6 de abril de 2015

Prismas de um romance atual


             Anchieta Fernandes

             
            Depois de publicar um livro de poemas (~Tempos Humanos~, 1971) e dois romances (~Gestos Mecânicos”, 1983; e “Dotô, casa comigo?”, 2003), Ruben G.Nunes lançou (1) em agosto passado mais um romance. Desta vez, o que recebeu o título “O Ponto Oco”. Se nas procissões gregas da antiguidade, existia o sacerdote que conduzia o falo esculpido, o falóforo, Ruben é como um falóforo da pura religião hedonística presente no romance contemporâneo, já que a ritualística da composição de “O Ponto Oco” flue em uma só mijada, que está na página inicial e na última página. Ou seja: o gozo de mijar soma-se ao gozo de pensar literariamente, de imaginar um novo repertório do narrar potiguar de hoje.
            De observar, inicialmente, que a literatura criada por Ruben, além de bastante criativa no texto em si, estrutura-se também com bastante riqueza no uso de recursos gráficos ou tipográficos. Escrevendo uma espécie de prefácio-depoimento (2) no primeiro romance dele publicado, eu constatava o brilho inventivo da linguagem criada por Ruben, moderna com conotaçõesjoycianas, mas sugerindo possibilidades ainda não pressentidas, como a criação dos substantivos-verbos reiterativos no momento frásico: “cigarrotirei; cigarroacendi; cigarrotraguei”. Capta-se este novo romance rubeniano através de três indicadores de leitura: a forma de narrar, o conteúdo-enredo, e as idéias em discussão.
           É uma composição cinematográfica: o romancista organiza à sua própria maneira os fonemas ou expressões verbais, enquadrando para motivar o leitor em saber ler nova forma de narrar; traz temas que manipulam novas emoções dentro do comportamento contemporâneo, liberado para práticas sexuais livres das imposições familiares de antigamente; dentro das ações dos personagens, de repente uma parada para se soltar o verbo, discutindo idéias estéticas e morais de forma dialética, com reavaliações de estatutosfilosóficos clássicos. O filme, antes de ser mostrado, tem separados alguns de seus trechos para a publicidade explicativa de seu inteiro teor formal e conteudístico.
            Pois nos romances de Ruben em seu resultado-livro, cada capa é como um trailer. Diz o desenho da capa, e diz também a reflexão pura apresentando o objeto linguístico em tela. É sempre um título e sub-título. “Gestos Mecânicos”, em seu título letrísticoestlizado é “um romance urbanóide”. “Dotô, Casa Comigo?”, em seu selinhoindicativo de ter recebido o Prêmio Câmara Cascudo de 1992 defletido para cima, é “um romanceesquizóide”. E agora, “O Ponto Oco”, em seu procedimento de intercalar pontinhos no visualizar de cada letra do título, é “romance do ser-em-si fora-de-si”. Assim, partindo da consciência do urbano, passa-se ao psíquico esquizóide, mas o delta é a doxografia.
             Dentro, no texto, vai-se encontrar a virtualidade do ser-em-si: criatividade para o fora-de-si, para comunicabilidade. Diferente do comum, é verdade: onomatopéia se tornando substantivo – pixissa indo de mim; fragmentação por desalinhamentos – minhas/lem/bran/ças; quando coloca em uma frase só nós de nós deixa uma incrível abertura abertura à participação preferencial do leitor: nós somos somente de nós mesmos? Nós somos feitos de nós? Existem nós de nós? São os deuses e demônios da linguagem. “Tudo enganchado”, frase do autor à p- 13. Refonética da palavra mulher, que ao mesmo tempopoder-se-ia traduzir por molhada ou mula. Cortes. Conjunções vocabulares.
            Repetição (um quase gaguejar) de uma letra, é éé é, ou de uma palavra, Ela.Ela. Ela, e mais adiante ELA, completamente em maiúsculas, criativamente, quase uma objetivação, personificação do signo como representante idiomático das várias mudanças de lugar gráfico, ou de destaque da grandeza visual da imagem da amada. Tem mais: o escrever como se pronuncia: Vamulá. As ousadias do jogo de palavras surprendem a cada página. É o dar sentimento humano a um simples efeito químico-físico do ato de queimar o cigarro: Fumaceiransiosa. Não se pense que são reinvenções vocabulares sem sentido, sem função. A onomatopéiaZOOOOOOOOOOOM, com o resto dos “oos” em maiúsculas, acentua o acelerar do motor do carro.
              Estas pesquisas vocabulares envolvem o assunto principal, o argumento (se eu estivesse aqui analisando um filme), que documenta simplesmente o viver em sua totalidade a aventura do ser-em-si sexual, pleno na carnalidade em um fluxo torrencial das diversas variações da prática milenar, que resulta às vezes no nascer de novos representantes da espécie humana. Homossexualidade, infidelidade, e outros momentos do prazer desbragado.Decadência de valores? Doença da civilização contemporânea? Talvez sim – dirão os moralistas. Talvez não – dirão os que tem o pensamento mais liberal. Afinal, é o embelezar os mais crus momentos de práticas sexuais. É uma tradição na história da literatura mundial.
              Se Jean Cocteau afirmou: “Sempre gostei do sexo forte. Minha desgraça vem de uma sociedade que condena o raro como um crime e nos obriga a reformar nossas tendências” (3) – trazia uma queixa milenar contra a intolerância, que nunca condescendeu com todos os exemplos vindos desde os tempos bíblicos, da Índia, dos gregos, dos romanos. Já o grupinho de personagens à clef do romance de Ruben condescendeu na própria prática, exercendo o hedonismo, sem que a convenção de se ficar ligado apenas a um parceiro (a) tenha manerado as pulsões, que levam o escritor a criar verbos originalíssimos (“bundear”, por exemplo, para descrever o ato de fazer sexo pela via anal).
               Embora sem o intimismo religioso do Kama Sutra indiano (“ Quando a cortesã é requisitada por um amigo, ou é impelida por pena a ter relações com um brâmane instruído, um estudante religioso, um sacrificador, um devoto ou um asceta que tenha se apaixonado por ela e que pode estar por causa disso a ponto de morrer, ela pode, com isso, ganhar ou perder mérito religioso, o que é chamado de dúvida mista sobre ganho e perda de mérito religioso”); e sem a delicadeza das metáforas poéticas descrevendo partes do corpo feminino, no Cântico dos Cânticos hebraico (“Como você é bela, minha amada (...) Seus seios são dois filhotes, filhos gêmeos de gazela, pastando entre açucenas”), Ruben poetisa:
              “Há nele-Pedro, eu diria, uma tendência divina de amar a todas – numa espécie de missão comunitária (...) Energia pura especial, especulava ele, entre um copo e outro, o amor é conjunção de gênesis e apocalipse, no aqui-agora dos grandes amantes. Cada mulher, mesmo as chamadas mulheres de programa, segundo ele, tinham o sacro e o saco direito inalienáveis de viver e sentir um minuto que fosse daquela centelha inconsútil que não era só sexo de carne mas sobretudo sexo da alma. Para ele os olhos trepam e gozam, são os órgãos sexuais da alma (...).Assim pensava, assim agia, assim sentia, assim romanceava Pedro, por atacado, e a varejo. Pra ele, todas e cada uma perfazem a grande Ela”.
                O personagem Pedro tem possivelmente, segundo a técnica em à clef (onde os personagens de uma obra narrativa podem ser identificados, por características ou semelhança de nome, com pessoa da vida real) características do próprio Ruben, sendo o romance, em algumas de suas partes, lances autobiográficos. É o personagem proprietário de um apartamento, onde, à maneira das antigas repúblicas de estudantes, se forma uma confraria, sob o nome Ponto Oco, com uma inscrição numa parede, dizendo: “BENVINDO AO PONTO OCO! LASCIATI OGNI CONVENTIONI, VOI CH’ENTRATE... TUDO POR ELA ATRAVÈS DELAS!!!!...E VÁ FUNDO MANO!!!” Com a citação de Dante, o convite a ser anti-convencional quem for ao apartamento.
            Os amigos de Pedro são representantes de uma classe média que possue automóvel, piscina na casa ou apartamento, e vão lá ao Ponto Oco beber, fumar, praticar sexo (inclusive em, algumas vezes, sem os pudores de fazê-lo privadamente, e sim com o testemunho de outros), e discutir sexo e outros temas (já que têm também bom gosto, frequentam exposições de arte, lêem livros, estudam ou estudaram na Universidade, com alguns sobrevivendo da mal-paga tarefa de serem  ptofessores na Universidade). Também compartilham informações, bebem nos bares da moda, ao som de forró, meio alto ou meio baixo, dos carros, conversando com vendedores de rua, querendo saber detalhes da vida sexual deles e delas.
            Na verdade, em meio às intencionalidades transgressoras, o que os confreiros d’O Ponto Oco desenvolvem é mesmo o saber, desfrutando com suas sensibilidades à flor da pele, não somente da tentação que as mulheres significam, mas também, mas também dos momentos em que a beleza inspiradora flue de dentro da paisagem natalense, à visão da poeticidade dos pontoquianos. Assim, quando a lua cheia brilha lá fora, através da janela do Ponto Oco, é momento do narrador uma série de digressões sobre a lua, o luar, sobre a História (inclusive sobre a conquista da lua pelos humanos), e, ao som de “Anônimo Veneziano”, de Stevio Cipriani, tocado por Pedrinho Mattar, inspirar-se e luapoemar-se, ou seja, fazer um poema sobre a lua.
              Os encontros no Ponto Oco não são somente para se beber e fumar, comer tiragostos e paticar sexo; ali também germinam e frutificam idéias, se debate, se polemiza, se polissematiza-se. Segundo o texto na contracapa do livro,”Ponto Oco é, segundo o professor Pedro, o lugar onde se encontram todas as verdades e onde elas nada valem por si, mas somente no fluxo (in)finito de seus encontros, desencontros e de suas diferenças.” A partir da p.60, há uma releitura descontraída da História da Filosofia, chamando Hegel de louco, Kant de hipocondríaco, mas afinal concluindo que Filosofia é “a base de tudo.”
               Se debate sobre oconsumismo capitalista, sobre o ir-e-vir de amores e paixões, até sobre Deus e a fé, e a loucura (uma conjectura à p. 134: “Deus enlouqueceu e fez a gente”). O capítulo intitulado “Arte? Que arte?”, é nele o momento de aparecerem as opiniões estéticas do personagem Bruno Baroni, o único do grupo quetem um status financeiro acima dos outros, pois é um milionário; embora de uma categoria diferente: “é um milionário romântico” (p. 146), que, embora “pela posição social, em muitos momntos”, fosse “obrigado a representar um bom senso prático de manual, dentro da alma voava” (p. 147). Em Baroni, Ruben fez o retrato perfeito dos contempladores conformistas de arte.
              Vem à tona, nos debates do Ponto Oco, o que ali é chamado “arte-processo”, que para Bruno Maroni é “uma empulhação movida a erva.” E ele diz mais: “há muita falta de imaginação nessa forma de arte...tem umas coisas que são só tracinhos e rodinhas...” (p.168). Pessoas como Bruno Marroni não sabem ler a arte contemporânea. Porque, sob o disfarce do desprezo, tem medo da linguagem sinalética (tracinhos, pontos), porque acha-a incompreensível se articulatória de poemas visuais. Tudo que não compreendemos, que não reconhecemos na nossa escala de valores culturais, nos faz medo. Rejeitamos. Às vezes com raiva. Pensando que querem tirar nosso status de “dono da verdade”.
             No caso de tracinhos, rodinhas, pontos etc. são elementos da funcionalidade da signicidade comunicacional. Além de comporem cálculos matemáticos, desenhos para arquitetura, planilhas econômicas e estatísticas, código Morse etc., fazem parte da signo-visualidade da arte contemporânea. Gente como Bruno Marroni manipula tracinhos, rodinhas gráficas e pontos em sua documentação pessoal de vida (cheques, valores, números...números...números), mas não permitem que sejam elementos para a vida da arte. Bruno diz que na arte que ele “critica”, há !falta de imaginação, falta de sensibilidade, falta de técnica(...), será que a gente pode mesmo chamar isto de arte? Parece mesmo um lixo...”
             Em toda a parte do livro onde (possivelmente) o Poema/Processado é “criticado”, há uma visão falsa e preconceituosa, levando para deduções não válidas. Por exemplo, quando se fala sobre “um processo produtivo que na própria lógica gera uma aristocracia do consumo. Porisso esses carinhas da “arte processo” utilizam os próprios restos dessa superprodução mal distribuída...retalhos, pedaços, sucatas, aparas, pedaços de palavras, soltas, xingamentos...o lixo urbano” etc. Então, o texto “crítico” como a voz do personagem do livro confunde as serigrafiasde Andy Warhol e as colagens da popart com os poemas visuais do movimento Poema/Processo.
            Pode-se aliás fazer perguntas e perguntas:  como é que os “críticos” do livro vêem os pedaços de palavras, soltas, e os pontinhos intercaladores do título do romance? E os tracinhos e configurações geométricas abrindo cada capítulo/tempo do romance ‘Gestos Mecânicos”? São também lixo, merda? Ou são coisas “que dá pra engolir?”.  Porque, à maneira da opinião do personagem em relação a J.Medeiros, “a gente conhece” O personagem conheceo autor, e vice-versa. Eu também conheço o autor e J.Medeiros. E sei que são bons no uso criativo de arte. Produzem para a época dos computadores, não tendo repentinos ataques de burrice ou de falta de informação.
             Porque, saiba-se mais uma vez: a função da arte é acelerar uma nova visão, trazer o imprevisível, bater contra as expectativas de leitores contempladores, conformados, co-optados pelo sistema cultural. O nosso tempo exige poemas e outros objetos de comunicação à altura das mobilidades urbanas que se tecem e tecem os protestos de rua que vem sendo demonstrados em todo o mundo. E não telas paradas na parede para contemplação passiva dos figurantes das rodas do alto society. A arte não é uma ilha, é um arquipelago de várias ilhas diferentes entre si, e cada ilha, sem pretender  voltar às épocas coloniais, é um eficaz como pátria de sua época. Cabe dizer as imagens da época, e não as imagens de um passado morto, somente contempláveis em museus para turistas.

NOTAS
1.       Ocorreram dois tipos de lançamento: um grupo de escritores compareceram a um evento onde Ruben lançou o livro ao mar (lembrança do seu tempo de Oficial da Marinha brasileira). E outro lançamento na Livraria Nobel, da Av. Senador Salgado Filho.
2.       Eu fui incluído como personagem do referido romance, com o meu nome mesmo.

3.       Jean Cocteau. Le Livre blanc. Publicado anonimamente em 1928, com reedições também anônimas em 1930 e 1935.

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