13 de dezembro de 2016

MENINOS DO RIO


Tarcisio Rosas (Sociólogo e contista)

José Batista, Zequinha ou simplesmente Zé, nascera e sempre vivera às margens do Potengi. Quando criança, em gratas manhãs ensolaradas, mergulhava nas águas cálidas e transparentes do calmo Canto do Mangue, ali brincando e, eventualmente, junto com os colegas, recolhendo peixinhos coloridos para aquários, estes diligentemente montados por sua mãe que os comercializava no Mercado das Rocas. Que época!... - pensava, repassando aquelas cenas em quase êxtase.
Mais tarde fôra iniciado na pesca em mar aberto (Santa Rita a Macau, ao norte, Redinha a Baía Formosa na região centro-sul) e na tecedura de puçás e redes de arrasto, de ambas atividades se tornando consumado mestre entre seus pares.
Anos a fio naquela vida de sol/sal o deixara calejado, mãos fortes que nem tenazes, pele curtida, semblante grave: testa franzida, lábios tensos e olhos fixos nalgum ponto imponderável, talvez observando as insondáveis águas abissais que sempre singrara.
Agora, aposentado, vivia atormentado pelas singelas lembranças d’outrora. Sua “compulsória” chegara com a artrite crônica, cansaço muscular e curteza de vista. O corpo doía-lhe em tempo integral e singular sonolência acometia-lhe de vez em quando. E, mais: na mesma proporção em que lembrava tudo do passado, esquecia não raro quase tudo do presente. Perguntassem-lhe porventura o que almoçara na véspera responderia peixe sem pestanejar, visto que se tratava de prato invariável; não saberia, contudo, se fora arabaiana, cioba, xaréu, cavala, atum, tainha, traíra, tilápia, piau, saúna, pescada, dourado, carapeba, curimatã ou qualquer outra iguaria de nossa piscosa costa. E isso, de certa forma, o consumia por dentro, provocando uma sensação de inutilidade que resultava em aguda depressão.
Justo por seus achaques mudara-se, conforme recomendação médica. A acentuada claridade no Canto do Mangue agravava seus problemas de visão. Mas não conseguia afastar-se do Rio e transferiu-se para as proximidades da Ponte de Igapó, além do cais do refoles, hoje ocupado pela Base Naval, arrastando consigo todo o passado que ficava a remoer, dia pós dia. Não fora diferente naquele 27 de agosto de um ano qualquer.
Estava, como sempre nos últimos tempos, à porta do seu mocambo observando o vário acontecer. Nada escapava aos seus olhos experientes - embora enfraquecidos, agora mais seletivos.
                                                         * * *
O olhar comprido e o ligeiro esgar de sorriso do velho homem do Rio denunciavam a tristeza que lhe ia na alma. Observava barcos à vela e algumas jangadas singrando em procura do mar. Quantas vezes fizera semelhante percurso!... Nos mangues próximos, crianças em alegre algazarra pescavam aratus, siris, caranguejos e outros exóticos crustáceos, vez por outra afastando-se do lamaçal e mergulhando nas águas turvas, outrora límpidas, do Potengi. Eles deviam estar na escola mas, nestes tempos difíceis, era questão de sobrevivência participarem da formação da renda familiar, com o que tinham a educação em segundo plano e a infância parcialmente perdida.
Sentado em rústico tamborete à porta do velho barraco, coisa de dez horas, pôs-se a imaginar sua época e os ralhos de sua mãe, uma morena de corpo arredondado, voz forte e coração mole: “Zequinha, onde ocê se meteu, moleque?!, gritava a cada instante. Sorriu, de novo, um não-sei-quê de nostálgico no semblante. Crianças são muito instáveis, irrequietas e irreverentes.
Uma asa-delta fez acrobacias sobre sua cabeça e mergulhou lépida, desaparecendo num rasante em direção à Redinha, enquanto portentoso navio resfolegava no porto em formidáveis urros e um carro em alta velocidade cruzava a ponte de Igapó, demandando as praias do litoral norte. O homem balançou a cabeça, desiludido: “o alvoroço é o mal deste tempo!”, pensou, aduzindo: “só há progresso nas máquinas”. Aperfeiçoada a cada instante, a tecnologia vai deixando para trás valores humanos antes tidos como indiscutíveis - esta a essência do seu pensamento.
Na verdade, aquele raciocínio não era impressão de momento; mais que isso, aquela visão de mundo se encorpara ao longo dos últimos anos, intensificando-se sobretudo desde quando se aposentara. Vê-se, a pressa é um estado de espírito próprio aos jovens. Paradoxalmente, os velhos parecem ter todo o tempo do mundo.
Tornando a fixar os garotos, pouco a pouco, como se fossem imagens em dégradé, o conjunto de gestos e cores passou a se confundir com cenas do remoto passado, para cuja memória terá contribuído o sensual e intimista ruído das marolas lambendo os suportes das velhas palafitas.

2
A Água fria aos seus pés e a ânsia de se atirar no rio, como os colegas da mesma idade, causavam alguma coisa intermediária entre euforia e medo, algo como irresistível excitação pelo desejo de encarar o desconhecido, mas temendo-o. Zequinha hesitou, claro. Na verdade, ainda estava bastante nítida em sua memória o acidente que vitimara Ivo, outro menino da comunidade, apenas dois anos antes. Tinha então oito anos mas a celeuma da vizinhança e o desespero da família pareciam ter se cristalizado em suas retinas, tornando-o menos afoito. Decidiu-se, enfim, tocando as pontas dos dedos na água e benzendo-se. Andou alguns passos e mergulhou, sentindo confortável sensação de tepidez na pele. Emergindo cinco metros adiante, deu algumas braçadas e aproximou-se dos companheiros.
“Zeca, cadê ocê diacho?!”, gritava a mulher ainda jovem, apesar do excesso de rugas no rosto de pele curtida e as mãos calosas, de dedos grossos e unhas malcuidadas. “O condenado desse menino ainda acaba me tirando o juízo, ave-maria!”, prosseguia a resmunguenta lavadeira. Na verdade, Maria não era lavadeira, apenas se desincumbia dessa tarefa naquele momento. A1iás, a cada instante do dia tinha uma tarefa a cumprir, como cozinhar, varrer o mocambo, lavar e passar peças de roupa, tomar conta dos meninos e, ainda, ajudar o marido num quiosque anexo preparando bolos, pastéis e cocadas à noite.
O Zeca apareceu, finalmente, no entanto aos gritos: um molusco aferrara-se ao seu calcanhar como uma tenaz e ele, apavorado, sentia calafrios. Pulando num pé só procurou o aconchego da mãe, o que se revelou iniciativa pouco alvissareira. Rugiu ela, então: “Desgraçado, só assim tu me procura, né?!”, e aditou a boa-nova: “Vou te quebrar no pau, infeliz!”. O jovem sentiu-se encurralado entre respeitável pata de caranguejo e a temível ira materna.

3
Semidesperto, o velho levantou o pé automaticamente acariciou a cicatriz embranquecida. Àquela noite tivera febre e delírios mas nunca mais desobedeceria a mãe. “Não há mais crianças como naquele tempo” - sentenciou.
Nuvens escuras perpassavam o céu, antes apropriado às asas-delta dos vôos juvenis. Esfregou os olhos, bocejou. Absorto em divagações não percebera que o tempo, apesar da aparente ociosidade, não parara, e que a tarde se fizera alta. Olhou uma última vez os manguezais meio-destruídos pela poluição. Tudo em volta estava quieto, irrepreensivelmente quieto. Não havia mais pressa.
Claro, não havia mais crianças.



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