Anchieta Fernandes
Não sei se por causa do meu signo (no
volume dedicado ao signo de Gêmeos, na coleção “Os Signos do Zodíaco”, da
Editorial Presença, de Lisboa é dito claramente: “os Gêmeos gostam muito de
viajar”), eu gosto de viajar. Mas tenho me dedicado pouco a essa atividade,
devido a uma circunstância pessoal: tenho medo de viajar sem uma pessoa da
família me acompanhando. Irmãos e irmãs têm viajado até pela Europa, mas eu me
acharia um intruso, atrapalhando os planos de irmãos com suas famílias e de
irmãs com seus interesses específicos femininos.
Devido
a isso, não conheço nenhum outro país fora o Brasil, e conheço poucos
municípios do meu próprio Estado, o Rio Grande do Norte. Mas, refletindo
melhor: conheço outros países e outros municípios potiguares, através de
excelentes livros de viagem de escritores norte-rio-grandenses, que sabem
colocar o sal necessário nas receitas dadas quanto a comidas e restaurantes
existentes mundo afora,e bonitas e intensas cores no estilo com que
descrevempaisagens, ruas e monumentos estrangeiros. Assim, com esta série passo
aos leitores minhas impressões das impressões de viajantes da nossa terra.
É claro que o primeiro livro de
viageminteressante,de autor norte-rio-grandense, é mesmo “Viajando o Sertão”,
do mestre Câmara Cascudo. Resultado de uma excursão oficial do interventor
Mário Câmara para o interior do Estado, acompanhado de técnicos em educação,
agricultura e açudagem, e do escritor Câmara Cascudo, para fazer o registro da viagem
em estilo reportagem. De 16 a
29 de maio de 1934, esta viagem aconteceu, os viajantes se servindo de diversos
veículos: automóvel, auto-de-linha, trem, canoa, rebocador, cavalo e
hidroavião.
Partindo de Natal, o roteiro incluiu
as cidades de Macaíba, Santa Cruz, Cerro Corá, Angicos, Açu, Paraú, Augusto
Severo (atualmente tendo voltado ao antigo nome Campo Grande), Caraúbas, Patu,
Almino Afonso, Lucrécia, João Pessoa (atualmente como antigo nome Alexandria),
Luiz Gomes, Pau dos Ferros, Itaú, Apodi, Pedra de Abelha (atualmente, com o
nome Felipe Guerra), Mossoró, São Sebastião (atualmente, com o nome Governador
Dix-Sept Rosado) e Areia Branca. A reportagem foi publicada primeiramente em A República , de 31 de
maio a 22 julho de 1934.
A primeira edição do livro foi pela
Imprensa Oficial, no mesmo ano de 1934. Saiu uma segunda edição, em 1975, pela
gráfica Maninbu, da Fundação José Augusto, trazendo uma nota explicativa
escrita por M. Rodrigues de Melo. É a erudição de Câmara Cascudo focando suas
lentes de observação em aspectos antropológicos, etnográficos,
arquitetônicos,linguísticos, religiosos e políticos na história de cada
comunidade visitada. Isso com um estilo delicioso, que comunica facilmente aos
leitores a emoção da viagem. Com lances inegáveisde humor.
Viajar ao sertão de inverno daquela
época era uma verdadeira epopeia. Embora eu tenha referido os veículos que os
viajantes usaram, Cascudo detalha: “Andamos a pé, de cadeirinha, de macaquinho,
dentro d’água, na lama, nos massapês, pulando cercas, saltando, de pau em pau,
os roçados que a enchente circundara, correndo nos panascos, empurrando o auto,
trabalhando de pá, carregando maletas, levando os companheiros no ombro,
livrando os xique-xiques, galopando a cavalo, apostando velocidade nas retas areentas
(...)”.
E situações mais constrangedoramente
inesperadas foram registradas: “Devemos somar as variantes, as perdidas, as
trilhas feitas na hora, abraço, para que oFord subisse trepidando as barreiras
caídas, esmagando o barro das areieiras escorregadias, descendo, brusco os
barrancos inseguros e oscilantes. Falta anotar a fome, o frio das roupas
molhadas, a fadiga das caminhadas, a mania obsequiosa do sertanejo
oferecendo-nos galinha e macarrão em vez de carne-de-sol e coalhada”. Mas as
reações às dificuldades, por parte de alguns companheiros do repórter
Cascudo,resultavam cômicas.
(Soares Junior, que de médico passou a engenheiro hidráulico; as
incríveis aptidões de Oscar Guedes; o sono de Anfilóquio que o salteava,
quandoo caminho era difícil, singular como sua asma, que só atacava quando Ford
estalava de força inútil num Tremedal, além de um bom humor que desafiava
enchentes e lameira; tipos, anedotas, casos, observações, o caso do peru que
virou ovelha, a incrível espirituosidade das respostas sertanejas, são dignos
de maior demora uma leve e breve serie de registros.) Mas o importante é
constatar o resultado cultural de uma viagem como essa.
Quando um Câmara Cascudo participava
dessas excursões ao interior do Estado, o seu peso de pesquisador se somava a
sua sensibilidade estético-historiográfica, para apontar belezas da nossa
paisagem natural e das criações artísticas do nosso povo que não ficavam em
desvantagem quanto às mesmas belezas existentes em outros Estados ou
Países. Nos altos de Cerro Corá, então povoado, Cascudo se deslumbrou com entusiasmo,
ao mesmo tempo de musico e de pintor, pois “derredor o panorama desdobra-se em
perspectivas indefinidas, esperando, numa preparação de trama musical, que
surja Loengrin”.
Só ao longe a barreira das serras
azuladas fecha o avanço ao olhar ávido pelos limpos horizontes ilimitados. Para
diante a rodovia piora ate desaparecer. Um sopro de coivara requeima. Mas o
verde continua anunciando as aguas rumorosas que desceram durante dias fartos.
(Todas as gradações do verde estadeiam doçuras e prometem abundâncias.) É neste
sertão de contrastes que Cascudo encontra em Açu o artesão José Leão, “passando
fome”, trabalhando “sem auxilio, sem estimulo”, mas obstinado, artista
legitimo, moldando fisionomias de dezenas de santos, crucifixos, anjos, com
firmeza incrível gravando os traços morais na árvore.
Somente um escritor do talento de um
Câmara Cascudo para expressar,com verdadeiro conhecimento de crítico de arte, o
valor da simplicidade no barroco potiguar da capelinha de Nossa Senhora dos
Impossíveis, na Serra do Lima, “barroco pobre sem decoração, sem enfeite, sem
conchas e golfinhos” (estas coisas que são características do barroco europeu
ou até mesmo de Minas Gerais), Mas contendo em sua frontaria branca e
melancólica de ermida colonial, o “Arrecatado e humilde de eremitério cenobítico
e de pouso de oração silenciosa”.Até em portões de cemitérios, como o de Pau
dos Ferros, Cascudo viu beleza.
No livro recordador de sua viagem ao
interior do Estado, Cascudo aproveita para discordar de uma mania na arte
religiosa. Diz ele: “Um outro ponto melancólico é a substituição dos santos de
madeira pelos santos de gesso e de massa, bonitos e róseos com uma lindeza
extra-humana.” Cascudo menciona o São Sebastião padroeiro da Paróquia de
Caraúbas,cuja imagem de madeira foi substituída no altar-mor pela de um novo
São Sebastiao (de gesso). Mas Cascudo fez a ressalva,de que em Caraúbas o santo
velho não foi apeado dos altares, mas sim deixado no altar lateral.
Na oportunidade de descrição de cada
momento da viagem, Cascudo apresenta uma face de sua erudição, principalmente
de sua observação etnográfica no contato com tipos sertanejos. Em Luiz Gomes , de uma
simples conversa com o prefeito Antônio Gonçalves, nasce o desenvolvimento de
explicações cascudianas sobre o falar sertanejo, muito antes, portanto, da
sociolinguística surgida no âmbito dos estudos de linguagem (cerca dos anos 60
do século passado) e de Joaquim Mattoso Câmara Jr.afirmar cientificamente sua
linguística (seu livro “Princípios de linguística geral” é de 1942).
Cascudo pergunta ao prefeito se
morava na vila. O chefe da edilidade saiu-se
com essa: “Tenho casa aqui mais sempre assisto na fazenda”. Foi um toque para a
memória livresca do mestre encontrar coisa parecida lá atrás no tempo: “O poeta
de “Marilia de Dirceu” (1744 – 1807) um dos chefes da Inconfidência Mineira,
assim enumerava suas posses românticas: “Tenho próprio casal e nele assisto”.
Cascudo acrescenta: “o sertanejo tem algumas centenas de arcaísmos empregados
vivamente em seu dialetar.” Lembra então que anotou do poeta pastoril português
Bernardim Ribeiro os mesmos termos que o sertanejo emprega.
Quase ao final do livro, se lembrando
de outra viagem que fizera em 1929, então passando por Macau sensibilizou-se
com a harpa-eólia dos carnaubais, onde o ar se enchia com a surda sonoridade
das palmas rudes, flabelando, lentas, na quentura dos meios-dias, passava agora
pelo brejo do Apodi, onde também,“até os claros horizontes distantes denso,
maciço, compacto, agitando as palmas hirtas, como leques de cerimonia oriental
surdeava o mar montante dos carnaubais”. E enfim, após passar por Porto Franco em Areia Branca , com um
sono sem sonhos despedidas, pegar um hidroavião, às 07h30min, para voltar à
terra Natal.
Então, da janela do veículo aéreo, o
mestre viu passar os povoados, “alvejando ao meio de coqueirais. Vezes,
ronronando, o avião atravessava restingas maiores, entrando pela terra. As
casinhas dos pescadores achatavam-se na perspectiva. Voamos sobre os morros de
areia alvíssima. Nos arrecifes cinzentos o Forte dos Santos Reis emerge como
uma sentinela. A água cortada pela proa do hidroavião espadana.Silvando, os
motores param a respiração fremente e rítmica. Vamos devagar, para o flutuador.
Fisionomias conhecidas sorriem. Na moldura das dunas a cidade se estende,
imersa na doçura matinal. 09h20min”.
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