6 de abril de 2015

O BECO DA LAMA, EM 1501




Franklin Serrão



Impressionado, é como lembro da primeira vez que o vi e venci, corajosamente, todos os seus obstáculos que estavam a me interromper de buscar em seus caminhos, novos conhecimentos. Sobre ele, caminhei pelas suas ruas, que tampouco, tinha calçamentos nem pavimentos de asfalto; entre isso, enfiava meus pés nas suas areias fofas, quentes, que, sobre elas, transpunha as primeiras léguas de distância, onde das quais, driblava como um craque, tanto a fauna faminta quanto sua flora melindrosa. Estou falando então, de um lugar que bem antes dos poetas e das hebdômadas hostis de cada esquina, existia e seria lendário; quando o conheci, ele ainda vivia adormecido sobre uma vegetação rasteira e úmida, da qual, fazia um berço que o ninava... era um gigante, mas porém, entre aguapés secos e maceiós, ainda espreguiça-se e como uma criança, era na preguiça do seu engatinhar ao acordar que o via. As areias finas de grãos polidos pelo vento, era seu berço, sua casa, sua natureza primeira que, ao seu modo, tanto me encantava. Ao seu lado, via que além de tudo, ele era também terra de lobos vermelhos, leões de todas as cores e tamanhos, veados voadores, peixes que andavam e cavalos que nadavam. Com ele, era em sentidos de mares imprevisíveis, que eu o esperava e atento então, contava as horas para a chegada do dia em que finalmente esse gigante acordaria para, de outro modo, deixar de ser só isso, e, crescer para além desse ventre ecológico de ecossistema gramados e restingas de areias brancas livres e esvoaçantes. Isso foi o Beco da Lama um dia.
Pela segunda vez que o vi, senti uma alegria incomum, pois então, aquela rotina teimava em surpreender-me, e sequer, de outra maneira se podia ser, pois, quando perdermos nossos corações e mentes, perdemos para a alegria furtiva dos festivos agrados; e por lá... além dos dramas e tragédias, dos planos comuns, havia alegria e a festa era majestosa nos seus palcos livres, nas suas arenas do povo e da alegria.
Nessa ordem absurda, eu chegava e logo em seguida, via promove-se na minha frente, os mais intrigantes e absurdos acontecimentos; notava ansiosamente que aproximadamente à meia légua da desembocadura do grande rio, estava um grupo de mulheres, jovens e belas, que observavam meu caminhar lento, pela praia. Era certo que em minha direção, elas se promoveram para alcançar-me, e, ao menos, nesse passo majestoso, curto e ligeiro, delas, eu me via a ser, o quanto antes, próximo das felizes, que sobre mim, estavam ansiosas por chegar.
Ao alcançar-me, elas começaram a tocar-me e desse modo, seus braços e ombros esbeltos, alegremente, estudavam milímetro por milímetro do meu corpo. Surpreso, fiquei na ora corado de vergonha, porque fazia muito tempo que não via uma mulher, e então, procurei afastar-me discretamente, pois, era um momento muito escatológico no sentido de seu ineditismo; tampouco estava muito a vontade com aquilo tudo, de maneira alguma, aquilo parecia algo normal ou desprovido de ameaças. Contudo, mesmo antes de somar alguns passos, para afastar-me dessa ameaça, elas me cercaram e começaram a tocar-me novamente. Dessa vez, seus sorrisos largos e seus pudores nus, davam boas vindas e prometiam muito, muito mais. Em torno de mim, as belas mulheres giravam; a minha frente, podia me certificar de como eram lindas de corpos perfeitos. Amigáveis, não ligaram para o meu aspecto asqueroso
que tinha depois de muito tempo num navio.
Sem dúvidas, que tratava-se de um grupo de índias jovens que como objetivo, caçavam humanos, pois, em vista disso, sabemos que os primeiros habitantes Dalí, era canibais; ou seja, comiam carne humana, comiam gente.
Sem saber disso direito, nem do que estava acontecendo, certamente, não tentei fugi, não reagi, não resisti, entreguei-me e enfim, fora capturado.
Medo, euforia, prazer, dúvida? Não sei ao certo o que era, aquele coquetel de emoções; só me lembro que de uma maneira, meus cabelos crespos aprisionavam suas mãos macias e quando isso acontecia, elas puxavam seus dedos e doía muito. De uma mesma maneira, elas tocavam meus pudores, amassavam meu órgão frágil e antes de tudo acabar então, eu apenas desfrutava, pois, sem nada expressar, nem nada presumir, acreditava no fundo que aquilo tudo não poderia ser real. Foi então que tudo escureceu de vez.
Quando acordei, estava amarrado pela cintura e nos meus lábios, o gosto adocicado de uma bebida embriagante fazia de tudo aquilo, algo mais misterioso, amargo e fenomenal. A essa altura, meus olhos estavam embaçados e via o mundo tosco ao meu redor. Salamaleques a parte, não era meu dia de sorte.
Aos poucos, a embriaguez do momento transformou-se em lucidez, meu corpo relaxado, ignorava da dor e mesmo com um tremendo galo na cabeça, não sentia nada por causa da bebida. No entanto, nada impedia de ver aquelas mulheres e homens, nus, dançando e consumindo exaustivamente o então, o precioso néctar.
Ponderado, via então uma multidão, que pintados e emplumados, com instrumentos de sons, enfeitados, produziam um ritmo dançado por toda a tribo.
Comovido, também notava uma multidão de corpos cobertos por penas brancas e cocares de penas vermelhas que puxavam uma enorme fila indiana. Fila que se estendia por
centenas de metros. Ela dava voltas no entorno da aldeia e num mesmo ritmo, numa marcha poderosa, faziam todos cantarem e beberem. Certamente, tratava-se de uma cerimônia ritualística onde toda a comunidade se fartava de bebidas alucinógenas e consumiam carnes e frutas. Festa onde, coletivamente, todos participavam em busca de sua apoteose de sensações; uma mistura de todos os sabores que faziam desse ritual coletivo uma realidade forte ---- a verdade mais próxima do prazer.
Eu participava parcialmente da festa, já tinha bebido muito, mas sequer, tinha comido alguma coisa. Como um peru de fim de ano, estava podre de bêbado e temia que desse modo, fosse ser o prato principal.
Assustado, via então um homem enorme que segurava um pau igualmente grande que estava estendido por trás da sua cabeça; em posição de ataque ele ameaçava acertar-me com aquilo. E, em minha direção, apontava sua arma; em meio a isso, logo percebi que estava sobre ameaça, mas, no entanto, com uma corda amarrada à minha cintura nua, não podia reagir, sabia que a corda roubava-me o fôlego. então, aí, o grande índio ergueu seu tacape em minha direção e disse:
---- Orerunhamandú tupã oreru!
Em seguida, sem remorsos nenhum, acertou um golpe mortal e pronto, estava morto... e foi assim que comeram minha carne moqueada e junto a outras ervas, fizeram uma papa de mandioca com ela. Coisa de banquete de ritual.
Fui devorado para ser eterno entre eles. Para ser um deles, para viver entre eles; entretanto, de uma outra forma, pesa, sob uma única condição, um pequeno fardo. Em troca da eternidade de minha alma, uma maldição guiará esse espírito errante pelos tempos; sem escolhas, sempre que quiser voltar, terei que voltar no mesmo lugar; isto é, todas as vezes, ao nascer, viverei e fenecerei, no mesmo canto, no Beco da Lama;



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