Os
70 anos do poeta “maldito” da imagem
Foi Falves Silva quem
viabilizou a primeira entrevista dessa série de trabalhos que faço
com a ajuda de amigos para o “Zona Sul”. Ele foi quem conduziu a
sua companheira, Terezinha de Jesus, para a conversa realizada na I
Bienal do Livro de Natal, em 2003, no Centro de Convenções. Dez
anos passaram até que surgisse a oportunidade de eu satisfazer o
sonho profissional de entrevistá-lo também. Como as melhores coisas
da vida, a ocasião veio por acaso. Melhor não sairia se fosse
combinado previamente. Estávamos todos no Sebo Vermelho, de Abimael
Silva. Saímos direto para o bar “Point da Princesa”, na Princesa
Isabel, centro de Natal. Graças às intervenções do próprio
Abimael, do músico Paula Neto; da blogueira
(http://escritosdealicen.blogspot.com.br/),
escritora e professora Cellina Muniz; e do meu parceiro e amigo para
todas as horas, o jornalista Roberto Fontes, acredito que essa
entrevista poderá servir como presente para o septuagenário Falves
Silva. Que Natal também possa oferecer uma homenagem digna ao nosso
maior poeta visual. Todas as mais de 100 entrevistas que fiz para o
“Zona Sul” estão disponíveis, na íntegra, no site
http://zonasulnatal.blogspot.com.br/.
(robertohomem@gmail.com)
ZONA SUL
– Como é o seu nome verdadeiro?
FALVES –
Meu nome verdadeiro é Falves Silva. O mentiroso é Francisco Alves
da Silva. (risos)
ZONA SUL
– Você não manteve o Francisco Alves para não ofuscar o cantor
homônimo, Francisco Alves, considerado “o rei da voz”?
FALVES –
Para falar a verdade, a história foi outra. O Falves surgiu depois
que eu fiz um curso de desenho por correspondência, em 1964. Um dos
ensinamentos do curso era o fato de o artista - da mesma forma que o
jornalista, o cientista e o escritor – poder mudar ou criar seu
próprio nome. Pensei em escolher Chico da Silva, mas já havia um
pintor do Acre, descendente de cearense, que havia ficado famoso com
esse nome. Resolvi, então, colocar Falves Silva. Inicialmente
confundiram um pouco. Talvez devido ao movimento de pintura
“fauvista”, chegaram a escrever meu nome como Fauves, com “u”.
Com o tempo, corrigiram. Resolvi mudar o nome porque, desde criança,
sempre pretendi ser artista.
ZONA SUL
– Vamos retroceder um pouco na sua história. Onde você nasceu?
FALVES –
Em Cacimba de Dentro, uma cidade pequena da Paraíba. Só fiz nascer
lá. Minha mãe e meu pai eram itinerantes. Logo cedo fomos para
Japi, terra da minha mãe. Depois mudamos para Nova Cruz. Aos cinco,
fui morar em Santa Rita. Fiquei lá até os dez anos. Em 1953 meus
pais se separaram e eu mudei para Natal com a minha mãe.
ZONA SUL
– Seus pais faziam o que da vida?
FALVES –
Meu pai era carpinteiro e a minha mãe cuidava da casa. Meu pai é de
uma família de Rio Tinto, na Paraíba. Ele era muito violento: batia
na minha mãe e em mim também. Minha mãe teve vários filhos, mas
só escapamos eu e um irmão. Naquela época, a mortalidade infantil
era grande: quando sobrevivia um filho, escapava fedendo (risos). Vim
para Natal e foi aqui onde aprendi a discernir a vida.
ZONA SUL
– De onde são as suas primeiras recordações? Da Paraíba?
FALVES –
Algumas são de lá, mas outras tantas são daqui também. De lá
recordo o fato de eu ter começado a desenhar desde menino. Antes de
completar cinco anos, eu já desenhava. Certa ocasião, desenhei as
partes genitais de uma mulher, por cima de um desenho de um vestido
publicado por uma revista de moda. Esse desenho foi uma coisa rude.
Quando meu pai viu, me deu um grande esculacho. Chorei que só a
porra! Provavelmente por conta disso, depois que aprendi a desenhar o
corpo da mulher, era como se eu estivesse fazendo uma coisa contra o
meu pai.
ZONA SUL
– Menino, morando no interior, como você conseguia material para
desenhar?
FALVES –
Nesse início, eu desenhava com lápis. Tenho uma fixação pela
imagem. Menino curioso, sempre gostei de fotografia, desenho e de ler
histórias em quadrinhos. Naquela época eu já dizia que quando
crescesse ia mexer com desenho. Acho bonito no objeto da arte quando
ele é reproduzido. Do original, nem gosto tanto. Gosto de vê-lo
reproduzido... Tem outro brilho.
ZONA SUL
– Você valoriza mais a reprodução que retrata fielmente o
original ou aquela que acrescenta algo?
FALVES –
Depende. Gosto das ampliações e das reduções. Estou com a ideia
de fazer uma exposição com trabalhos bem ampliados. Mas, hoje em
dia, devido aos custos, fica difícil trabalhar com ampliação.
ZONA SUL
– Quando você veio para Natal com sua mãe e o seu irmão, vieram
morar onde?
FALVES –
Fomos morar com minhas tias em um local que antigamente era conhecido
como “Alto do Juruá”, em Petrópolis. A viagem para Natal foi de
trem. Tinha uma linha que vinha de Recife e fazia uma parada em João
Pessoa. Foi uma viagem longa, chovia pra cacete. Quando cheguei,
estava chovendo muito. Após o desembarque, quando estava subindo a
ladeira da Junqueira Aires, vi aquele relógio do SESC batendo nove
horas da noite. Depois de três meses, foi preciso eu começar a
trabalhar. Eu tinha 10 anos e pouco quando a família começou a
reclamar: “esse menino tem que trabalhar”, e tal... Eu era o
filho mais velho. Meu irmão é mais novo do que eu seis anos.
ZONA SUL
– Arrumaram o que para você?
FALVES –
Fui trabalhar n’“A República”, como distribuidor de jornal.
Depois de algum tempo, saí de lá para o “Diário de Natal”,
nessa mesma proposta de distribuir jornais, só que em bairros
diferentes. Fiquei conhecendo a cidade toda. Naquele tempo Natal
devia ter uns 90 mil habitantes, no máximo 100 mil. Era uma cidade
pequena. Como tinha amigos que gostavam de cinema, começamos a
assistir filmes assiduamente, quase todos os dias. Passei a me reunir
com esse grupo de amigos na Juventude Operária Católica (JOC), uma
organização da Igreja Católica. Aprendi muita coisa por lá. Por
volta de 1960, o padre Barbosa, da Igreja Santa Terezinha – que
sempre gostou de cinema – convidou a gente para participar de umas
reuniões. Desses encontros surgiu o “Cineclube Tirol”, em 1961.
Lá se reuniram os caras mais importantes da cidade, ainda até hoje:
Moacy Cirne, Anchieta Fernandes, Nei Leandro de Castro, Juliano
Siqueira, Marcos Silva, Dailor Varela, Fernando Pimenta, João
Xavier, Antonio e Franklin Capistrano, Bené Chaves, Francisco
Sobreira... O Cineclube foi um verdadeiro foco de novos intelectuais,
artistas, críticos de cinema, poetas, romancistas, artistas visuais
e políticos. Fizemos três filmes no Cineclube. Filmezinhos curtos,
preto e branco, de oito milímetros. Naquele tempo não tinha a
tecnologia de hoje. O resultado foi bem interessante, para a época.
ZONA SUL
– Como eram esses filmes?
FALVES –
Um foi baseado em um texto de Nei Leandro de Castro, “Romance da
Cidade do Natal”, dirigido por Moacy Cirne. Outro teve o Forte dos
Reis Magos como tema. Foi dirigido por Gilberto Stabili, Franklin
Capistrano e Francisco Sobreira. O terceiro, dirigido por mim e
Alderico Leandro, foi uma adaptação livre de um conto de Willian
Soroyan: “O Ousado Rapaz do Trapézio Suspenso”. Fiz esse filme
porque sempre gostei da literatura americana, e pelo fato de o
contista Willian Soroyan ter me impressionado. Também porque me
identifiquei com o personagem. No fundo eu achava que era o ousado
rapaz do trapézio suspenso. O filme ficou legal, mas perdemos todas
as películas. Não existe mais nada desses filmes. A película é
muito perecível, especialmente aquela antiga.
ZONA SUL
– Depois do emprego como entregador de jornais, que rumo a sua vida
tomou?
FALVES –
É bom dizer que, mesmo trabalhando nessa função, eu estudava no
Colégio Alberto Torres. Meu único diploma acadêmico é o ginásio.
Como sempre gostei de cinema, de arte e de ler, a leitura me orientou
melhor para a vida. Junto com o JOC - que exigia um pouco de leitura
- e trocando conversas, terminávamos entrosando os conhecimentos.
Porém, eu precisava trabalhar. Depois de passar por “A República”
e o “Diário”, fui trabalhar como ajudante de sacristão, na
Catedral.
ZONA SUL
– Existe essa profissão?
FALVES –
Não tem ajudante de pistoleiro? Por que não teria ajudante de
sacristão? Interessante é que a minha mãe sempre foi protestante,
mas eu me desviei e fui para o catolicismo.
ZONA SUL
– É raro um artista assumir que tem uma religião.
FALVES –
Não sou frequentador assíduo, mas lá dentro sinto que a coisa da
religiosidade, da Igreja Católica, tem muita força sobre mim.
ZONA SUL
– Você seria um “católico do IBGE”?
FALVES –
Acho que sim. Sou aquele católico que aparece na estatística, mas
pouco comparece às missas. Depois da experiência com o padre, fiz
de tudo. Até vendi cocada e laranja na praia, pra escapar. Em 1976
fui a trabalhar na Tipografia Galhardo, que era embaixo da “Boate
Arpége”. Comecei varrendo e ajudando na limpeza. Depois, aprendi a
profissão de gráfico. Nesse trabalho, me especializei em cortar
papel. Sempre gostei de papel, de sua parte física. Esse primeiro
emprego de carteira assinada data de 1957. Trabalhei lá até 1964.
De lá fui para a Livraria Ismael Pereira, tomar conta do depósito,
de todo almoxarifado que chegava. Por isso é que me arrisco a dizer
que fui o primeiro cara a ler “Ulysses”, de Joyce, em Natal.
Quando veio a primeira remessa, quando abriu a caixa, eu já comprei
um exemplar. Parte do dinheiro que eu ganhava trabalhando ficava lá
mesmo, porque eu sempre comprava muito livro. Depois de Valter
Pereira, onde fiquei durante cinco anos, passei um período de
bobeira, naquela coisa de porra louca.
ZONA SUL
– Você tentou sobreviver da arte?
FALVES –
Nunca sobrevivi de arte, antes pelo contrário. Do pouco salário que
recebia, gastava comprando material, tirando cópias e enviando meus
trabalhos pelo correio. Nunca ganhei dinheiro com arte, salvo –
evidentemente - aqui e acolá, quando fazia uma exposição ou
acontecia algo diferente e eu vendia um ou dois trabalhos. Mas isso
não é suficiente para sobreviver. Por ter consciência disso, nunca
me arrisquei. Aliás, até me arrisquei nesse período entre 1968 e
1971, mas não deu certo.
ZONA SUL
– Como foi essa experiência?
FALVES –
Horrível! Eu morava em Mãe Luiza com o meu irmão, Natanael
Virgínio, que era jornalista da “Tribuna do Norte”. Ele
trabalhou lá durante 21 anos, depois foi para o “Diário”. Vivi
esse período na porra-louquice de só ficar curtindo, tomando birita
e tirando onda. Passei dois anos sem trabalhar. Nessa época conheci
todo tipo de droga. Tinha uma lenda, na cidade, dizendo que a fumaça
da maconha fazia o usuário adormecer para os ladrões roubarem.
(risos).
ZONA SUL
– A droga ajuda o artista a produzir mais?
FALVES –
Depende muito. Eu não gosto de fazer nada drogado, nem com bebida.
Não gosto de cocaína, nem de pico, a cerveja é a minha droga
predileta. A mim a droga não estimula. Só trabalho sem o efeito da
droga. Sou um cara totalmente metódico. Todo meu trabalho é feito
com linhas, precisão matemática e tal.
ZONA SUL
– Mas você estava contando sobre seu período de porra-louquice...
FALVES –
Fiquei nessa vida até que Pedro Vicente, sabendo que eu estava
desempregado, me arranjou um trabalho na Tipografia Relâmpago, na
Ribeira. Fiquei lá durante 15 anos. Me tornei chefe de oficina e
editei meus primeiros livros lá. Tipograficamente, ainda sem a
tecnologia do offset. Eu aproveitava a sobra de papel. Antigamente,
quando se comprava uma resma de papel, sempre vinha uma folha de
suporte em cima e outra embaixo. Resolvi aproveitar essa sobra para
fazer um livro meu. Não tinha custo para a empresa. Consegui
produzir um livro “fodidamente” bonito, “Elementos da
Semiótica”, em 1982.
ZONA SUL
– Quando foi sua primeira exposição?
FALVES –
Foi em 1966, na Galeria de Artes da Praça André de Albuquerque,
durante a administração do prefeito Agnelo Alves. Minha exposição
foi a primeira ação da proposta cultural dele de fazer a arte
natalense crescer. O problema é que depois ele foi cassado e a coisa
não andou. Essa minha exposição estava prevista para permanecer um
mês, mas durou apenas uma semana. Só soube há pouco tempo que essa
exposição talvez tenha sido censurada por conta da igreja que tinha
em frente. Até então eu pensava que tinha sido censura da política.
ZONA SUL
– O que você expôs que poderia ser censurado?
FALVES –
Tudo! (risos). Ou seja, nada! (mais risos). Tinha uns nus, mas eram
nus bem feitos, sem escancaramento.
ZONA SUL
– Quer dizer que era uma exposição erótica, apoiada pelo
prefeito.
FALVES –
Exatamente, recebi apoio oficial da Prefeitura de Natal. Quem me
apresentou artisticamente à cidade foi Nei Leandro de Castro.
Naquele tempo não tinha televisão. Dei entrevista na “Rádio
Cabugi”. Dailor Varela fez o texto do catálogo. Era um catálogo
simples, naquele tempo era comum fazer coisas simples. Não tinha
offset, nem porra nenhuma. No ano seguinte à proibição dessa
exposição, eu, Dailor Varela, Marcos Silva, Alexis Gurgel e mais
dois amigos resolvemos fazer uma exposição em um cabaré, só para
tirar onda. Como na praça foi proibido, resolvemos fazer a exposição
no “Francesinha”, que era um local de dança onde você marcava e
pegava o itinerário. Essa exposição foi um terror, a sociedade
toda de Natal foi. Até Luiz Maria Alves, que mandava no “Diário
de Natal”, foi. A divulgação foi só em jornal e rádio. Dailor
trabalhava na “Tribuna do Norte” e Alexis no “Diário de
Natal”.
ZONA SUL
– Qual a reação das pessoas ao chegar no “Francesinha”?
FALVES –
Gostaram muito. Passados quarenta e tantos anos, ainda encontro gente
comentando: “você é aquele cara da exposição”. Aí eu
pergunto qual exposição, mas já sabendo que ele vai responder que
é a do “Francesinha”. Há dois anos encontrei um que me fez essa
pergunta.
ZONA SUL
– Você foi um grande consumidor de revistas eróticas? Onde
comprava?
FALVES -
Sempre gostei de comprar livros e revistas. Tenho fixação por
fotos, imagens. Eu comprava no Sebo de Cazuza, que funcionava na Rua
Ulysses Caldas, em frente ao Camelódromo. Eu comprava muito livro e
aquelas revistas proibidas de nudismo. Na ótica de hoje, eram
publicações pudicas. Cazuza camuflava, escondia as revistas por
baixo das outras. Quem comprava, já sabia onde procurar. Frequentei
outros sebos e livrarias, como a Livraria Universitária, que de 1965
até setenta e pouco foi importante ponto de encontro da cidade.
ZONA SUL
– Nessas exposições você vendeu muito?
FALVES –
Não, só ganhei mixaria com elas. A exposição na qual ganhei mais
dinheiro foi a do último “Encontro de Escritores de Natal”,
quando roubaram uns trabalhos meus e eu fui indenizado.
ZONA SUL
- Seus trabalhos foram expostos e sua obra divulgada em vários
países da Europa e das Américas. Você tem memória dessas coisas?
FALVES –
Tenho todo esse material arquivado em casa: catálogos, livros,
documentações, revistas... O ponto mais alto que cheguei como
artista foi ter um trabalho meu publicado na revista “Art in
América”, que é editada nos Estados Unidos. É a revista de arte
mais importante. Um crítico da revista escreveu sobre a exposição
organizada por uma poetisa brasileira que mora em Austin, no Texas,
Regina Vater. Essa exposição, em 2002, contou com 57 poetas
brasileiros ligados à visualidade, poetas semióticos. Entre esses
poetas estão Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Humberto de
Campos, Caetano Veloso e sete do Rio Grande do Norte. Tudo isso por
conta daquele movimento que nós criamos, o “poema/processo”, de
1967.
ZONA SUL
– Em quais circunstâncias o “poema/processo” foi criado em
Natal?
FALVES –
A coisa começou com Moacy Cirne, que também pertencia ao “Cineclube
Tirol”. Ele viajou, em 1965, ao Rio e voltou com uma série de
novidades, entre elas um exemplar da revista “Invenção”,
publicação literária criada pelos poetas concretos. Apesar de
consolidado no Brasil, o movimento da poesia concreta, criado nos
anos 1950, ainda era visto com reticências... Anos depois, um dos
fundadores da poesia concreta, o poeta Wlademir Dias-Pino, criou uma
dissidência. Ele resolveu se separar do pessoal por questões que
nunca contou. Wlademir criou um método, um manifesto, com seus
poemas espaciais contidos nos livros “Ave” e “Solida”. Com
Moacy no Rio, a coisa foi se amplificando. Moacy, Dias-Pino, Alvaro
de Sá e Neide de Sá criaram um intercâmbio. Com Moacy sempre
voltando a Natal e trazendo as novidades, resolvemos lançar o
movimento poema/processo simultaneamente em Natal e no Rio de
Janeiro, em dezembro de 1967. A tendência era a de substituir a
palavra e dar mais ênfase à imagem. Combinava perfeitamente com a
nossa geração, toda ela fanática por cinema.
ZONA SUL
– Como o poema/processo extrapolou o eixo Rio-Natal?
FALVES –
A partir de exposições que fizemos em outras capitais,
especialmente do Nordeste. O pessoal da poesia concreta se
concentrava no centro (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e
no exterior. Resolvemos investir no Nordeste. Realizamos exposições
em João Pessoa, Fortaleza, Recife... Outras pessoas foram se
engajando, como José Nêumane Pinto, que fez poema/processo quando
morava em Campina Grande. Walter Carvalho, aquele cineasta e
fotógrafo paraibano, também fez. O maestro pernambucano Marcus
Vinicius de Andrade, que é uma figura genial, foi outro que mexeu
com poema/processo. Dessa forma o poema/processo, aos poucos, foi se
espalhando.
ZONA SUL
– Como o movimento chegou ao exterior?
FALVES -
Em 1969 fomos convidados para participar da “Exposição
Internacional de Novíssima Poesia”, no “Instituto Torcuato di
Tella”, em Buenos Aires. Como não tínhamos condições
financeiras de ir, mandamos os poemas. Nossos trabalhos fizeram
grande sucesso. Coincidiu que estava passando por lá o poeta francês
Julien Blaine. Ele viu, documentou boa parte dessa exposição e
publicou em uma revista cultural francesa. Assim o poema/processo
tomou um rumo mais internacional. O poema/processo sempre foi de
encontro ao livro tradicional. A gente sempre preferiu produzir
páginas soltas, e enviar para centros culturais e artísticos dentro
de envelopes. Dessa forma a ideia foi se espalhando. Nesse período
também começaram a surgir publicações alternativas. A xerox
estava surgindo, de forma embrionária, para substituir o mimeógrafo.
A gente foi se adaptando às novas tecnologias e fazendo publicações
as mais variadas possíveis. As tiragens eram pequenas, de 100
cópias. Mas elas eram enviadas para pessoas estrategicamente
selecionadas, até para fora do Brasil. A gente também recebia
experiências análogas às que estava fazendo, relacionadas com a
semiótica.
ZONA SUL
– Como os irmãos Campos, Décio Pignatari e o restante da turma da
poesia concreta recebeu o poema/processo?
FALVES –
Eles não gostaram muito e não gostam até hoje, por conta dessa
briga com Dias-Pino. Trataram como uma dissidência, sem alimentar
muita conversa. Soube recentemente que, depois da morte de Haroldo de
Campos, Augusto de Campos tentou entrar em contato com Wlademir
Dias-Pino, mas ele recusou. Deve ter sido uma coisa muito chocante
para Wlademir até hoje agir dessa forma. Tenho uma afinidade muito
grande com ele, que também foi gráfico. Os trabalhos de Wlademir
são perfeitos. Cada página é uma surpresa que você tem. ZONA
SUL – O poema/processo conseguiu criar um público, uma
legião de fãs ou seguidores em Natal?
FALVES –
Seguidores, com certeza. Duas dezenas, ou talvez mais. Posso até
citar o nome de pessoas que, direta ou indiretamente, sofreram
influência do poema-processo: Alderico Leandro, Alexis Gurgel,
Bianor Paulino, Franklin Capistrano, Enoque Domingos, Venâncio
Pinheiro, Racine Santos, Iaperi Araújo, Bené Chaves... Nei Leandro
fez poema processo durante cinco anos. Resolvemos fazer uma parada
tática em 1972, para avaliação. Cada artista continuou fazendo
suas experimentações da maneira que quis.
ZONA SUL
– Você, por exemplo, foi fazer o que?
FALVES –
Continuei pesquisando na área da visualidade, sempre desenhando
muito. Arrisco-me a dizer que sou um bom desenhista. Gosto do preto e
branco, mas fiz experiências com várias técnicas. Tentei pintar,
no início, mas devido a um problema de intoxicação, perdi o
interesse. Gosto mesmo é de desenho ou de trabalhar com colagens e
montagens...
ZONA SUL
– O erotismo é o tema principal da sua obra?
FALVES –
Não. Sou mais conhecido pela parte ótica, pelo trabalho com cores e
tal. Esse é o meu carro-chefe, mas trabalho em várias vertentes.
ZONA SUL
– Vamos falar sobre os seus trabalhos.
FALVES –
A ideia do primeiro, “Elementos da Semiótica”, é que livros não
são feitos necessariamente com palavras, mas sim com ideias. É uma
mistura - no sentido contrário - do que dizia Mallarmé (que um
livro se faz com palavras, e não com ideias), com correspondências
que troquei com Wlademir Dias-Pino. Meu livro trata das coisas da
semiótica.
ZONA SUL
– A ditadura militar o perseguiu de alguma maneira?
FALVES –
Não. Quando o poema/processo surgiu, em 1967, a palavra ainda era
fundamental. Hoje, não. A televisão está aí para provar que a
imagem tem muito mais força do que a palavra. O regime militar não
compreendia o nosso trabalho, não conseguia detectar o efeito
simbólico e satírico dele. Por isso, nunca houve perseguição do
ponto de vista político. A gente sempre agiu de maneira sorrateira
perante a ditadura. Não só nós, do Rio Grande do Norte, mas os
nossos colegas da Paraíba, do Rio de Janeiro, todo mundo agia assim.
Na primeira exposição, no Rio, tinha um cartaz: “Abaixo a
ditadura da palavra”. Da palavra, do verbo, e na política. Tinha
um significado de duplo sentido. Defendia o fim da ditadura, em si, e
a extinção da ditadura da palavra. A acadêmica, especialmente.
ZONA SUL
– Amante das letras, você nunca pensou em seguir uma carreira
dentro da academia, até mesmo para aperfeiçoar e embasar melhor o
seu trabalho? Em outras palavras: por que você preferiu o
autodidatismo?
FALVES –
Nunca pensei em seguir uma carreira acadêmica porque me sinto mais à
vontade estudando por conta própria. Óbvio que a questão econômica
facilitou essa minha decisão. Nunca tive nada contra a academia,
antes pelo contrário.
ZONA SUL
– Então vamos voltar a falar sobre suas publicações. Depois de
“Elementos da Semiótica”, o que veio?
FALVES –
Publiquei o segundo, “Erótica”, pela Fundação José Augusto,
em 1975. Mais uma vez sofri com a censura. Tarcísio Gurgel, que
trabalhava na gráfica da Fundação, foi quem me convidou para
preparar esse trabalho. O objetivo era lançar em dezembro, no final
do ano, quando as pessoas gastavam um pouquinho com arte. A
publicação são onze gravuras de nus, impressas. Não sei por que
cargas d’água, Sanderson Negreiros, que era presidente da
Fundação, vetou a saída do livro, depois de tudo impresso. Depois
de tomar conhecimento dessa censura, falei com Chico Alves - que era
chefe da gráfica – e pedi para levar algumas cópias do livro. Ele
autorizou. Peguei esse material e enviei para várias partes do
mundo: Espanha, França, Bélgica, Estados Unidos... E também para
vários jornais alternativos brasileiros, que viviam um “boom”.
Resultado: o trabalho proibido aqui foi publicado em todos os jornais
para onde mandei. Tenho tudo isso em casa, não é lorota. Cinco anos
depois, quando Cláudio Emerenciano assumiu a presidência da
Fundação, o livro foi liberado. Mas ficou só aquela coisa
simbólica, pois o trabalho já tinha se espalhado pelo mundo.
ZONA SUL
– Mais algum caso de censura?
FALVES –
Sim, nos anos 1970. Eu tinha exposição agendada na galeria da
“Biblioteca Câmara Cascudo”, que era dirigida por Zila Mamede.
Antes de chegar na data, Diógenes da Cunha Lima assumiu a
presidência da Fundação e cancelou a exposição. A censura se deu
ainda em virtude da minha primeira exposição e do “Francesinha”.
Dei entrevista a Djair Dantas, marido de Diva Cunha, no Diário de
Natal. Ele avisou a Diógenes. No outro dia foram Zila Mamede e
Mirabô Dantas pedir para eu reconsiderar, para retirar o que tinha
dito ao jornal. Não aceitei. No final, concordei em retirar uns
trabalhos que fiz com John Lennon e Yoko Ono nus e Jimi Hendrix com
um baseado, além de outros dois, para a exposição ser viabilizada.
Depois, nós fizemos as pazes: eu e a instituição Diógenes da
Cunha Lima. Porque ele não é uma apenas uma pessoa, é uma
instituição.
ZONA SUL
– Depois desse, qual o livro seguinte?
FALVES –
“Intersigno”, que tem uma apresentação de Dácio Galvão. É um
trabalho de folhas soltas, para ser enviado. Em seguida, continuei
fazendo experimentações, como livros de carimbo e, em 1978,
realizei a exposição de arte correio “Olho Mágico”, na
Cooperativa dos Jornalistas, em Natal. Mandei convite para vários
artistas. Os cartões que eu enviei tinham só um círculo desenhado
no meio, para o cara trabalhar da maneira que quisesse. Houve uma
devolução grande e eu fiz essa exposição. Essa exposição foi
feita em Recife (1979), João Pessoa (1980) e repetida em Natal
(1982).
ZONA SUL
– Quem mais mexeu com “Mail Art” em Natal?
FALVES –
Fui o primeiro a mexer com isso, a convite de Clemente Padin, com
quem eu me correspondia desde o início do poema processo. Ele me
chamou, em 1974, para participar de uma exposição no Uruguai. Bosco
Lopes tinha editado seu livro há um ano e pouco, e tinham sobrado
algumas imagens. Fiz alguns cartões dele e os meus e mandamos. Essa
foi a primeira exposição internacional de arte correio que teve a
participação de artistas do Rio Grande do Norte. O meu poema
relacionado a isso foi “Sorria”. Alexis Gurgel trabalhava no
“Diário de Natal” e fez uma matéria de uma página. “Falves
Silva: o operário comum, o artista maldito”. Por causa desse
título, até hoje sou conhecido como artista maldito. (risos).
ZONA SUL
– Quem influenciou você?
FALVES –
Na literatura, Edgar Alan Poe, Dostoievski, Kafka e, sobretudo, James
Joyce, em quem me espelho bastante. Também leio muito Umberto Eco.
Filosoficamente, prefiro a semiótica de Charles Peirce e
Giambattista Vico. Nas artes gráficas: Vladimir Dias-Pino, Décio
Pignatari e os demais poetas que fazem referência à arte visual. No
cinema sou entusiasta de Godard, Hitchcock, Fritz Lang, Nicholas Ray,
Buñuel, Fellini e todo esse pessoal.
ZONA SUL
– Na literatura você não recebeu influência de nenhum
brasileiro?
FALVES –
Guimarães Rosa. E no cinema, Glauber Rocha. Gosto também de Anselmo
Duarte, especialmente de “O pagador de promessas”, apesar de os
intelectuais considerarem meio careta a sua maneira de fazer cinema.
O padrão dele é o americano, o de Glauber é o europeu. São dois
cinemas diferentes.
ZONA SUL
– Você se define como poeta, artista plástico ou como o que?
FALVES –
Esse negócio de rótulo é meio complicado, mas sou um artista
multifacetário. Gosto de experimentar linguagens, novas
probabilidades dentro da visualidade. Acho que o artista tem que
experimentar sempre.
ZONA SUL
– Ao completar 70 anos, qual seria a homenagem que você gostaria
de receber de Natal, a cidade que você escolheu para viver?
FALVES –
Pelo menos que eu pudesse fazer uma exposição digna de quem está
completando 70 anos. Um artista que vem trabalhando durante meio
século tem que pelo menos tentar reverter essa coisa de que o santo
de casa não faz milagre. Quero apresentar coisas inéditas e também
fazer uma retrospectiva. Estou fazendo livros únicos de toda a minha
trajetória. Já tenho 40 volumes prontos, um exemplar de cada. Se eu
lançar esse material, o livro que cada pessoa comprar será único.
Esse livro será como um objeto de arte. Como se fosse uma tela. ZONA
SUL – Fale sobre suas mais recentes exposições.
FALVES –
Fiz uma em Fortaleza, no lançamento da revista “Pindaíba”. A
revista tem uma entrevista de Celinna Muniz comigo. A “Capitania
das Artes” lançou uma edição especial da revista “Brouhaha”
quando o poema/processo completou 40 anos. No ano passado fiz uma
exposição no Beco da Lama, quando completei 69. Fiz de deboche, só
pra curtir.
ZONA SUL
– É melhor comemorar o 69 ou 70?
FALVES –
Agora reiou-se! Particularmente, prefiro o 69. Mas acontece que a
vida continua... (risos). Esqueci-me de contar que na década de 1980
criamos aqui em Natal (eu, Anchieta Fernandes e Franklin Capistrano)
um jornal chamado “À Margem”. Nossa proposta, o próprio título
do jornal já diz, era divulgar artistas que estavam à margem do
sistema literário linear ou tradicional. A intenção era publicar
abertamente, sem censura. O que o cara mandava, era publicado sem
interferência editorial, mas a responsabilidade era dele. Editamos
esse jornal de 1986 até 2001. Era distribuído gratuitamente. Saíram
uns 35 números. A tiragem era de 500 cópias. Arte é uma maldição,
não é todo mundo que gosta dela. A primeira tiragem de Ulysses, de
Joyce, lá em Paris, em 1922, foi de mil cópias. Um ano depois ele
voltou para saber como andavam as vendas e soube que apenas cento e
poucos haviam sido comprados. Ou seja, só os intelectuais de Paris
compraram o livro dele: Henry Miller, Hemingway, Scott Fitzgerald,
Ezra Pound... A gente tirava 500 para mandar para as instituições e
os amigos.
ZONA SUL
– Você teve algum sonho que não conseguiu realizar no ramo da
arte?
FALVES –
Um sonho que tenho desde pequeno é o de ver meu trabalho publicado
em livros didáticos. De certa maneira, eu consegui. Em Natal saiu
uma edição do livro “Introdução da Cultura
Norte-Rio-Grandense”, com 33 mil cópias, contendo uma boa
referência e reprodução de alguns dos meus trabalhos. Em São
Paulo, a “Editora Global” publicou, há uns dois anos, um
trabalho meu para o ensino fundamental. O livro continha trabalho de
oito poetas, dentre eles, o meu. Tenho trabalhos publicados em vários
outros livros. Na Espanha, tem um de Álvaro de Sá: “A Poética de
Vanguarda do Brasil”. Ele era crítico e grande poeta. Morreu há
pouco tempo. Esteve em Natal com sua esposa, que também é poeta.
Veio conhecer e dialogar comigo, Jota Medeiros e Anchieta Fernandes.
ZONA SUL
– Geralmente a arte e a boêmia andam juntas. Essa afirmação é
verdadeira no seu caso?
FALVES –
Sempre fui meio boêmio. Não tive regras na minha juventude, pois
fui meu próprio pai, já que não tive um por perto e a minha mãe
era mais fácil de controlar.
ZONA SUL
– Depois que veio morar em Natal você chegou a reencontrar seu
pai?
FALVES –
Ele esteve aqui uma única vez. Eu também estive em João Pessoa.
Tirei umas férias e fui lá. Logo que cheguei a João Pessoa,
comecei a tomar umas cervejas. Saí do bar e vi que estava passando o
filme “A Doce Vida”, que eu já tinha visto em Natal. Entrei no
cinema muito bêbado. Depois de algum tempo, fui ao banheiro. Vomitei
e adormeci por lá. Mandaram chamar a polícia. Foi a única vez que
fui preso. Depois de um banho me botaram em uma cela. Ainda bem que
não havia outro preso, senão os caras tinham me comido e eu nem ia
saber. No dia seguinte meu pai foi me buscar. Eu com uma vergonha
danada. Nessa viagem foi a última vez que o vi.
ZONA SUL
– Que recomendação ou orientação você daria a alguém que está
tentando enveredar no campo da arte?
FALVES –
A persistência é que faz o artista. Durante todo esse percurso
conheci muita gente que se dizia artista, mas desistia. O artista é
aquele que persiste, que continua fazendo. Fui a uma excursão no
Recife e ouvi aquele famoso escultor, Brennand, contar que ele tinha
um ajudante que era um “pintor arretado”. Certo dia o cara chegou
pra Brennand e disse que não queria mais trabalhar com ele porque
tinha comprado um caminhão e ia voltar para a cidade natal. Esse
cara não era pintor, ele era motorista de caminhão!
ZONA SUL
– A tecnologia lhe ajuda?
FALVES –
Não consegui me adaptar ao computador, até porque o computador não
faz arte. O artista é quem usa a imaginação e utiliza um
determinado meio para transformar aquela ideia em um trabalho. Eu
faço manualmente, outros usam o computador. Eu não estou sozinho.
Outros poetas da minha geração também não usam. Caetano Veloso
disse que não tem nem celular!
ZONA SUL
– Quem seria o herdeiro do seu trabalho, a pessoa que continuaria a
sua obra? Você está passando seu conhecimento para alguém?
FALVES –
Já passei pra muita gente nesse período todo. Herdeiro, eu diria
que Jota Medeiros é um deles. Tem Avelino de Araújo, também.
ZONA SUL
– Deixe um recado para o leitor do jornal.
FALVES –
Aprendam a ler. Não só as palavras, mas, sobretudo a imagem. Uma
boa imagem vale mais do que mil palavras. Já dizia o velho ditado
chinês.
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