Michelle
lembra que quando tinha cinco anos, seu pai Maurício lhe
achou. Anos depois foi embora e ficaram as memórias e algumas
fotografias. As melhores fotos de infância que possui são da casa
onde seu pai lhe conheceu. Ela tinha oito pra nove anos, quando o vi
de longe, pela ultima vez.
“PAPAI,
ONDE ESTÁ VOCÊ?”
Michelle
Rodrigues Sampaio Bonifácio nasceu em Brasília, fruto de uma paixão
fulminante, mas ligeira. A família de sua mãe é goiana, de
Porangatu. Do seu pai ela pouco sabe. Só o nome, Maurício, e que
ele era viúvo na época em que manteve o relacionamento que a gerou.
Michelle foi informada também de que teria dois irmãos, filhos
desse pai desaparecido: Paulo Wagner e Carmen Lúcia. O nordestino
Maurício seria paraibano. Não se tem certeza. A única coisa certa
é que a nossa entrevistada do mês não cansará enquanto não
encontrar o pai. Enquanto isso não ocorre, ela vai vivendo como
pode. Vamos conhecer um pouco de sua história. Se por acaso alguém
souber do paradeiro de Maurício, mantenha contato.
(robertohomem@gmail.com
– http://zonasulnatal.blogspot.com).
A cobertura fotográfica dessa entrevista foi feita pelo grande
fotógrafo pernambucano e amigo JB Azevedo.
Na busca
do seu objetivo, que é encontrar seu pai, Michelle já
criou perfil na Internet e em redes sociais e foi tema de
reportagem no Correio Braziliense. Ela sabe que ele é nordestino,
tem uma cicatriz em uma das mãos, e na época que ela era criança
ele era viúvo e tinha dois filhos...
ZONA SUL – O que você faz, hoje, da vida?
MICHELLE
– Sou servidora pública, trabalho no Ministério da Previdência
Social. Entrei em abril do ano passado. Minha lotação é no
Cerimonial. O serviço inclui o acompanhamento da agenda do ministro
em eventos, reuniões e viagens.
ZONA
SUL
– Fale sobre alguma viagem interessante que você tenha feito
durante esse ano de trabalho.
MICHELLE
– Um fato interessante é que, graças a essas viagens, pude
assistir à abertura do São João 2012 de Caruaru e ao último dia
dessa festa em Campina Grande. Quer dizer: pude ver de perto a
disputa das duas cidades pelo título de quem faz o maior São João
do mundo.
ZONA
SUL
– Se você integrasse uma comissão julgadora com a
responsabilidade de eleger o melhor São João do Brasil, votaria em
qual dos dois?
MICHELLE
– Eu escolheria Campina Grande. Mas essa minha opção poderia nem
ser a mais correta, já que, em Caruaru, vi os festejos juninos
durante o dia. Estive no Polo Alto do Moura. Lá tem uma grande
quantidade de ateliês. Esses artesãos se dedicam às esculturas de
barro. Lá funcionam também muitos restaurantes. Durante o São
João, ocorrem apresentações de trios pé-de-serra e bandas de
forró e de pífano. Não fiquei por lá durante a noite porque o
evento para o qual viajei seria realizado em Sertânia, outra cidade
pernambucana.
ZONA
SUL
– E em Campina Grande?
MICHELLE
– Aí, sim, participei da festa à noite. Eu nunca tinha visto nada
parecido. Um monte de palco, cada qual com uma programação
diferenciada. Quando um show terminava, já emendava outro. Talvez
por isso eu tenha achado Campina Grande maior e melhor.
ZONA
SUL
– E o lado profissional dessas viagens? Como está sendo?
MICHELLE
– Muito bom. Por enquanto não tive que enfrentar nenhuma saia
justa. Como falei antes, trabalho no Cerimonial do Ministério da
Previdência. Vez por outra viajo para participar de inaugurações
de agências em municípios do interior do Brasil. Nessa função, o
principal objetivo é aparar arestas e contribuir para que as
solenidades ocorram sem problemas. Porém, ainda não acho que esse
meu emprego na Previdência seja o definitivo. Fui convocada para
esse trabalho no último dia de validade do concurso para o qual eu
havia sido aprovada. Já estava perdendo a esperança, mas consegui.
No Cerimonial a gente lida com autoridades. Nessa função, tem que
haver muito cuidado e respeito. Para mim está sendo importante
desenvolver esse jogo de cintura político. Gosto muito dessa área.
Também estou atuando como mestre de cerimônias. Acredito que tenho
perfil de lidar com o público, de falar, de conduzir os eventos. Mas
não estou descuidando e continuo estudando para outros concursos.
Meu objetivo é uma vaga no Judiciário, sobretudo pela questão
salarial e também pela jornada de trabalho. Lá paga bem melhor que
o Executivo. Além do mais, o funcionário entra meio-dia. Nesse
horário não pega trânsito e também é possível conseguir outra
atividade pela manhã.
ZONA
SUL
– Como é trabalhar com o ministro potiguar Garibaldi Alves Filho?
MICHELLE
– Nos contatos que tive com ele pude perceber que é uma pessoa
competente, mas também humilde e acessível. Ele sempre dá atenção
a todos os que o procuram nesses eventos e reuniões dos quais
participo. Vejo que tem muito carisma. Dia desses fomos ao Tribunal
de Contas da União. O elevador privativo não estava funcionando.
Dentro do outro, tinha um funcionário de serviços gerais. Quando
esse rapaz viu que o ministro queria utilizar o elevador, ele saiu da
cabine, para esperar o ministro subir. O ministro não aceitou aquela
gentileza. Pegou o rapaz pelo braço, o conduziu de volta ao elevador
e viajamos todos juntos. O ministro Garibaldi tem atitudes de um
homem comum, coisa não tão fácil de ver em uma autoridade.
ZONA
SUL
– Quais outros empregos você teve antes de entrar no Ministério
da Previdência?
MICHELLE
– Trabalhei em uma construtora que foi envolvida em escândalo
investigado pela Polícia Federal. Essa empresa não existe mais. O
dono utilizava informações privilegiadas a respeito de obras. Mas
você não vai falar nisso...
ZONA
SUL
– Claro que sim! Um fato interessante desses... Além do mais, você
nem citou detalhes.
MICHELLE
– Tá certo. Sendo assim... Mas eu não vou falar mais nada. Deixa
esse assunto quieto.
ZONA
SUL
– Diga só se essa empresa era da área de construção civil...
MICHELLE
– Era construção de casa, reformas de prédios públicos,
estradas... Eu era secretária. Antes eu trabalhei no Tocantins, em
uma empresa de plano de saúde, como também secretária. Mas o meu
primeiro emprego foi aos 15 anos como cobradora de ônibus. Trabalhei
na Viação Anapolina, fazendo a linha Cidade Ocidental/Brasília.
ZONA
SUL
– Uma pessoa de menor podia trabalhar como cobradora de ônibus?
MICHELLE
– Nessa empresa era comum pessoas de menor trabalharem. Eu entrei
com 15 anos e fiquei um ano trabalhando. Nesse período, presenciei
um acidente. O ônibus se chocou com uma moto. O motoqueiro foi para
o hospital. Ele foi imprudente. A moto, daquelas bem potentes,
apareceu do nada. Felizmente nunca presenciei assalto. Certa vez
houve uma confusão envolvendo um rapaz que já era conhecido por
passar a mão nas meninas.
ZONA
SUL
– E os estudos? Trabalhando com 15 anos, conseguiu estudar?
MICHELLE
– Consegui, sim. A empresa empregava menores, mas não atrapalhava
os estudos. As escalas não interferiam no horário escolar. Mesmo
com todas as dificuldades que enfrentei, sempre tive os estudos como
prioridade. Em Palmas entrei no curso de História, na faculdade
federal. Mas, antes de concluir, vim embora para Brasília. Dos cinco
anos que morei em Palmas, dois anos e meio eu cursei História.
ZONA
SUL
– Por que você escolheu o curso de História?
MICHELLE
– Justamente por meu interesse pela política. Somente estudando
história a pessoa pode compreender conceitos básicos como, por
exemplo, o motivo de o Brasil ser hoje uma democracia. Tudo tem uma
história por trás. Outro exemplo: eu não conseguia entender
direito os motivos do conflito entre Israel e a Palestina. Fui
pesquisando e cheguei até a Bíblia para entender essa confusão
toda. Estudei o passado para conseguir entender certas situações do
presente. Acho tudo isso muito interessante. Com dois anos e meio de
faculdade, voltei para Brasília. Terminei o curso nas Faculdades
Integradas da Terra de Brasília. Meu ensino médio eu também
terminei em Brasília, no CESAS (Centro de Estudos Supletivos Asa
Sul).
ZONA
SUL
– Além de Brasília, você morou onde mais?
MICHELLE
– Morei na Cidade Ocidental dos dez aos 18 anos. De lá, vim para
Brasília, para o Recanto das Emas, quando minha mãe recebeu um lote
do governo.
ZONA
SUL
– Como você conheceu o seu marido?
MICHELLE
– Ele tinha uma lanchonete na rodoviária. Quando eu trabalhava
como cobradora, costumava lanchar por lá. Naquele entra e sai todo o
dia, certa ocasião uma amiga me disse que tinha alguém afim de mim.
Eu já o conhecia, mas não sabia desse interesse dele. Na verdade,
eu ia lá porque era afim do filho dele. (risos). Acabei casando com
o pai. Na época eu tinha 15 anos e ele 40. O filho tinha 18.
ZONA
SUL
– O pai é quem estava de olho em você...
MICHELLE
– Pois é. (risos) Depois eu contei para o pai, rimos com essa
história.
ZONA
SUL
– Sua família não tentou interferir nesse relacionamento? Você
tão nova, se envolvendo com uma pessoa 25 anos mais velha?
MICHELLE
– No início a minha mãe não aprovou, mas eu tinha certa
independência, já que trabalhava e estudava. Ela não tinha como me
controlar. Além disso, eu já era mãe. Tive um filho aos 14 anos.
Hoje já sou avó, tenho uma neta de quatro anos. Fui avó com 31
anos. Mas, sobre o namoro, não tinha como minha mãe segurar. Fui me
envolvendo com ele e, aos 18 anos, engravidei da Mariana, que fez
agora 18 anos. Estamos juntos há 21 anos e casados há 15.
ZONA
SUL
– O que seu marido faz hoje?
MICHELLE
– Ele tem uma farmácia em Vicente Pires, aqui no Distrito Federal.
ZONA
SUL
– E o pai do seu primeiro filho?
MICHELLE
– Não temos mais contato. Meu filho é quem vai visitá-lo e
também ao avô. Nosso relacionamento foi uma coisa da juventude.
Quando o conheci, aos 13, ele já tinha 19 anos. Ele também não
queria deixar que eu estudasse. E eu sempre prezei o estudo. Não deu
certo. Coincidiu que logo após conheci meu atual marido, e aí
distanciou de vez.
ZONA
SUL
– Fale sobre a sua mãe.
MICHELLE
– Ela é de Porangatu, Goiás. Casou também muito nova, aos 14
anos. Até os 28, não teve filho. Quando se separou do marido, em
Goiás, veio para Brasília. Ela se chama Ana da Anunciação. É a
partir da sua vinda para Brasília que começa a minha história. Aos
28 anos, recém-separada, ela veio trabalhar na casa de uma família
na quadra 410 da Asa Sul, em Brasília. Na época os “points” da
cidade eram o Conjunto Nacional e a Rodoviária. Um dia, voltando de
lá, pegou o ônibus e foi para casa. Poucos minutos depois que subiu
para o apartamento, o porteiro avisou que tinha alguém à sua
procura.
ZONA
SUL
– Essa pessoa a estava seguindo?
MICHELLE
- Minha mãe não sabe se estava sendo seguida desde a Rodoviária ou
se foi depois que desceu na parada de ônibus. Essa pessoa era
Maurício, que depois viria a ser o meu pai. Ela se relacionou com
Maurício durante pouco tempo. Minha mãe tinha vivido na roça e
havia terminado de se separar. Ela não tinha muita experiência de
vida. Talvez por isso ela não tenha contado a Maurício que tinha
engravidado dele. Continuou trabalhando nessa casa por um tempo.
Quando eu nasci, fomos morar com a minha tia, no Núcleo Bandeirante.
Depois de algum tempo, minhas primas conseguiram encontrar o meu pai,
Maurício. E avisaram para ele que tinha nascido sua filha.
ZONA
SUL
– Onde essas suas primas o encontraram?
MICHELLE
– Alguns detalhes dessa história continuam nebulosos até hoje.
Talvez seja por isso que eu não tenha ainda obtido sucesso nessa
busca pelo meu pai. Sequer sei o nome completo dele. Tenho só o
primeiro nome, Maurício, e alguns outros dados.
ZONA
SUL
– Por exemplo...
MICHELLE
– Ele teve dois filhos antes de mim: Paulo Wagner e Carmen Lúcia.
Sei também que na época em que se relacionou com a minha mãe, ele
era viúvo. Sei ainda que Maurício é nordestino, parece que
paraibano de João Pessoa. Quando completei seis meses de vida, minha
mãe conheceu o homem que me criou, o Herval, a quem também
considero pai. Para evitar qualquer problema com o marido, ela se
afastou completamente de Maurício.
ZONA
SUL
– Você chegou a encontrar o seu pai?
MICHELLE
– Lembro que, quando eu tinha cinco anos, Maurício me achou. Eu
morava em Taguatinga Sul. Ele foi até lá em casa. Lembro
nitidamente. Houve uma segunda ocasião, quando ele me levou no
comércio do Bandeirante e me deu de presente uma bota e um apontador
de lápis, de ferro. Depois disso, ele passou a me visitar em
Taguatinga. Só que, em uma dessas idas, minha mãe pediu para ele
não voltar.
ZONA
SUL
– Por que?
MICHELLE
– Ela explicou que estava casada e que não queria complicações
com o marido. Eu já estava com cinco anos. Maurício deixou anotado
em um papel os seus dados: nome, endereço, telefone... Ele sempre
falou pra minha mãe que tinha vontade de me levar para apresentar
aos pais. Só que nunca deu certo. Nisso, Herval encontrou essas
anotações e rasgou. Foi dessa forma que acabou completamente a
possibilidade de eu encontrar meu pai. Ficaram as memórias e algumas
fotografias. As melhores fotos de infância que tenho são dessa
época, da casa onde Maurício me conheceu. Quando eu estava com oito
pra nove anos, o vi de longe. Minha mãe me mostrou. A gente estava
na quadra 38, do Guará. Parece que ele estava fechando um negócio
de venda de carro. Com medo do Herval, minha mãe não me deixou ir
até o Maurício.
ZONA
SUL
– Desde então você sonha em reencontrar o seu pai...
MICHELLE
– Essa procura pelo Maurício é muito difícil. Já pensei em ir à
antiga Telebrasília para tentar conseguir um catálogo telefônico
daquela época. Ou pelo menos um catálogo de endereços, para tentar
descobri-lo. O maior problema é não ter seu nome completo. Minha
mãe fala que ele tinha um comércio na Asa Sul. Pra mim é uma
procura grande.
ZONA
SUL
– Hoje em dia a sua mãe lhe ajuda nessa procura ou ainda tenta
colocar obstáculos?
MICHELLE
– Ela ajuda. Vivi um tempo muito triste, minha mãe achava que era
por isso. Ela se culpa por não ter me dado a oportunidade de
continuar mantendo contato com meu pai. Ela vê que eu procuro e me
ajuda. Quando pergunto alguma coisa, ela sempre me passa essa
informação. Nessa busca do meu objetivo, já criei perfil na
Internet e em redes sociais. Já fui tema de reportagem no Correio
Braziliense, mas nunca obtive sucesso, até pelo fato de as
informações serem muito limitadas. Maurício é nordestino, tem uma
cicatriz em uma das mãos, na época era viúvo e tinha esses dois
filhos...
ZONA
SUL
– Se ao invés da cicatriz ele tivesse um dedo a menos, poderia ser
o Lula (risos)...
MICHELLE
– É, já pensou? Seria bom demais, uai! Se você me olhar e
comparar com a minha família, vai ver que não tenho muita
semelhança com eles. Sou grande e gorda, enquanto todo mundo da
minha família é magro. Hoje, quando vou fazer uma consulta e o
médico pergunta sobre o meu histórico familiar, só sei responder o
que diz respeito ao lado da minha mãe. Dele só guardo uma vaga
lembrança. Acho que pareço com Maurício. Ele era grande, branco. A
família da minha mãe é um pouco mais morena.
ZONA
SUL
– Da fisionomia dele, o que você lembra? Usava bigode?
MICHELLE
– Não lembro. Só recordo que era branco, forte e alto. Creio que
devia ter 1 metro e 75 centímetros.
ZONA
SUL
– Sua mãe não lembra sequer o nome completo de Maurício?
MICHELLE
– Ela não sabe, até porque o envolvimento entre os dois foi muito
rápido. Ficaram juntos questão de meses. Eles saíram, tiveram
algum envolvimento duas ou três vezes. Como falei, minha mãe
trabalhava e morava em uma casa de família na 410 Sul. Ele também
morava ali nas proximidades.
ZONA
SUL
– Se você encontrasse o seu pai, o que diria a ele?
MICHELLE
– Já parei várias vezes para tentar imaginar qual seria a minha
reação nesse momento. Não sei. Tenho muita vontade de conhecê-lo,
mas a minha reação eu só saberia na hora mesmo.
ZONA
SUL
– Você guarda alguma mágoa da sua mãe pelo fato de ela não ter
permitido uma aproximação maior sua com o seu pai?
MICHELLE
– Não, não tenho. A situação da vida dela impôs isso.
ZONA
SUL
– Ela ainda está com Herval?
MICHELLE
– Ele faleceu em 2009. Meu pai era servidor público do Governo do
Distrito Federal. Herval morreu de câncer, talvez resultado de uma
vida muito desenfreada. A bebida e os cigarros acabaram com ele.
ZONA
SUL
– Desse casamento, nasceu sua irmã.
MICHELLE
– Sim. Bianca trabalha em farmácia, mas não na minha. Minha mãe
é aposentada. Quando eu tinha três ou quatro anos, ela colocou um
marca-passo. Foi aposentada por invalidez aos 32 anos.
ZONA
SUL
– Como você foi morar em Palmas?
MICHELLE
– Meu marido recebeu uma proposta para gerenciar a Drogaria Unicom,
em Palmas, que estava abrindo. Moramos cinco anos. Palmas ainda não
tinha a ponte que ligava a cidade a Paraíso. O lago também não
estava completamente cheio. Quando a gente ia para Paraíso, tinha
que atravessar 40 minutos de balsa. Mas a estrutura da cidade já era
boa.
ZONA
SUL
– Você gostou de ter morado por lá?
MICHELLE
– Amo Palmas. De lá, só não gosto do calor. É mais abafado do
que Brasília. A cidade é muito tranquila. O trânsito era ótimo.
Você percorria a distância entre sua casa e o centro em poucos
minutos. Pra mim, foi um momento de crescimento pessoal.
Literalmente. Eu cheguei em Palmas e logo entrei na universidade. Foi
um momento de grandes mudanças na minha vida, de conhecimento de
quem sou. Lá passei por uma ruptura em muitas coisas, como na
questão do medo, da insegurança. Em Palmas eu podia dizer para as
pessoas o que eu queria falar. Antes eu apenas concordava com o que
elas falavam. Palmas, para mim, foi um salto na minha vida.
ZONA
SUL
– Poderia ter ocorrido em outra cidade?
PALMAS
– Sim, mas o fato é que as mudanças ocorreram em Palmas. O motivo
da mudança não foi a cidade em si. Creio que a universidade e
também o fato de eu ficar distante da família contribuíram
decisivamente. Fui morar em um lugar onde não conhecia ninguém.
Éramos eu, meu marido e meus dois filhos. Eu estava sozinha, sem
mãe, sem irmã... Não tinha ninguém para falar mal da minha vida.
A história que eu chegasse lá e contasse, o povo ia acreditar. Eu
poderia contar a história que quisesse, já que ninguém sabia da
minha vida.
ZONA
SUL
– E que história você contou?
MICHELLE
– (risos). O mais engraçado foi o seguinte: na minha infância eu
ia pra Porangatu, e já achava aquele lugar muito quente e longe. A
viagem durava sete horas. Lembro que uma vez a minha mãe foi a Porto
Nacional, que na época era Goiás e hoje fica no Tocantins. Eu
dizia: minha mãe está indo para o fim do mundo. Porangatu já era o
limite. Eu sempre falava que Porto Nacional era perto do além. A
vida me proporcionou essa surpresa: fui morar depois de Porto
Nacional. Em outras palavras: fui morar depois do fim do mundo e
estudar no fim do mundo, já que o meu curso de História era em
Porto Nacional.
ZONA
SUL
– Você saía todos os dias de Palmas para estudar em Porto
Nacional?
MICHELLE
- Depois do serviço tinha um ônibus que nos levava para Porto
Nacional. Esse transporte era bancado pela prefeitura de Palmas. Eu
trabalhava na Unimed. Viajava sessenta quilômetros de distância e
depois voltava. Foi nessa época que ocorreu esse “boom” na minha
vida. Foi também quando experimentei bebida. A turma levava vinho
dentro do ônibus. Nas aulas de sábado, muitas vezes ainda tinha
gente bêbada da sexta-feira, das festas que a gente fazia. A gente
matava aula para pegar carona e voltar para Palmas. A gente ia para o
trevo de Porto Nacional e os motoristas já sabiam que aquele pessoal
era estudante pedindo carona para ir embora.
ZONA
SUL
– Devem ter sido tempos divertidos...
MICHELLE
- Tem várias histórias... Uma de nossas colegas era dona de uma
funerária. Ela morava em frente ao cemitério. A gente ia beber na
casa dela. No próprio lote onde ela residia, tinha as capelas para
velar os corpos. Teve ocasião de estar havendo velório e a gente
bebendo, fazendo a maior bagunça dentro da casa dela. Só o que não
fizemos foi beber dentro do cemitério.
ZONA
SUL
– E as caronas?
MICHELLE
- A primeira carona que pegamos foi com um senhor que passou
conduzindo uma caminhonete. A turma tinha combinado que ou ia todo
mundo ou não ia ninguém. Éramos cinco. Fomos duas na frente e três
na carroceria. Quando o carro ia passar pela Polícia Rodoviária,
que o guarda fez menção de que iria mandar parar, a gente se
escondeu na carroceria. O policial pediu documentos e fez uma
revista. Quando foi olhar na carroceria, encontrou a gente. Ele
perguntou ao dono do carro sobre as moças “ali atrás”. Quando
ficou esclarecido que a gente estava apenas pegando uma carona, o
policial liberou o carro e disse ao motorista: “Vá embora, você
está muito bem”. Essa foi a primeira carona.
ZONA
SUL
– Nenhuma dessas caronas deu errado?
MICHELLE
– Não, a gente teve sorte. Outra vez nosso grupo tinha sete
pessoas. Quando a gente perdia o ônibus grátis pago pela
prefeitura, tinha que pegar um outro que custava cinco reais, a
passagem. A gente estava em um ônibus desses, voltando para Palmas,
mas ninguém tinha passado a roleta ainda. Foi quando alguém fez uma
conta rápida e comentou que o total das sete passagens, 35 reais,
dava para pagar um bocado de cerveja. Isso ocorreu em 2005. A gente
tinha embarcado no centro de Porto Nacional e estava chegando no
trevo. Uma de nós disse ao motorista que tinha esquecido a bolsa.
Essa foi a senha para descer todo mundo para ir tomar cerveja em um
bar próximo, na esperança de, mais tarde, conseguir carona até
Palmas. Era dia de sorte mesmo. A gente conseguiu carona para os sete
e foi embora. Na chegada a Taquaralto, antes de Palmas, o dono do
carro parou para beber e ainda pagou mais cerveja para a gente.
ZONA
SUL
– Você não bebia até entrar na faculdade por pertencer à
religião evangélica?
MICHELLE
– Sim. Comecei a frequentar a igreja evangélica por conta da minha
família. Depois da faculdade, eu saí. Eu já tinha saído antes. Lá
em Palmas foi que degringolou tudo. Lá foi um oba-oba danado.
ZONA
SUL
– Seu marido não era evangélico?
MICHELLE
– Não, mas ele não participava dessas festas. Apesar disso, nunca
me impediu de ir. Aquela época de Palmas foi mesmo muito boa. Estive
até em Natividade, para a festa do Divino Espírito Santo. Fica
depois de Palmas. Palmas foi muito bom, tenho muitas histórias de
lá.
ZONA
SUL
– Por que você voltou para Brasília?
MICHELLE
– Separei do marido e voltei. Ele ainda ficou por lá mais uns sete
meses. Voltei para a casa da minha mãe. Foi quando decidi
literalmente estudar para concurso. Um dos motivos é que eu não
suportava ter que trabalhar sábado e domingo. E se eu fosse para
mercado, para farmácia ou outro comércio, eu teria que trabalhar
nesses dias. Meu pai, Herval, me incentivou muito. Ele era servidor
público. Pena que morreu antes de poder não conseguiu ver a minha
posse. Herval comprou apostilas. O engraçado é que eu dizia pra
ele: “vai sair um concurso assim e assim, preciso de dinheiro para
comprar apostila”. Ele fazia questão de comprar, só que comprava
a pior que existia, a mais barata que havia. Mas Herval sempre me
incentivou. Sinto orgulho de dizer que na minha família fui a
primeira a entrar na faculdade a também a primeira a ingressar no
serviço público.
ZONA
SUL
– Mas você estava dizendo que, sete meses depois da sua vinda, seu
marido retornou para Brasília...
MICHELLE
– Ele voltou para cá, reatamos o casamento e estamos juntos até
hoje.
ZONA
SUL
– Fale sobre seus filhos.
MICHELLE
– Marlon vai fazer 22 anos em setembro. Ele é do Exército. Já
está há três anos lá. Pretende continuar na carreira militar.
Entrou no Exército por minha vontade. Lembro que na época da
primeira semana, ele chorava muito. Nunca tinha recebido grito de
ninguém, a não ser meu, como mãe. O banho dele, em casa, era de 40
minutos. No mato não tinha essa mordomia. A comida dele era
especial, ele não comia tudo, era cheio de exigências. Lembro que
quando Marlon voltou do campo, devorou uma panela com carne, arroz,
quiabo e um monte de coisa. Ele comia de um jeito que eu falava para
mim mesma: “caramba!”. O Exército fez com que ele mudasse em
muita coisa. Ele é motorista de um coronel. O serviço é bem leve,
mas Marlon detesta o trânsito. Ele já me deu uma neta, Marília.
Foi pai aos 17 anos. Eu estava com 31. Foi um choque grande, para
mim. Quando ele me comunicou que tinha começado a sua vida sexual, o
orientei a usar camisinha não só para evitar filho, mas também por
causa de doenças venéreas. Mas o fato é que Marília está aí e
ela é uma alegria.
ZONA
SUL
– E a sua filha?
MICHELLE
- Mariana fez 18 anos. Ela cursa o terceiro ano do ensino médio.
Estuda na Católica. É minha menina. Mariana é quem cuida de mim.
Ela cobra para eu me arrumar, tirar sobrancelha. Exige que eu seja
mais perua. Mariana cobra para que eu tenha mais vaidade. Os dois dão
um equilíbrio muito grande. Sou apaixonada pelos meus filhos.
ZONA
SUL
– Deixe uma mensagem para o leitor do “Zona Sul”.
MICHELLE
– Natal é uma cidade que eu tenho muita vontade de conhecer
melhor, de passar mais tempo. Já fiz alguns planejamentos, quem sabe
dá certo? Recentemente estive por aí na inauguração de uma
unidade de desenvolvimento de software da Dataprev. Mas é preciso
mais tempo para realmente viver a cidade. Espero ter essa
oportunidade. Mas quero dizer ao leitor do jornal que ele procure
conhecimento, estude, busque sempre estar de bem com a vida. Ter uma
fé também é fundamental. Mesmo que você acredite em uma folha de
árvore, se ela lhe ajuda a dar um direcionamento na vida, então é
válido. Tenha fé, tenha uma religião. A cada dia tente ser melhor
com os outros e consigo próprio.
ZONA
SUL
– E para o seu pai e irmãos, que recado você deixaria?
MICHELLE
– Às vezes penso que talvez meu pai não esteja mais vivo. Eu
gostaria muito de encontrá-lo, mas, se for o caso, mesmo assim tenho
muita vontade de conhecer meus irmãos. Sinto um espaço dentro de
mim, um vazio, que precisa ser preenchido. Tenho muita curiosidade de
saber como eles são, o que gostam, onde vivem. Pode até ser que eu
os conheça e nada mais aconteça. Mas também pode ocorrer o
contrário: a gente ganhe uma oportunidade de se aproximar como
família. Penso no meu pai e nesses meus irmãos todos os dias. Quem
puder ajudar nessa busca, por favor, mande uma mensagem para
michellersb@gmail.com
ou mantenha contato pelo Facebook. Basta procurar por Michellersb.
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