13 de fevereiro de 2019

Imprensa Feminina No Rio Grande do Norte Uma história a ser contada


Constância Lima Duarte e Diva Cunha Pereira de Macêdo

Em 1993, quando revirávamos bibliotecas e arquivos em busca dos traços mais remotos da produção literária feminina do Estado, fomos surpreendidas com notícias da existência de inúmeros jornais e revistas dirigidas e compostas exclusivamente por mulheres. Essas publicações evidentemente pretendiam legitimar uma produção intelectual, na medida em que se colocavam enquanto um espaço legítimo de veiculação de trabalhos literários.
Assim, de uma pesquisa em andamento, uma outra nasceu. Buscávamos o corpus da literatura de autoria feminina no Rio Grande do Norte, e encontramos o meio utilizado pelas autoras para a divulgação de seus escritos. Aos poucos, juntando informações como quem junta um quebra-cabeça, reunimos títulos, datas e alguns nomes das que primeiro por aqui tentavam romper barreias sociais e ensaiavam investidas no espaço público.
Anteriormente tínhamos encontrado a notícia de um jornal chamado Primavera, que havia sido publicado por um certo senhor Custódio L. R. d”A em Açu, no ano de 1875, e que se dirigia “às caras e inestimáveis leitoras”. Os jornais e revistas dirigidos por (e para) mulheres apenas começam a surgir no início do século, como A Esperança, que circulou entre os anos de 1903 e 1908, em Ceará - Mirim, e que surpreende por ter sido todo ele manuscrito! O fato de não ter acesso às tipografias não impediu que Dolores Cavalcanti e Isaura Carrilho se investissem do papel de redatores registrassem, numa caligrafia caprichada, as veleidades literárias das jovens de seu tempo. Aquelas moças provavelmente estavam impelidas pela esperança de um dia também elas serem reconhecidas enquanto escritoras...
Anos depois, em 1913 em Macau, surgiu (devidamente impresso) a Folha Nova, dirigido inicialmente pro Alexandrina Chaves e depois por Maria Emília e Joana G. Sampaio. Eram suas colaboradoras Leonor Posada e Olda e Dulce Avelino, conhecidas poetisas de seu tempo. Em Açu, de 1917 a 1919, circulou O Alphabeto sob a direção de Maria Antônia de Morais, com a colaboração de Cecília Cândida Silva, Maria Leitão e América de Queiroz e Palmyra Wanderley. Em Macau encontramos também notícias do jornal A Salinésia, de 1926, criado por um grupo de jovens e que era apresentado oralmente (!) no Teatro Moderno. Em Caicó, neste mesmo ano de 1926 circulou pela primeira vez o Jornal das Moças, dirigido por Georgina Pires e Dolores Diniz. As colaboradoras assinavam seus textos sob os pseudônimos de Marinetti, Potiguara, Violeta, Flor de Liz, Helenita, Sertaneja, entre outros. E em Currais Novos existiu O Galvanópolis, de 1931 q 1932, sob a direção de Maria do Céu Pereira.
Em Natal, a primeira iniciativa parece ter sido Via-Láctea,  idealizada e dirigida por Palmyra e Carolina Wanderley, que circulou durante os anos de 1914 e 1915. Além dele encontramos ainda em Natal os jornais Sursum, de 1937, O Potiguar, de 1939, entre outros.
Vejamos esta publicação intitulada Via-Láctea. Após tê-la procurado nas principais bibliotecas públicas e particulares de Natal e do interior, sem sucesso, fomos encontrá-la na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em meio a outros periódicos de mesmo nome, de locais e épocas diferentes. Ali estava, em nossas mãos, a mesma Via-Láctae de Palmyra e Carolina Wanderley que numa estrelada noite de 1914 havia surgido nos céus potiguares. Eram apenas oito números – de outubro de 1914 a junho de 195 – mas o suficiente para testemunhar a iniciativa daquelas moças de também participar do espaço público.
Como no oitavo número uma das redatoras reclamava da pequena participação das colaboradas, julgamos que a publicação tivesse terminado aí. Mas pesquisas posteriores, principalmente em A República, revelaram que mais alguns números – pelo menos uns quatro ou cinco – foram publicados de Via-Lácea. Aliás, encontramos em A República referências a praticamente todos os números do jornal. Cada novo lançamento era noticiado, sendo que algumas vezes com veementes elogios à coragem de suas autoras e à qualidade o Material impresso.
Mas nem tudo eram flores para as jovens redatoras. No mês que comemoravam um ano da existência do jornal, por exemplo, encontra-se o comentário de um jornalista que nos permite perceber com nitidez a resistência que enfrentaram, as críticas e uma certa descrença no trabalho que realizavam. O autor da nota confessa abertamente sua surpresa pelo fato de a Via-Láctea ter conseguido sobreviver tanto tempo, nestes termos:
A Via-Láctea festejou ontem o seu primeiro aniversario. Não nos queriam mal as redatoras da simpática revista por lhes dizer que nunca acreditamos na realização deste milagre. Sempre pensamos que uma revista de moças, redigida exclusivamente por moças, terá em nossa terra a prematura existência das rosas Não havia nesse pressuposto sombra de desconfiança na inteligência e boa vontade as colegas que revelaram, dês da publicação do primeiro número da Via-Láctea, qualidades à altura da espinhosa iniciativa. O nosso receio provinha do ambiente intelectual indígena, dessa indiferença de natal para manifestações artísticas, tidas como desnecessárias à vida da cidade. (A República, 26/10/1915)
Esta confissão de pouca fé na sobrevivência da revista, devido principalmente ao fato de se tratar de uma publicação feita por mulheres, encontra-se também em outros artigos. Da mesma forma, a confusão entre as autoridades e o seu trabalho através do emprego sistemático de expressões concernentes às qualidades esperadas ou desejadas para s moças. Assim, para a maioria dos jornalistas, a Via-Láctea era sempre “mimosa” “encantadora” e “gentil”, numa flagrante feminização do periódico que lutava par se impor enquanto trabalho sério, e que se propunha lutar pelo aperfeiçoamento intelectual da mulher potiguar.
O primeiro grupo de colaboradoras foi constituído por oito moças da melhor sociedade  letrada de Natal, como Palmyra e Carolina Wanderley, Stella Gonçalves, Maria da Penha, Joanita Gurgel, anilda Vieira, Dulce Avelino e Cordélia Sílvia e Sinhazinha Wanderley. A forma como se dava a colaboração de Cada uma com certeza era diferenciada, pois é comum encontrar um número maior de textos assinados por algumas no mesmo periódico, enquanto outras aparecem apenas com um artigo ou poema. E logo no segundo número Palmyra e Carolina Wanderley assumem a coordenação geral dos trabalhos.
Um dos graves problemas que uma pesquisa como esta costuma enfrentar è justamente a identificação dos pseudônimos, que terminam por funcionar como verdadeiras máscaras que se multiplicavam sempre em touros e novos nomes. O uso do pseudônimo, aliás, foi um artifício muito utilizado pelas mulheres nos séculos passados, e mesmo nas primeiras décadas deste, como forma de se proteger e de preservar os familiares da exposição pública e da crítica. Adentrar pelo campo literário (ou o jornalístico) naqueles tempos era uma atitude decididamente audaciosa para qualquer mulher, por mais competente ou talentosa que fosse. E no Rio Grande do Norte não era diferente.
Assim, apesar de a Via-Láctea trazer na primeira página os nomes de suas autoras, os textos estão quase sempre assinados por outros nomes, como Fanette, Mércia, Marluce, Hilda, Nídia, Zanze, Myriam, Ida Silvestre, Ângela Marialva, Violante do Céu, Jandira, etc. etc, totalizando cerca de vinte e cinco pseudônimos. Quanto ao teor dos escritos o subtítulo “Religião, Arte, Ciências e Letras” aponta para seu conteúdo.  Predominam poemas, contos e crônicas, em meio a comentários obre arte, descobertas científicas e matérias sobre o papel da educação na formação das moças.
Encontra-se nas páginas da Via-Láctea, inclusive, uma polêmica entre duas colaboradoras Acerca da educação que devia ser ministrada à mulher, que bem deve revelar as opiniões conflitantes sobre o tema que circulavam na época. Uma defenda educação voltada para s funções domésticas; a outra por acreditar na emancipação feminina através da educação, exige uma educação mais consistente que permitisse à jovem competir com o rapaz no campo de trabalho. Aliás, esta discussão devia estar na ordem do dia pois, acabava de ser inaugurada na cidade, com muita pompa e circunstância, a Escola Doméstica, cujos diretores alardeavam que sua proposta educacional representava a Última palavra na Europa em educação de meninas...
Em matérias de jornais, um cronista que costumava assinar “Jacynto” (e que não era outro senão Eloy de Souza, irmão de Henrique Castriciano, o fundador da Escola Doméstica) refere-se de modo desabonador ao Via-Láctea  e defende a função social da mulher preconizada pela nova escola. Não deixa de ser bem significativo, comparar o nome do jornal que veiculava as idéias da Escola Doméstica. “O Lar”, com ao da revista “Via-Láctea”: enquanto um refletia nitidamente os limites domésticos de seu horizonte de atuação, outro adotava um título que bem pode ser considerado a prova contundente de que maiores e bem mais elevados era os seus ideais.
Estas questões, aqui aprestadas tão ligeiramente, refletem apenas nosso desejo de incentivar outros pesquisadores para o estudo da participação das mulheres potiguares na história intelectual do Estado. Se queremos realmente conhecer o difícil trajeto percorrido por nossas antepassadas na busca de seus direitos e na conquista de seus espaços, será preciso pesquisar em antigos jornais e revistas. Lá com certeza ainda encontram-se ainda hoje o eco de suas vozes.

Transcrito do Jornal Cultural “O Galo” de junho de 1997.


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