26 de dezembro de 2017

Marcelus Bob em alta voltagem (mas não dá choque)


Foto: divulgação

Paulo Jorge Dumaresq

“Eu sou rockeiro, cara!”, foi o mantra repetido quase que exaustivamente pelo artista plástico, grafiteiro, rockeiro e possibilista, Marcelus Bob, em sua casa-atelier, tatuada com o número 757, na rua Gonçalves Ledo, Cidade Alta, no decorrer da nossa conversa. Atrasado 25 minutos, cinco a mais do que o repórter, ao “adentrar o recinto” dá boas-vindas e pergunta se vai tudo bem. À minha chegada, a primeira-dama Nilza, preocupada com a demora do marido, informara que ele saíra antes do almoço e até 15h20 de uma quinta-feira de calor africano, ainda não dera notícia. Liga para o Sebo Vermelho, de José Abimael Silva, e nada de Marcelus Bob. Até que, enfim, ei-lo.
Nas preliminares da entrevista, a primeira experiência sonora é o álbum Hot Rats, de Frank Zappa. Claro ficou que eu não estava na frente de uma pessoa formal. Nem normal. Uma entidade, talvez.  “Coloque que a entrevista foi paga”, sugere. De repente, cantarola a música Salve a Mulatada Brasileira, de Martinho da Vila, mas ressalva que só recebe repórteres ouvindo rock and roll. A entrevista começa “oficialmente” ao som do álbum Cheap Thrills, da banda norte-americana Big Brother & The Holding Company, apresentando Janis Joplin nos vocais.
Pergunto ao artista de 50 anos se Marcelus Bob existe mesmo ou é uma possibilidade prática. “Que é fictício, é, lógico. No entanto, é holográfico e possibilista, senão nas esquinas ninguém encontraria”, manda ver. Apuro como tudo começou e Bob se esquiva de comentar sobre a gênese de sua trajetória artística. “Eu não sei como nada começou, porque se alguém souber como escolhe a profissão me avise. Não sei nem pra onde vão essas coisas. Só sei que existe muita coisa, até porque Let’s Spend The Night Together”, cita o velho hit da banda inglesa Rolling Stones.
Para homenagear o quinteto inglês de rhythim and blues, fazendo justiça à sua condição de rockeiro, captura o violão folk e executa Time Is On My Side, outro standard stoniano. “A coisa que eu mais curto é rock and roll. Não tem pra onde correr”, reforça. Tento desvirtuar Bob de seu transe rockeiro, pedindo para ele contar como foi a sua passagem pelo atelier da antiga Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (Etfrn), hoje Cefet, e a influência de Thomé Filgueira na sua arte.
Parece que consigo tirá-lo temporariamente do mundo dos acordes dissonantes e ele responde, pelos mil alto-falantes, que por lá passaram grandes artistas plásticos de renome em Natal, mencionando Carlos Sérgio Borges, César Revoredo e João Natal. “Isto foi pela possibilidade do profeta Thomé Filgueira dar liberdade às pessoas que no momento tinham artes plásticas no sangue”, anota.
Na sua visão, Filgueira não influenciou ninguém. Ele apenas falava a verdade e outras tantas coisas a respeito de liberdade. Tento arrancar do artista quem ele admira no mundo pictórico: “não admiro ninguém. Eu nem me auto-admiro”, dispara. Diz que quem o influencia é o ser humano. Quando acorda glorifica Jesus, Maria Santíssima, Deus e Paramahansa Yogananda. Ao cabo da resposta, Janis Joplin canta Piece Of My Heart. Indago como ele se define enquanto artista plástico. “Rapaz, no dia em que eu me autodefinir como artista plástico é porque foi nesse dia que eu abandonei o planeta. Obrigado. Peace and love. Eu sou assim meio espiritual e místico. Porque eu rezo para a Igreja Católica, para os crentes e para os hare krishna”, concilia o ecumênico artista.
Não soube dizer quantas exposições individuais e coletivas realizou. Só lembra que a primeira foi em 1980, no Sesc Centro, dividindo o espaço e as atenções com Kézia Souza Chagas. Desde então já desenvolveu 25 temáticas distintas, divididas em séries. No total, são mais de cinco mil obras. “É muita produção”, gaba-se.

Música

Agora tento desbravar o lado musicista de Marcelus Bob. Afirma que não é músico. É rockeiro. E pede ao repórter para citá-lo como tal. Na alta voltagem da entrevista, canta em alto e bom som a capela de Perfect Strangers, clássico da banda britânica Deep Purple. Pegando carona no surto, inquiro em que momento a música surge na vida dele. “A minha mãe cantora de coral soprano cantava para me ninar embaixo da Pedra do Rosário, às margens do rio Potengi, cara. Eu gostaria de ser um músico, mas o meu pai me dizia que homem que vivia para cima e para baixo com um violão debaixo do braço vira cachaceiro. Aquilo me deixou debilitado psicológica e musicalmente”, confessa, para, em seguida, dizer que as suas cores são as da música.
Conforme o artista, toda vez que vai iniciar um trabalho pictórico, a primeira providência é escolher uma obra musical para ouvir, de acordo com o tema a ser desenvolvido. “Artes plásticas é muito musical. A diferença que tem da música é que é pictórico, é imagem. No entanto, é tudo música. No dia em que as cores deixarem de ser música, vai se acabar a música ou as artes plásticas. Vai ser bem louco. Muita gente vai sofrer. Já pensou o mundo sem música ou artes plásticas? O que seria da humanidade? O que seria das plantas?”, indaga.     
O Grupo Escolar ensina o quê? A resposta vem na ponta da língua: “quando você se matricular ficará sabendo”. Aproveitando o momento musical, questiono se rock é rock mesmo ou uma farsa bem montada. Bob, mais uma vez, desconcerta o repórter: “no dia em que você tirar as dúvidas venha aqui e me avise, por sua gentileza. Aí, falaremos a respeito disso”.
Da vida pessoal e da família não quis falar muito. Mas deixou escapar que se chama Marcelino. E só. Insisto e Marcelus Bob reage dizendo que família é assunto “impugnado”. Mesmo assim, arranco dele que tem três casais de filhos e um casal de netos. Investigo quantos casamentos: “nenhum casamento. Só amores”.
A herança que o pai deixou foi o legado das cores. Nascido no Assú, o progenitor, que tem o apelido de “zepelim”, pintava aviões, além de fazer repentes. De olho no ofício do pai, iniciou carreira experimentando o esmalte sintético. “Filho de uma cantora de coral e de um pai repentista, nascido nas margens do rio Potengi e criado no morro de Mãe Luíza, o currículo é enorme”, desaba no riso, aproveitando para cantar My Generation, do The Who, com seu inglês macarrônico.
Indagado sobre os salões de artes plásticas em Natal, Marcelus Bob ironiza, soltando a percuciente língua: “E existem salões de artes em Natal, atualmente? Não estou sabendo de nenhum”. Insisto e ele diz que os salões natalenses são paliativos de péssima qualidade. Ainda pergunto ao artista como tem observado o papel das fundações culturais no apoio e fomento à cultura no RN. Marcelus sai-se com essa: “Você está sendo muito benevolente. Ainda existe papel? Papel Gomes?” Depois da troça, volta a interpretar furiosamente My Generation.
Continuo a entrevista, inquirindo o artista se ele é um homem realizado. A resposta não mais me abala: “no dia em que eu me auto-realizar avisarei pra vocês, dentro de um caixão”. Agora é a vez de interpretar no violão Vicky e Homesick Again, do álbum Close Enough For Rock’n Roll, da banda escocesa Nazareth. Mais adiante, executa a canção The Rain Song, do Led Zeppelin, justificando a sua fama de rockeiro.

Grafites

Os grafites nos muros de Natal também estavam na ordem da entrevista. São humanóides, urbanóides e paranóides, que tatuam as paredes da cidade em intervenções urbanas. “Deixe eu mostrar o álbum pra você”, vomita gentileza. Para Bob, em todas as “concepções analíticas e sociais do ser humano” é cabível o sufixo “óide”. Na medida do possível tem registrado os trabalhos nas artérias de Natal, porque, segundo ele, no Rio Grande do Norte  artista paga para trabalhar. Tento perguntar sobre reconhecimento e ele corta cantarolando I Can’t Get No (Satisfaction), dos Rolling Stones.
Recuperado da intempestividade marceliniana, quase exijo do artista fazer uma avaliação da trajetória dele nas artes plásticas norte-rio-grandenses. No início, até que responde com alguma lucidez: “eu pessoalmente não faria nenhuma avaliação. Prefiro que a opinião pública faça. Agora, quem é bonito é bonito. Quem é feio, Zidane; ou então, faça gols”, cita o seu jargão mais célebre. Quase concluindo a entrevista faço uma pergunta clichê a Marcelus Bob. Tudo valeu a pena? “Claro que valeu. Tá valendo, porra, não tá vendo, não?”.
Não satisfeito com as respostas a respeito do Grupo Escolar, volto à carga e descubro que a banda existe desde 1982, com longos períodos de hibernação. Marcelus Bob ressalva que não adianta falar sobre o Grupo Escolar porque o sucesso é tanto que está sufocando-o. Emenda dizendo que quando a banda anuncia apresentação a audiência vai ao show sabendo que algo diferente vai acontecer. Atualmente, o Grupo Escolar apresenta o próprio Marcelus Bob, nos vocais e guitarra; Leão, no baixo, e Glauco Rocha, na bateria. Em sua análise, esta é a melhor formação da banda em todas as épocas. Para saudar o trio, engata uma marcha de velocidade e executa a música Táxi.
Na concepção do artista, não houve evolução na sua técnica dos tempos do esmalte sintético para a tinta óleo. Em verdade, o que houve foi uma troca de materiais. Também disse que não nasceu pronto. Nasceu, sim, apto a receber mensagens cósmicas com o escopo de transmitir para a raça humana as tais mensagens, por meio de imagens. Em relação à cidade onde nasceu e vive, pensa que Natal não é uma cidade careta. Pelo contrário. Entende a “noiva do sol” tão cosmopolita que chega a não possuir identidade própria. Nem nas artes. Cita a frase de Tadeu Sales: “Natal é um quartel-general mal-iluminado”.
Nos estertores da entrevista, solicito a Bob citar artistas e intelectuais que são imprescindíveis para Natal. Depois de tergiversar, nomeia-se e menciona ainda os também artistas plásticos Marcelo Fernandes e Josef Helmut Cândido, o videasta Augusto Luís, o editor José Abimael Silva, o poeta e performer Plínio Sanderson, o promoter Julio César e o punk letrado Sopa d’Osso. Isso posto, canta o poema Rosa de Hiroshima, de Vinícius de Morais, imortalizado pela banda Secos & Molhados. É o fim.

 Texto publicado no Suplemento Cultural "Nós, do RN" dezembro de 2008

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