Anchieta Fernandes
Na
noite de 23 de dezembro de 1944, obteve sucesso em Natal uma nova apresentação
de filmes pela Coordenação de Assuntos Interamericanos.Desta vez, o local da
mostra de filmes foi a sede do jornal natalense A República. Curta-metragens
com temas de guerra, musicais, uma mini-biografia do profeta Nostradamus e um
filmezinho educativo intitulado “Juquinha e os Ratinhos”. Quarenta e quatro
anos depois, a 10 de julho de 1988, cerca de 500 crianças e dezenas de adultos
lotaram as poltronas da sala de projeções do Centro de Convenções de Natal,
para verem a exibição do filme que estava inaugurando o I Festival de Cinema
Infantil de Natal. Título do filme inaugural:Fievel, um conto americano. É isso mesmo: era o maravilhoso desenho
animado produzido por Spielberg, contando as peripécias do ratinho Fievel,
imigrante russo em busca de melhora de vida na América.
Ratos no cinema tem havido muitos (emparelhando quase com a mesma
quantidade de cavalos, cachorros etc.). Mas, se o rato (da espécie mamífero
roedor)é um animal tão nocivo ao homem, destruindo livros, emporcalhando
queijos, trazendo a peste e outras doenças aos seres humanos, porque é que em
muitos filmes (principalmente em alguns desenhos animados)eles são vistos com a
ternura e a condescendência, que só poderiam serem dadas a animais úteis aos
homens? É algo a ser estudado e explicado por psiquiatras. Quanto a mim,
simples pesquisador da história e da linguagem da Sétima Arte, cabe-me apenas
apreciar ou não apreciar (como também não aprecio quando, em velhos
cinema-poeiras, guabirus e ratazanas correm por sobre meus pés, entre as
cadeiras, indo em direção aos porões de depósito das casas cinematográficas)filmes
com ratos na históriaq, como destaque principal ou apenas como objetos
complementares da cena.
Cabe, portanto, dizer que, o tema dos ratos foi desenvolvido no cinema
através das duas tecnologias: desenho animado e fotografia animada, algumas
vezes o animal um pouco fazendo o trabalho de ator por si mesmo, e não
desenhado por mão humana. Essa mão humana é que torna o rato de características
humanas, falando, rindo ou chorando, preparando tocaias para derrotar o inimigo
(no caso de Tom e Jerry,
principalmente, a imortal criação de Fred Quimby, depois adquirida pela
produtora Hanna-Barbera, e onde o pequeno ratinho Jerry sempre vence contra as
táticas supostamente acertadas do grandão gato Tom, e ainda sai da cena em
humilhação final, zombando do gato.
Se eu
sugeri, linhas atrás, que o fato de muitos ratos no cinema serem tratados com
ternura e condescendência, pode ser estudado ou explicado por psiquiatras, o
viés contrário, o fato de alguns cineastas usarem ratos de verdade para
mostra-los como símbolos do terror não precisa ser estudado ou explicado. Tá na
cara que, embora o mal que eles causam aos seres humanos seja proveniente de
sua inocência, pois as características genéticas e biológicas deles são
naturais, decorre daí que nada lhes dá nenhum sinal explicativo do porque os
seres humanos os rejeitam e querem sempre mata-los.
Aliás, nem todos os seres humanos os rejeitam. Os ratos, dentro de uma
interpretação gótica, podem ser considerados símbolos do mal, e então seres
humanos mensageiros do medo e da morte precisam deles, para ajudarem na macabra
tarefa. Vampiros, por exemplo. Um dos primeiros filmes da história do cinema
onde foi colocada uma quantidade exagerada dos roedores como co-adjuvantes, foi
Nosferatu, o filme de 1923 do alemão
F.W.Murnau, onde ele faz uma primeira versão cinematográfica do personagem
Conde Drácula, que nasceu literariamente em livro de BramStoker. No filme,
Nosferatu (que é o nome que Murnau deu a Drácula, já que não conseguira
autorização de Stoker para fazer o filme com o nome original do personagem)
chega a Bremen em um caixão preto, acompanhado de centenas de ratos
transmissores da peste.
Após cinco anos do lançamento dos
ratos de Murnau, um empresário norte-americano da indústria de entretenimento
veiculada em desenho animado e histórias em quadrinhos, e defensor dos valores
da ideologia ianque, resolveu formalizar em um personagem, o modelo de bem e do
bom exemplo para as crianças de todo o mundo: nascia em 1928 o rato Mickey Mouse. Walt Disney, o referido
empresário, aparecia como o seu criador. Mas o verdadeiro criador de Mickey foi
UbWerks, um dos talentosos desenhistas que Disney usava em sistema capitalista
nos estúdios, sem inicialmente lhes dar o crédito da autoria.
No começo, Mickey era mesmo um personagem simpático, um “menino” de
grandes olhos e grande cauda, vestindo apenas uma sunga preta, abotoada com
dois botões brancos. Eram historinhas engraçadas, sem nenhuma intenção
ideológica cimentando os roteiros. Pode ser até que Walt Disney tenha merecido
receber aquele prêmio especial da Academia de Hollywood, em 1931, pela criação
de Mickey em seu estúdio (embora não se possa negar que foi ele quem escreveu
alguns roteiros iniciais das peripécias do rato), ainda mais porque, quando as
histórias do rato imaginário foram adaptadas para históriasem quadrinhos, em
1930, em desenho de Floyd Jottfredson, o personagem passou a ganhar velozmente
popularidade. Segundo o escritor Goida (1), nas mãos de Jottfredson as
histórias de Mickey tinham personalidade, humor e criatividade gráfica,
tornando-se Mickey um cclássico.
No
cinema, pode-se mencionar aqueles encantadores curta-metragens, depois sendo
apresentados na tv; é exemplo, O
aniversário de Mickey, onde o rato, em determinado momento rege uma
orquestra da qual participam todos os seus amigos, Pato Donald, o cachorro
Pateta etc. Aliás, por falar em música, podem também serem mencionados três
momentos especialmente geniais da presença de Mickey na telona: o primeiro é no
filme Fantasia, de 1940, releitura
visual de grandes obras da música clássica , com Mickey sendo o personagem do
episódio dedicado à peça para orquestra de Paul DukasO aprendiz de feiticeiro, onde os desenhistas do estúdio Disney
fizeram Mickey se travestir também de regente de orquestra para, coberto com um
chapéu de feiticeiro, multiplicar uma vassoura em várias, que ficam obedecendo
ao ritmo da música para trazerem latas e latas de água para perto do “maestro”,
quase afogando-o.
No mesm0 filme, é também genial o momento em que Mickey desenho,
cumprimenta com um aperto de mão o maestro ao vivo LeopoldStokowski, da
orquestra de Filadélfia, que está regendo as apresentações das peças musicais
no filme, e que acompanham os criativos efeitos gráficos e luminosos criados
pelos desenhistas contratados para a empreitada. Por fim, outra presença
musical de Mickey no cinema, é no filmeMarujos
do Amor, realizado em 1946 pelo diretor George Sidney, e onde o rato,
depois de ter sido regente orquestra em outros filmes, agora mostra outra
faceta do seu talento humano (é claro que do talento dos desenhistas a serviço
do estúdio): vira um partner bailarino, acompanhando os passos do famoso Gene
Kelly, que também no mesmo filme dá chance a uma menininha negar de dançar com
ele.
O destaque pessoal de um rato só, no contexto do desenho animado, nem
sempre prevalece como índice de machismo dos desenhistas. Concomitentemente com
o Mickey foi criada nas primeiras histórias sua companheira, a ratinha Minie,
inicialmente caracterizada por vestir somente a saia de bolinhas. E antes de
fazer sucesso mundial, ao desenhar as aventuras do ratinho Fievel (1986), o
desenhista Don Bluth já fizera para o mesmo produtor (Spielberg) o filme A Ratinha Valente (1982). Teve até o
filme Roedores da Noite (1995,
dirigido por Dan Golden), onde o lugar cenário do filme é habitado por uma
sociedade de mulheres-ratos.
Incrível é que desmascarando o partypris
de que ratos são animais nojentos, só trazendo nocividade aos seres humanos,
houveram filmes onde não somente um herói rato, mas um casal (rato e rata)se
torna heroico em benefício de seres humanos. Foi o que aconteceu a partirdo
casal de ratos do filme Bernardo e
Bianca, realizado em 1977 pelos diretores Wolfgang Reitherman, John
Lounsbery e Art Stevens. No filme, o casal de ratos se aventura entrando num
pântano, para salvar uma menina órfã, aprisionada e explorada por uma mulher gananciosa,
que só pensa egoisticamente nela mesma, em procedimentos para ficar rica. Mas
os cientistas humanos sabem para que servem os ratos; para serem utilizados
como cobaias em experiências de laboratórios, provocando neles estímulos
adversos.
Daí
que em 1980, o diretor francês Alain Resnais fez
uma brincadeira comparativa entre seres humanos e ratos, em seu filme Meu Tioda América, realizado no referido
ano. Segundo o crítico Jairo Arco e Flexa, os personagens do filme “encontram
uma realidade cada vez mais hostil que os leva a agir exatamente como as
cobaias do laboratório (...).” Daí que, “num tom jovial absolutamente
inesperado para um cineasta com seu currículo, Resnais faz em algumas cenas os
atores colocarem na cabeça enormes máscaras de camundongos.” (2) Pergunte-se:
estas máscaras expressam mesmo aquilo que somos: ratos-cobaias à mercê do
laboratório divino? Ou à mercê do laboratório das humilhações engendradas pelos
sistemas políticos?
Assim tem sido os ratos dentro deste especial imaginário da arte e da
criatividade humanas. Sua presença no cinema, sejam eles repugnantes no contato
de sobrevivência com o dia-a-dia das pessoas comuns, ou necessários aos testes
de laboratórios científicos, eles tem alimentado a diversidade temática da
Sétima Arte. As cenas engraçadas e às vezes humanamente ternas das histórias do
Mickey tem agradado crianças em todas partes do mundo. As cenas
assustadoramente maléficas do gênero terror,
com ratos sendo a mola central dos enredos, tem prendido a atençãode patéias de
sádicos, curiosos ou candidatos ao ofício de investigadores desde os anos vinte
do século passado.Documentáriossociologicamente importantes como alguns que tem
mostrado cenas de pessoas de extrema pobreza se alimentando de ratos tem
servido a um despertar da consciência política. Filmes como o de Resnais servem
a uma reflexão sobre nós mesmos, enquanto vítimas de uma suposta divindade ou
de sistemas governamentais supostamente necessários.
E a fantasia (científica ou não) vai usando roedores no cinema. E se
eles, por conta de uma mutação genética, aumentassem o seu tamanho, de maneiras
a dominarem os homens, transformando-os em alimentos para ganharem mais proteínas
(como no filme Olhos da Noite, de
1982, dirigido por Robert Clouse)? E se nós, seres humanos, formos apenas
objetos biônicos a fazer parte do plano de um planeta terra concebido pelos
ratos (como está no filme A Boléia Pela
Galáxia, de 2005, dirigido por G.Jennings)?E se de repente tivéssemos que
conviver com oito mil ratos em nosso ambiente (como está no filme Indiana Jones e a Última Cruzada, de
1989, dirigido por Steven Spielberg)?
Referências bibliográficas:
1) Goida,
Enciclopédia dos Quadrinhos, L&PM, 1990, p.149
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