2 de agosto de 2016

ENCONTRO COM EDGAR MORIN O PENSAMENTO COMPLEXO: NOVA ÓTICA DO SABER

                           

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Nelly Novaes Coelho
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Recentemente (maio pp.) o Brasil, mais uma vez, teve o privilégio de conviver com a instigante figura de intelectual, que é o sociólogo francês Edgar Morin, considerado hoje um dos pensadores mais fecundos e polêmicos da intelectualidade europeia.
Convidado pela Associação Palas Athena, com apoio de outras instituições culturais (PUC-SP, GRECOM-Grupo de Estudos da Complexidade da UFRN em Natal e Folha de S. Paulo), Edgar Morin cumpriu uma agenda compacta (encontros, mesas redondas, workshops, entrevistas...), tendo estado em contato com auditórios repletos, avalanches de perguntas e questionamentos os mais diversos, a que, com a sorridente boa vontade e agudíssima lucidez de sempre, ele respondeu, debateu ou rebateu...
Diretor Emérito do Centre National de La Recherche Scientifique; co-Diretor do Centre d’Études Transdisciplinaires e Presidente Fundador da Association pour la Pensée Complexe, em Paris (a qual já conta com 87 Institutos e Universidades associadas, no mundo inteiro), Edgar Morin é hoje reconhecido como um dos mais atentos estudiosos das transformações culturais e científicas de base, que estão em acelerado processo de expansão em nosso mundo.
Autor de mais de 50 livros publicados, Edgar Morin tem traçado sucessivos painéis da vida contemporânea, analisando argutamente a gradativa “pauperização cultural” que se apossa do mundo e defendendo a urgência de os intelectuais ultrapassarem a antiga alternativa: “engajamento político” ou “alienação na torre de marfim”, para se empenharem num trabalho de auto-conscientização em relação ao papel que lhes cabe cumprir, de fecundadores de mentes. Como diz:
“Ser intelectual é se auto-instituir como tal, isto é, dar-se uma missão, uma missão de cultura, uma missão contra o erro (do passado e do presente), uma missão de consciência pela humanidade”.
(Meus Demônios, 1997)
Daí seu próprio exemplo de viajar infatigável pelas “sete partidas do mundo”, empenhado em debates ao vivo, com pesquisadores dos mais diversos campos do conhecimento (das ciências exatas às humanas e sociais), propondo-lhes a análise do nosso mundo-em-mutação, a partir de uma nova ótica: a do pensamento complexo. Isto é, do enfoque não-comprometido, mas abrangente e global do real; e que tem o homem (ou a condição humana) como centro, eixo ou alvo principal.
É nesse sentido que ele próprio vem trabalhando nas mais diferentes áreas do saber: sociologia, antropologia, ecologia, política, economia, ciências exatas, comunicação, literatura... empenhando-se em denunciar o que ele chama de paradigmas perdidos (perda que deixou a civilização ocidental à deriva) e a detectar os possíveis paradigmas emergentes que, sem dúvida, estão em germinação e um dia serão as bases do Novo Sistema que, necessariamente, surgirá no Terceiro Milênio.
Dentre os mais significativos paradigmas emergentes (que vêm sendo detectados pelos mais diversos campos de pesquisa), Edgar Morin distingue o pensamento complexo - o pensamento abrangente (e sua visão ecológica) que deve substituir o paradigma clássico (com sua lógica seletiva e ordenadora), na medida em que a complexidade do mundo atual, tal como ele vem sendo descoberto em todas as áreas do conhecimento (nos rastros da física subatômica, da microbiologia, da mecânica genética, etc.) é o grande desafio a ser enfrentado pelo mundo pensante. Desafio lançado ao intelectual consciente, pelos paradoxos ou contradições (ordem/desordem, parte/todo, singular/plural, particular/coletivo, acaso/determinismo, masculino/feminino...) que se manifestam, amalgamados, em todos os fenômenos do mundo atual, seja no âmbito dos estudos mais avançados, seja nos quadros do nosso cotidiano, dominado pela parafernália dos multimeios de comunicação, em plena expansão. Em suas próprias palavras:
“... o desafio da complexidade se intensifica no mundo contemporâneo. Estamos, com efeito, em uma época de mundialização, que constitui a nova etapa da era planetária, começada em 1492 (quando Colombo descobriu a América e o planeta Terra foi definitivamente descoberto). Isso significa que todos os processos locais resultam, à sua maneira, de processos mundias que, por sua vez, resultam de processos locais. Esse desafio significa também que cada um de nós deve retomar, no coração de sua condição individual as grandes interrogações sobre a condição humana: Quem somos nós e onde estamos? Quem fomos e de onde viemos? Quem seremos e para onde iremos?
É preciso que todos juntos enfrentemos esse desafio, a fim de religarmos em seu contexto e em seu conjunto global, a economia, a demografia, a ecologia, o desenvolvimento, a educação, a tecnologia, a solidariedade e a humanização do trabalho, a bio-ética e a política. A inteligência da complexidade tornou-se vital, isto é, sua ininteligência arrisca a ser mortal para a humanidade”. (Apresentação do Congrés Inter-Latin pour La Pensée  Complexe (CILPEC) a se realizar no Rio de Janeiro, de 8 a 11 de setembro.pf, na Universidade Cândido Mendes, com apoio da UNESCO).
Enfim, as análises feitas por Morin mostram à saciedade que o que antes era visto como resíduos não-científicos das ciências humanas (a incerteza, a desordem, a contradição, a pluralidade e a complicação) hoje fazem parte da problemática do conhecimento, seja no domínio das ciências exatas, seja no das humanas e sociais. Nesse sentido, é de se notar que o paradigma (ou pensamento científico) clássico (nos rastros de Descartes e da mecânica de Newton) se fundava na certeza de que a complexidade do mundo-dos-fenômenos podia ser estudada e explicada a partir de princípios simples e leis gerais. Método que, na realidade, diluía a complexidade aparente dos fenômenos para revelar a simplicidade oculta das leis imutáveis da natureza.
Está evidente que essa postura metodológica propiciou o espantoso avanço que as ciências e a tecnologia conheceram desde o século XIX, até bem entrado o nosso século. Entretanto é preciso reconhecer que, de certo momento em diante, suas próprias descobertas (devido aos excelentes frutos que deram) acabaram por extrapolar dos limites impostos pelo método inicial e exigir um novo método de pensar o mundo e de investigar os fenômenos que desafiam o homem. É nessa linha que se situa Edgar Morin, ao reivindicar a ótica proposta pelo pensamento complexo. Ótica que recusa in limine o paradigma clássico, na medida em que este acabou por isolar os fenômenos em “compartimentos estanques”, gerando em consequência as especializações tal como hoje as conhecemos, seja no âmbito das profissões, seja no dos métodos de pesquisa e de conhecimento.
É contra essa incomunicabilidade entre os diferentes campos de conhecimento, que o novo conhecimento-século XX se insurge. É indiscutível que, com a descoberta da complexidade da matéria, no nível atômico e subatômico ou na realidade cósmica, a ciência-século X tornou obsoletos os paradigmas clássicos que, entretanto (na maioria do mundo pensante e na vida prática) ainda continuam vigentes. É contra essa imobilidade intelectual, que se insurge Morin, ao reivindicar uma nova consciência que dê conta da complexidade patente em nosso mundo atual. Tornando mais explícito o pensamento ecológico que o orienta e que o leva a aproximar as ciências exatas das ciências humanas e sociais, Morin diz:
“... As ciências humanas não têm consciência dos caracteres físicos e biológicos dos fenômenos humanos. As ciências naturais não têm consciência de sua inscrição numa cultura, numa sociedade, numa história. As ciências não tem consciência do seu papel na sociedade. As ciências não tem consciência dos princípios ocultos que comandam as suas elucidações. As ciências não têm consciência de que lhes falta uma consciência...”
(in Ciência com consciência. 1996)
É contra essa inconsciência ou incomunicabilidade que Morin se volta, pois os tempos exigem uma nova vivência do real. Obviamente, Morin não se insurge contra os especialistas, nem contra as especializações tout court (o que seria absurdo em um mundo tão complexo e diversificado como o nosso...), mas, sim, contra o pensamento unilateral, isolante e desumanizante que orienta e limita a maioria dos profissionais e intelectuais. É o que diz claramente, em outro trecho do livro acima referido:
“A tendência para a fragmentação, para a disjunção, para a esoterização do saber científico, tem como consequência a tendência para o anonimato. Parece que nos aproximamos de uma temível revolução na história do saber, em que este, deixando de ser pensado, meditado, refletido e discutido por seres humanos, ou integrado na investigação individual de conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser acumulado em banco de dados, para ser, depois, computado por instâncias manipuladoras, o Estado em primeiro lugar.
Não devemos eliminar a hipótese de um neo-obscurantismo generalizado, produzido pelo mesmo movimento das especializações, no qual o próprio especialista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado aos cientistas, que não têm nem tempo, nem meios conceituais para tanto. Situação paradoxal, em que o desenvolvimento do conhecimento instaura a resignação à ignorância e o da ciência significa o crescimento da inconsciência”. (grifos nossos).
É contra essa inconsciência que Morin luta, ao reivindicar o novo pensamento investigador, que ele rotula de pensamento complexo e que vem propor uma nova ótica para ver o novo real que está surgindo em meio ao caos. Ou ainda um novo método mais adequado para a redescoberta não só do mundo concreto em acelerada mutação, mas acima de tudo, do próprio homem, do eu-sujeito.
Essa nova ótica (ou ângulo de visão) corresponde, para Edgar Morin, ao olhar de descoberta que deve ser exercido sobre um objeto ideal: a cultura, fenômeno constituído por um corpo complexo de normas, símbolos e imagens que penetram na intimidade do indivíduo, estruturam seus instintos, orientam suas emoções e desejos. Como ele diz textualmente.
“Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática e também pontos de apoio práticos à vida imaginária que cada um secreta no interior de si mesmo (sua alma), - o ser semi-real, semi-imaginário que cada um secreta em si próprio e no qual envolve sua personalidade.” (in O Espírito do Tempo. 1962)
Morin pertence, pois, à linhagem dos pensadores que, neste século, vêm alertando para um fenômeno que estamos vivendo de maneira praticamente inconsciente: o da mutação em curso em nossos dias e que compromete o nosso equilíbrio normal de seres humanos. Na verdade, já se sabe que não bastam os malabarismos com as ideias, nem a avalanche de informações que desafiam nossa capacidade de assimilação. Torna-se urgente a cada um de nós, conquistarmos uma refletida tomada de consciência a partir de um novo ângulo de visão para, se possível, podermos interferir no processo pelo qual o homem contemporâneo está se transformando, juntamente com o mundo por ele transformado...
Em última análise, podemos dizer que a preocupação visceral de Edgar Morin é com o homem, com o eu-sujeito, auto-consciente não só de seu lugar no mundo, mas principalmente da importância de suas relações solidárias com o outro. Autoconsciência que está patente em sua dinâmica e generosa personalidade humana e intelectual.
Apaixonado defensor do Autoconhecimento, como a vida mais salutar para se chegar ao núcleo essencial do ser humano (isto é, o inconsciente e seus conteúdos, a respeito dos quais ninguém pode emitir juízos definitivos), a preocupação fundamental que permeia toda a sua obra é restabelecer o diálogo entre as exigências de investigação e de verificação próprias do conhecimento cientifico e as exigências propostas ao conhecimento filosófico. Diálogo este fundado no reconhecimento dos limites da lógica e na aceitação de que “o espírito humanos não pode ser onisciente, pois a realidade implica mistério”.
Na verdade, Morin nos oferece “setas indicadoras” do novo caminho a ser trilhado, embora este ainda permaneça obscuro em suas reais dimensões. E é ele próprio que nos lembra os versos do poeta espanhol Antônio Machado: “Caminhante/não há caminho/Este faz-se com o caminhar...”

(Transcrito do Jornal “O GALO”, junho 1998 - Nelly Novaes Coelho é professora da Universidade de S. Paulo e especialista em Literatura Infantil.


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