porquê. Na
época a Petrobras estava se instalando no Rio Grande do Norte. Os
alunos de Mineração, Eletrotécnica, Mecânica e Geologia, quando
terminavam o curso, faziam um estágio de 45 dias e eram contratados,
sem precisar de concurso. Não aproveitei essa facilidade porque,
quando concluí Mineração, o Exército me pegou. A maioria dos meus
amigos fez o alistamento militar em cidades do interior. Eu me
alistei em Natal. Para complicar, o tenente que coordenava a comissão
de seleção do Exército me conhecia de uma forma não muito boa.
Jogando voleibol pela ETFRN, vez por outra enfrentava o time da
Brigada do Exército. Além de a gente sempre vencer, em duas ou três
ocasiões subi na rede e carimbei uma “medalha” no peito desse
tenente. Enquanto ele ficava bravo, eu ria. No dia em que fui me
apresentar, quando ele me viu, olhou pra mim e disse: “agora você
vai jogar com a gente aqui no time da Brigada”. (risos). Por
intermédio de Jorge Moura – nosso treinador de vôlei na Escola –
ainda busquei uma alternativa para escapar do Exército e ir para a
Petrobras. O tenente respondeu ao bilhete de Jorge dizendo que não
tinha quem me fizesse ser dispensado. Entrei e fiz curso para cabo e,
em seguida, para sargento. Por isso tive que ficar três anos no
Exército.
ZONA SUL
– Você recomendaria ao seu filho servir às Forças Armadas?
MANASSÉS
– A dinâmica social, hoje, é diferente. O mundo mudou. Hoje,
quando a família se organiza, ela tem condições de disciplinar e
administrar a vida de um adolescente para que ele exerça sua
cidadania. Por isso eu não diria a meu filho para ele cumprir o
serviço militar. Mas, para mim, foi importante. Pude exercitar a
autodisciplina e a determinação e também pude traçar objetivos e
buscar alcançá-los. O serviço militar contribui para o
amadurecimento do ser humano, o tempo que passei lá não foi
perdido. Fui para o Exército na época em que estava começando a
ingressar num tipo de leitura que era marginal e a me envolver com
movimento estudantil. Aos 18 anos, eu estava acostumado a participar
de rodas de violão com amigos, a jogar vôlei e futebol, a namorar e
ir para boteco, a curtir a praia e me divertir. Nessa época eu já
ensaiava tocar meia hora no “Boca da Noite”, na subida da Rio
Branco. De repente esse cenário mudou radicalmente e eu me vi no
Exército.
ZONA SUL
– Onde você foi servir?
MANASSÉS
- No 2º Batalhão de Engenharia e Construção, lá em Teresina. De
lá me despacharam para o destacamento Rodrigo Otávio, entre Xambioá
(na época município de Goiás, hoje pertence a Tocantins) e São
Geraldo do Araguaia (no Pará). O rio era a divisão entre Goiás,
Pará e o Mato Grosso. Fiquei exatamente na região onde poucos anos
antes, tinha sido debelada a Guerrilha do Araguaia. O destacamento
existia naquela região para não permitir a repetição da
experiência.
ZONA SUL
– O que de interessante, sobre a guerrilha, você pode contar?
MANASSÉS
– Diziam que as armas dos guerrilheiros eram importadas da Rússia
e de Cuba, mas elas não passavam de espingardas de soca usadas por
trabalhadores e caçadores da floresta. Falam na prisão de gente com
arma automática, mas, pelo que presenciei, elas não existiam. Não
vi metralhadoras ou fuzis. Como a coisa ainda estava fresca, os
moradores tinham medo de fazer muitos comentários sobre o assunto.
Mas ouvi que algumas pessoas teriam chegado por lá incentivando a
tal guerrilha. Porém, o povo da região nem sabia o que era. A
população só veio compreender depois. O Exército pensava que
queriam fazer uma revolução, mas não existia nada disso. Muita
gente morreu sem saber porque. Arquivos mostram que pessoas foram
presas, torturadas e mortas.
ZONA SUL
– Que conclusão você tira desse período no Araguaia?
MANASSÉS
– Na época, eu não tinha uma leitura política adequada. Hoje
entendo que, a exemplo de tantos fatos brasileiros, sufocaram uma
coisa que não existia. Houve um exagero. Em Xambioá tentaram
sufocar uma guerrilha rural que na verdade não existia. O que tinha
era gente passando fome e procurando terra, mas o latifúndio não
deixava. Mas, naquele tempo, eu era um militar que nem sabia onde
estava. Um jovem de 18 anos que tinha saído de Natal e largado
aquela rotina de ir para escola, tocar violão e me divertir com os
amigos. Me vi dentro do Exército, no meio do mato, na divisa do
Pará. A experiência me chocou, mas também contribuiu para eu ter
uma visualização de que o mundo não era só aquele habitat que eu
compartilhava com a família e os amigos. Os horizontes ampliam
quando você sai do seu círculo natural. Passei seis meses em
Xambioá. De lá voltei para Teresina e retornei para Natal.
ZONA SUL
– Que rumo sua vida tomou depois do Exército?
MANASSÉS
– Quando saí do Exército, alguns amigos da minha época já
estavam trabalhando, enquanto outros faziam faculdade. Saí meio sem
saber o que ia fazer da vida. Não consegui estudar enquanto estava
na vida militar. Depois do Exército passei dois anos parado, só
estudando violão e vivendo. Com 23 anos, entrei no curso de Letras,
da UFRN. A Mineração eu enterrei de vez. Talvez se eu tivesse ido
para a Petrobras, não teria tentado realizar meu projeto de vida:
ser um pesquisador de teoria estética da literatura.
ZONA SUL
– Por favor, explique essa teoria estética da literatura.
MANASSÉS
– Em resumo, ela estuda como definir os grandes clássicos da
literatura, como o texto se organiza e o que o conteúdo daquele
texto quer dizer. Por exemplo: quando você escreve “no meu jardim
existem muitas flores e o jardineiro colhe essas flores para me dar”,
não tem coisa mais lógica do que isso. Mas, quando a frase é “no
meu jardim existem flores que engoliram todos os monstros”, aí é
preciso interpretar o que o autor quis dizer com aquilo. Que flores
são essas que engolem monstros? O autor pegou os signos, as
palavras, e construiu um texto que vai possibilitar várias
interpretações. De certa forma, a teoria estética da literatura é
o estudo do que os autores querem dizer com seus textos. Meu projeto
de vida, naquela época, era esse. Por isso fui cursar Letras, mas
não terminei. No último semestre desisti de ser teórico da
literatura. Falou mais alto a necessidade de existência. Mas, até
então, meu projeto era ir para São Paulo, tentar ser professor da
USP.
ZONA SUL
– Durante esse período, onde a música se encaixava?
MANASSÉS
– Sempre estive próximo da música. No tempo de São José de
Mipibu eu gostava de ficar na praça, tocando com meu irmão Júnior
e os amigos Eugênio Parcele e Ismael Alves. Ismael, que é de
Parnamirim, nessa época morou em São José de Mipibu. Depois ele
entrou em um formato de produção musical vinculado aos movimentos
sociais. Na ETFRN, até nas viagens do time de voleibol a gente
levava o violão. Mesmo no Exército, nunca deixei de tocar.
Continuei tocando violão e lendo poesia. O que me fez sentir
necessidade de compor foi ver os caras tocando na noite, em Natal. A
noite sempre foi uma escola pra todo mundo.
ZONA SUL
– Naquela época se tocava música autoral nos bares?
MANASSÉS
– Pouco. Quem começou a tocar um pouco de música autoral foi
Expedito. Depois, Nazareno voltou de São Paulo e montou o
“Antigamente”. Lá, ele e Silvana tocavam composições próprias.
Pedrinho Mendes e Sueldo Soaress começaram mais ou menos na mesma
época. Mas a produção não era grande. Infelizmente, Natal nunca
oportunizou aos seus artistas uma inserção maior no contexto
cultural da cidade. Houve certa efervescência entre os anos 1990 e
2000. Depois começou a queda e hoje está em banho-maria. Natal, do
ponto de vista da música popular, está congelada de uma forma meio
triste. A primeira vez que toquei em bar foi no “Boca da Noite”.
Ao final da apresentação de Sueldo, peguei o violão e comecei a
tocar. Como as pessoas gostaram, a dona do bar me chamou e pediu para
eu continuar tocando por mais meia hora. A partir daí comecei a
tocar na noite, mas esse nunca foi o meu forte. Tocando em bar, fui
me aperfeiçoando. Então, resolvi tentar estudar. Entrei na Escola
de Música da UFRN e estudei teoria um tempo. Estudei violão
clássico para ter uma base e conhecer os acordes todos. Porém, acho
que para tocar bem um instrumento musical depende do instrumentista.
Ou você estuda por si só, ou termina sem conhecer.
ZONA SUL
– E as composições, quando começaram a surgir?
MANASSÉS
- A primeira música que compus foi para participar de um festival
interno da ETFRN, em 1979. A música não logrou sucesso. Na segunda
tentativa, a música que inscrevi era um pouco melhor, mas também
não teve boa classificação. Porém, em 1987 inscrevi duas músicas
próprias e uma terceira – em parceria com Edinho Queiroz – no
Festival da UFRN. Essa última, chamada “Upstairs”, ganhou o
festival. Teve época de eu tocar em bar mais constantemente, mas
Natal nunca oportunizou a ninguém a possibilidade de ter uma vida
musical autoral fazendo shows e participando de projetos que
permitissem sua sobrevivência. É bom lembrar que artista não vive
de ar, nem de vento.
ZONA SUL
– Será que a competitividade dos músicos potiguares entre si
contribui para isso?
MANASSÉS
– Até o final da década de 1980, poucos tinham ido buscar espaço
no Rio de Janeiro e em São Paulo: Flor de Cactus, Nazareno, Gilson,
Terezinha de Jesus, Mirabô (que depois migrou mais para o mundo
sindical) e outros poucos. Pedrinho Mendes passou um tempo curtíssimo
no Rio, e também não logrou êxito. Teve também Gilliard, Carlos
Alexandre... Acho que o grande sucesso potiguar foi a música
“Casinha branca”, de Gilson. Mas, curiosamente, o Rio Grande do
Norte foi um estado que não projetou ninguém no cenário nacional
daquela época. Outros estados que conseguiram formar artistas de
sucesso, ainda hoje persistem. Terezinha de Jesus teve um desponte
importante. Além de a música dela ser boa, ela sempre foi uma
figura maravilhosa. Só Terezinha para explicar porque depois de
tanto sucesso ela voltou para Natal.
ZONA SUL
– Terezinha fala sobre esse tema em entrevista que deu para o “Zona
Sul” e que está disponível na Internet:
(http://zonasulnatal.blogspot.com.br/2009/01/entrevista-terezinha-de-jesus.html).
MANASSÉS
– Talvez várias circunstâncias tenham impedido que a carreira de
Terezinha e de muitos outros tenha decolado e eles não tenham hoje
um nome forte nacional.
ZONA SUL
– Como está a música brasileira hoje?
MANASSÉS
– Esteticamente, até os anos 1990 a música brasileira era bem
dividida. Tinha a música brega e uma mais elaborada que entrava no
rol da MPB. Sobre a música brasileira de hoje em dia, acho que, do
ponto de vista da construção e da produção musical, ela está
ótima. Quem procurar vai encontrar compositores maravilhosos
elaborando canções com conteúdo e esteticamente bem feitas. Dá
para fazer uma listagem enorme de cantores e compositores e ninguém
conhece. Por exemplo: quem ouviu falar em Sérgio Santos? É um
compositor maravilhoso.
ZONA SUL
– Nos anos 1980 você, Antônio Ronaldo, Leão Neto, Edimar, Sueldo
e tantos outros criaram um movimento de grande repercussão na
cidade. Fale sobre o “Trampo”.
MANASSÉS
– O “Grupo Trampo” foi criado naquela época em que os artistas
trabalhavam de forma isolada, cada um construindo o seu lado. O
músico potiguar, a exemplo do músico brasileiro – principalmente
o compositor –, se sentia (e acho que hoje é pior ainda)
miniaturizado frente às estruturas engendradas pelo mercado. Não
havia uma motivação para ele produzir e divulgar sua música
autoral. O mercado não absorvia esse trabalho como deveria. Era
difícil até registrar essas canções, já que o formato que a
tecnologia da época permitia era muito caro. O único caminho que
encontramos foi nos juntarmos e Sueldo tocar a música dele e a
minha, eu tocar as minhas canções, as dele e as de Ronaldo, e
Ronaldo tocar as nossas e as de não sei quem lá. Tenho até hoje um
texto impresso, um compêndio de umas 50 páginas, onde tentamos
interpretar aquele momento.
ZONA SUL
– Quem é o autor desse texto?
MANASSÉS
– Antônio Ronaldo escreveu um bocado, eu escrevi outra parte, Leão
Neto corrigiu e deu muitas ideias, junto com Sueldo. Foi feito um
“brainstorm” grande para discutir a música brasileira e a
potiguar de antes, a daquele momento e a que poderia surgir depois. O
fato é que o “Grupo Trampo” gerou um “boom”. Fizemos um show
na Rua da Floresta, na Vila de Ponta Negra, que reuniu 1.300
pagantes. Depois dessa festa conversei com umas 30 pessoas do Ceará
que tinham ido assistir. O “Trampo” deu uma certa impulsionada na
música popular potiguar. Depois o movimento se esvaiu devido a
várias circunstâncias. Do jeito que começou, acabou. Não foi um
movimento planejado, como também sem planejamento nenhum acabou.
ZONA SUL
– Existe a possibilidade de o “Trampo” ressurgir?
MANASSÉS
– Vez por outra converso com Antônio Ronaldo e Sueldo e a gente
até comenta que poderia tentar reeditar. Mas o momento hoje é
diferente. O fato é que a partir do “Trampo” alguns discos foram
lançados. Eu lancei um, Leão Neto e Edimar Costa lançaram outros.
Até então, só Pedrinho Mendes tinha gravado dois discos. “Flor
de Cactus”, Nazareno e Terezinha de Jesus tinham produzido elepês,
mas fora da cidade. Demos nossa contribuição para o povo perceber
que a música local tem valor.
ZONA SUL
– Fale sobre esse seu primeiro disco.
MANASSÉS
– Lancei em 1989. Naquela época era difícil e caro fazer um
disco. O poeta e professor macauense Benito Barros, já falecido, foi
quem deu a ideia e me ajudou a buscar uma forma de viabilizar o
projeto. Angariamos recursos de um lado e do outro. Fui gravar no
estúdio “Estação do Som”, em Recife. O disco se chamou “Nós”
e foi lançado com quatro canções, duas de cada lado. Ele rendeu
bons frutos, do ponto de vista da divulgação e da ampliação do
trabalho musical que eu vinha fazendo. O LP me deu oportunidade de
uma entrada maior, consegui participar de vários projetos no
Nordeste: João Pessoa, Fortaleza, Maceió...
ZONA SUL
– Quando você gravou esse disco já tinha uma ocupação
profissional fora da música?
MANASSÉS
– Eu era estudante universitário e ainda tinha o sonho de
sobreviver da música, de trabalhar nessa área.
ZONA SUL
– Quando esse sonho virou pesadelo?
MANASSÉS
– Esse sonho não virou pesadelo nunca, mas migrou para o espaço
mais concreto da necessidade de sobrevivência. Vendo por um ângulo
poético, esse pesadelo perdura até hoje. Pesadelos se transformam
em sonhos que emocionam quando consigo construir uma nova canção.
Tem certas músicas que começo a tocar e não consigo terminar,
emocionado. Às vezes, chego ao final da canção meio cambaleante,
carregando aquela emoção forte. O artista da música popular é
dotado de conjugações, cores, imagens, verbos e sons para colorir a
vida e deixá-la mais prazerosa e emocionante. Ele busca transformar
em uma realidade bonita esse sonho que às vezes é pesadelo.
ZONA SUL
– Antes de lançar seu segundo disco, que outros caminhos você
buscou para poder sobreviver?
MANASSÉS
– Quando a pessoa não tem uma família que possa lhe dar uma vida
nababesca ou principesca, como aqueles clãs ricos e tradicionais do
Nordeste, ela normalmente tem que fazer alguma coisa na vida para
sobreviver. No Nordeste - em Brasília também é assim - se procura
muito o serviço público. Então decidi: se não conseguia me manter
como artista seria servidor público. Fui estudar para fazer concurso
público. Dessa forma ingressei no Judiciário e até hoje estou por
lá.
ZONA SUL
– Você se sente frustrado por isso?
MANASSÉS
– Não. Até porque continuei trabalhando com música. Mas, antes
de ingressar no serviço público, concluí a universidade. Quando
desisti de Letras, fiz reopção e entrei em Direito. Foi outra
faculdade frustrada. O Direito é muito voltado para o positivismo,
para a preservação do “status quo”, do que está estabelecido,
do ordenamento jurídico. Na época eu usava camisa com o poema de
Brecht, “O Analfabeto Político”. Sempre tinha uma opinião
diferente do que estava tradicionalmente posto. Então desisti do
Direito e me direcionei para o Jornalismo. Lá encontrei tudo o que é
vertente. Paralelo ao novo curso, comecei a estudar para concurso. Já
são 24 anos de serviço no Tribunal Regional do Trabalho, sem
abandonar a música. Nesse meio tempo, lancei meu segundo disco,
“Varal do Tempo”.
ZONA SUL
– Fale sobre esse CD.
MANASSÉS
– Pensei no disco como ele sendo um varal onde eu expusesse a minha
vida. Cada peça de roupa, cada camisa estendida seria uma canção.
No disco tem canção para mim, para o meu filho, para a minha
esposa, para a minha cidade, para os meus amigos, para aqueles que
militavam na música... Compus uma música para cada um desses temas
e joguei dentro do disco. Acho que saiu um disco bacana em estética
e conteúdo. A repercussão foi muito boa, tanto que,
surpreendentemente, uma das músicas foi gravada várias vezes por
outras artistas. “A Lua, o Amor e o Mar” foi regravada cinco ou
seis vezes. Até uma americana, chamada Kate Bentley, gravou e
escolheu o nome dessa canção para ser título do seu disco lançado
com canções brasileiras. A cantora carioca Claudia Amorim gravou
quatro músicas minhas em um disco.
ZONA SUL
– Como elas conheceram seu trabalho?
MANASSÉS
– Claudia Amorim ouviu o disco, gostou e entrou em contato. Kate
Bentley também. Kate é uma diplomata americana que cantava nos
Estados Unidos. Morou um tempo em Recife, mas hoje reside em Londres.
Fiz o lançamento do “Varal do Tempo” em Natal, Porto Alegre,
Brasília e Rio de Janeiro. Um jornalista do “Jornal do Brasil”
fez uma crítica interessante do CD e publicou na capa do caderno de
cultura de Niterói. Fiz um show no “Armazém da Música”, em
Niterói. Na plateia tinha um cara do Pará, em uma mesa com cinco
pessoas. Ele foi ao show para me conhecer. Não sei como, ele possuía
o meu elepê. Esse paraense comprou cinco CDs para presentear os
amigos. No Rio Grande do Sul, um cara já tinha o CD por lá. Se eu
fosse me dedicar exclusivamente à música, o resultado da divulgação
seria bem maior, já que é um disco bacana, bem tocado. Tem Arthur
Maia (baixista), Marcelo Martins (sax e flauta), Sérgio Farias,
Jubileu, as cantoras Khrystal, Lene Macedo e Valéria Oliveira,
Gilberto Cabral (trombone)... Ricardo deu uma contribuição grande!
Agora estou preparando o terceiro.
ZONA SUL
– Esse novo disco já tem nome?
MANASSÉS
– Deverá se chamar “Terra à Vista”. As músicas já estão
gravadas. Nele me mostro enquanto pessoa humana, artista da música e
me dou oportunidade para falar sobre o que eu descobri na vida. As
canções falam dos boqueirões que a vida me abriu e as
interpretações que eu dei a esses boqueirões que a vida me
proporcionou. Eu falo da natureza, do amor e de tudo o que acontece
na vida de uma pessoa. Está quase pronto. Talvez precise de um
detalhe aqui e outro ali. É quase o mesmo time que participou do
primeiro: Sérgio Farias, Jubileu, Erick Firmino, Dudu Taufic e Di
Stéffano. O CD tem linguagem de banda. Tem também Marcelo Martins
(sax e flautas). A intenção era ter lançado no ano passado. Como
esse prazo já foi para o espaço, vou ver se consigo lançar o disco
até outubro.
ZONA SUL
– Fale sobre sua mulher e seu filho, pessoas que compartilham mais
diretamente a vida com você.
MANASSÉS
– Um pescador vai para o mar na expectativa de buscar a melhor
pescaria para si e para a sua família. Um garimpeiro está sempre à
procura da melhor pedra preciosa, do melhor mineral. Um cavaleiro
escolhe dentre os melhores cavalos a montaria que ele acha ser a
ideal. Enfim, o ser humano sempre procura na vida o melhor. Na
verdade, o que eu tenho de mais precioso hoje eu não procurei.
Surgiu como se fosse um prêmio do qual eu talvez nem fosse
merecedor. Nem saí para o mar, como o pescador; nem fui ao garimpo,
como o garimpeiro; nem escrevi um bom livro, como escritor teria
feito. Surgiu para mim como se presente fosse. Talvez eu até
merecesse, mas não estava buscando. Baseado na minha formação
religiosa, diria que esse presente me foi dado por eu ter um bom
coração. Foi uma recompensa. Ana é uma pedra preciosa que já veio
para mim lapidada...
ZONA SUL
– ...E que você guarda como um tesouro...
MANASSÉS
– Não guardo como um tesouro. Ela é uma pessoa que me traz um
aprendizado constante. Aí é onde reside a maior riqueza pra mim.
Esse aprendizado me projeta como ser humano. Quando a conheci, ela me
deu a possibilidade de me sentir realizado como ser humano. Depois,
com o nosso filho, Eduardo (Dudu), surgiu um pulso de humanidade que
– nessa vida conturbada de hoje - ao mesmo tempo me enriquece e me
ensina que eu tenho que estar em uma constante desaceleração da
ansiedade do dia-a-dia. Quanto menos ansioso estiver, mais em paz
estarei com a família. Com eles dois, consigo ser mais humano, mais
pai, mais amigo, mais filho, mais indivíduo. A cada dia eles me
ensinam a viver melhor.
ZONA SUL
– Deixe um recado para o leitor do Zona Sul.
MANASSÉS
– Primeiro eu gostaria de sugerir ao povo potiguar que preste mais
atenção nos seus artistas. Natal tem uma possibilidade musical
riquíssima, tem compositores belíssimos como Antônio Ronaldo,
Babal, Cleudo, Luiz Gadelha, Sueldo Soaress, Pedro Mendes e tantos
outros. Na música instrumental, também. Tem músicos de qualidade
internacional, como Eduardo Taufic, Jubileu, Sérgio Farias, Sérgio
Groove e Ricardo Menezes. Infelizmente os veículos de comunicação
de massa no Brasil têm prestado um grande desserviço. Desde a Rede
Globo até os outros, eles ideologizaram a música nacional colocando
a cultura de massa em detrimento das raízes culturais do nosso povo.
O que me interessa, aqui no Brasil, conhecer o funk dos Estados
Unidos - ou outros ritmos estrangeiros - enquanto não tenho a
possibilidade de ouvir e ver na TV o samba, o baião, a marcha-rancho
e tantos outras manifestações culturais nacionais? Hoje as pessoas
vivem sob a égide da TV e do rádio. O que é veiculado as pessoas
absorvem, muitas vezes sem nenhum senso crítico, de goela abaixo.
ZONA SUL
– Como as pessoas podem ter acesso ao seu trabalho?
MANASSÉS
– Acho que o CD “Varal do Tempo” ainda pode ser encontrado na
Cooperativa da Universidade e em algumas livrarias de Natal. Quem não
mora em Natal pode mandar um email para manassescampos@gmail.com.
Estou no Facebook com o meu nome: Manassés Campos. Para finalizar,
eu gostaria de deixar registrado que as entrevistas que o “Zona
Sul” está fazendo são importantes porque perpetuam as histórias
que são contadas. Como todo esse material está disponível na
Internet, as futuras gerações que porventura possam se interessar
por esses temas terão um repertório vasto para a pesquisa. Eles
poderão saber que existiram pessoas construindo histórias,
fomentando novas estéticas, compondo música e fazer artístico e
sabendo que a humanidade caminha no sentido da sua evolução.
Diferente da sociedade de hoje, buscamos um futuro onde o homem viva
em benefício do próprio homem.
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