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Nelly
Novaes Coelho
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Recentemente (maio pp.) o Brasil, mais
uma vez, teve o privilégio de conviver com a instigante figura de intelectual,
que é o sociólogo francês Edgar Morin, considerado hoje um dos pensadores mais
fecundos e polêmicos da intelectualidade europeia.
Convidado pela Associação Palas Athena,
com apoio de outras instituições culturais (PUC-SP, GRECOM-Grupo de Estudos da
Complexidade da UFRN em Natal e Folha de S. Paulo), Edgar Morin cumpriu uma
agenda compacta (encontros, mesas redondas, workshops, entrevistas...), tendo
estado em contato com auditórios repletos, avalanches de perguntas e questionamentos
os mais diversos, a que, com a sorridente boa vontade e agudíssima lucidez de
sempre, ele respondeu, debateu ou rebateu...
Diretor Emérito do Centre National de La Recherche Scientifique ;
co-Diretor do Centre d’Études Transdisciplinaires e Presidente Fundador da
Association pour la
Pensée Complexe , em Paris (a qual já conta com 87 Institutos
e Universidades associadas, no mundo inteiro), Edgar Morin é hoje reconhecido
como um dos mais atentos estudiosos das transformações culturais e científicas
de base, que estão em acelerado processo de expansão em nosso mundo.
Autor de mais de 50 livros publicados,
Edgar Morin tem traçado sucessivos painéis da vida contemporânea, analisando
argutamente a gradativa “pauperização cultural” que se apossa do mundo e defendendo
a urgência de os intelectuais ultrapassarem a antiga alternativa: “engajamento
político” ou “alienação na torre de marfim”, para se empenharem num trabalho de
auto-conscientização em relação ao papel que lhes cabe cumprir, de fecundadores de mentes. Como diz:
“Ser intelectual é se auto-instituir como tal, isto é, dar-se uma missão, uma missão de
cultura, uma missão contra o erro (do passado e do presente), uma missão de
consciência pela humanidade”.
(Meus
Demônios, 1997)
Daí seu próprio exemplo de viajar
infatigável pelas “sete partidas do mundo”, empenhado em debates ao vivo, com
pesquisadores dos mais diversos campos do conhecimento (das ciências exatas às
humanas e sociais), propondo-lhes a análise do nosso mundo-em-mutação, a partir
de uma nova ótica: a do pensamento
complexo. Isto é, do enfoque não-comprometido, mas abrangente e global do
real; e que tem o homem (ou a
condição humana) como centro, eixo ou alvo principal.
É nesse sentido que ele próprio vem
trabalhando nas mais diferentes áreas do saber: sociologia, antropologia,
ecologia, política, economia, ciências exatas, comunicação, literatura...
empenhando-se em denunciar o que ele chama de paradigmas perdidos (perda que deixou a civilização ocidental à
deriva) e a detectar os possíveis paradigmas
emergentes que, sem dúvida, estão em germinação e um dia serão as bases do
Novo Sistema que, necessariamente, surgirá no Terceiro Milênio.
Dentre os mais significativos paradigmas emergentes (que vêm sendo
detectados pelos mais diversos campos de pesquisa), Edgar Morin distingue o pensamento complexo - o pensamento
abrangente (e sua visão ecológica) que deve substituir o paradigma clássico (com sua lógica seletiva e ordenadora), na
medida em que a complexidade do mundo atual, tal como ele vem sendo descoberto
em todas as áreas do conhecimento (nos rastros da física subatômica, da
microbiologia, da mecânica genética, etc.) é o grande desafio a ser enfrentado pelo mundo pensante. Desafio lançado ao intelectual consciente, pelos paradoxos ou
contradições (ordem/desordem, parte/todo, singular/plural, particular/coletivo,
acaso/determinismo, masculino/feminino...) que se manifestam, amalgamados, em
todos os fenômenos do mundo atual, seja no âmbito dos estudos mais avançados,
seja nos quadros do nosso cotidiano, dominado pela parafernália dos multimeios
de comunicação, em plena expansão. Em suas próprias palavras:
“... o desafio da complexidade se
intensifica no mundo contemporâneo. Estamos, com efeito, em uma época de
mundialização, que constitui a nova etapa da era planetária, começada em 1492 (quando Colombo descobriu a
América e o planeta Terra foi definitivamente descoberto). Isso significa que
todos os processos locais resultam, à sua maneira, de processos mundias que,
por sua vez, resultam de processos locais. Esse desafio significa também que
cada um de nós deve retomar, no coração de sua condição individual as grandes
interrogações sobre a condição humana: Quem somos nós e onde estamos? Quem
fomos e de onde viemos? Quem seremos e para onde iremos?
É preciso que todos juntos enfrentemos
esse desafio, a fim de religarmos em seu contexto e em seu conjunto global, a
economia, a demografia, a ecologia, o desenvolvimento, a educação, a
tecnologia, a solidariedade e a humanização do trabalho, a bio-ética e a política.
A inteligência da complexidade
tornou-se vital, isto é, sua ininteligência
arrisca a ser mortal para a humanidade”. (Apresentação do Congrés Inter-Latin pour La Pensée Complexe
(CILPEC) a se realizar no Rio de Janeiro, de 8 a 11 de setembro.pf, na
Universidade Cândido Mendes, com apoio da UNESCO).
Enfim, as análises feitas por Morin
mostram à saciedade que o que antes era visto como resíduos não-científicos das
ciências humanas (a incerteza, a desordem, a contradição, a pluralidade e a
complicação) hoje fazem parte da problemática do conhecimento, seja no domínio
das ciências exatas, seja no das humanas e sociais. Nesse sentido, é de se
notar que o paradigma (ou pensamento
científico) clássico (nos rastros de
Descartes e da mecânica de Newton) se fundava na certeza de que a complexidade do mundo-dos-fenômenos podia ser
estudada e explicada a partir de princípios simples e leis gerais. Método que,
na realidade, diluía a complexidade
aparente dos fenômenos para revelar a simplicidade
oculta das leis imutáveis da natureza.
Está evidente que essa postura
metodológica propiciou o espantoso avanço que as ciências e a tecnologia
conheceram desde o século XIX, até bem entrado o nosso século. Entretanto é
preciso reconhecer que, de certo momento em diante, suas próprias descobertas
(devido aos excelentes frutos que deram) acabaram por extrapolar dos limites
impostos pelo método inicial e exigir um novo
método de pensar o mundo e de investigar os fenômenos que desafiam o homem.
É nessa linha que se situa Edgar Morin, ao reivindicar a ótica proposta pelo pensamento complexo. Ótica que recusa in limine o paradigma clássico, na
medida em que este acabou por isolar os fenômenos em “compartimentos
estanques”, gerando em consequência as especializações tal como hoje as
conhecemos, seja no âmbito das profissões, seja no dos métodos de pesquisa e de
conhecimento.
É contra essa incomunicabilidade entre os diferentes campos de conhecimento, que
o novo conhecimento-século XX se insurge. É indiscutível que, com a descoberta da
complexidade da matéria, no nível
atômico e subatômico ou na realidade cósmica, a ciência-século X tornou
obsoletos os paradigmas clássicos
que, entretanto (na maioria do mundo pensante e na vida prática) ainda
continuam vigentes. É contra essa imobilidade intelectual, que se insurge
Morin, ao reivindicar uma nova consciência que dê conta da complexidade patente
em nosso mundo atual. Tornando mais explícito o pensamento ecológico que o
orienta e que o leva a aproximar as ciências exatas das ciências humanas e
sociais, Morin diz:
“... As ciências humanas não têm
consciência dos caracteres físicos e biológicos dos fenômenos humanos. As
ciências naturais não têm consciência de sua inscrição numa cultura, numa
sociedade, numa história. As ciências não tem consciência do seu papel na
sociedade. As ciências não tem consciência dos princípios ocultos que comandam
as suas elucidações. As ciências não têm consciência de que lhes falta uma
consciência...”
(in Ciência com consciência. 1996)
É contra essa inconsciência ou
incomunicabilidade que Morin se volta, pois os tempos exigem uma nova vivência
do real. Obviamente, Morin não se insurge contra os especialistas, nem contra
as especializações tout court (o que
seria absurdo em um mundo tão complexo e diversificado como o nosso...), mas,
sim, contra o pensamento unilateral,
isolante e desumanizante que orienta e limita a maioria dos profissionais e
intelectuais. É o que diz claramente, em outro trecho do livro acima referido:
“A tendência para a fragmentação, para a
disjunção, para a esoterização do saber científico, tem como consequência a tendência para o anonimato. Parece que
nos aproximamos de uma temível revolução
na história do saber, em que este, deixando de ser pensado, meditado,
refletido e discutido por seres humanos, ou integrado na investigação
individual de conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser acumulado em banco de dados, para ser,
depois, computado por instâncias manipuladoras, o Estado em
primeiro lugar.
Não devemos eliminar a hipótese de um
neo-obscurantismo generalizado, produzido pelo mesmo movimento das
especializações, no qual o próprio especialista renuncia prematuramente a toda
possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse
cuidado aos cientistas, que não têm nem tempo, nem meios conceituais para
tanto. Situação paradoxal, em que o
desenvolvimento do conhecimento instaura a resignação à ignorância e o da ciência
significa o crescimento da
inconsciência”. (grifos nossos).
É contra essa inconsciência que Morin
luta, ao reivindicar o novo pensamento investigador, que ele rotula de pensamento complexo e que vem propor
uma nova ótica para ver o novo real
que está surgindo em meio ao caos. Ou ainda um novo método mais adequado para a
redescoberta não só do mundo concreto
em acelerada mutação, mas acima de tudo, do próprio homem, do eu-sujeito.
Essa
nova ótica (ou ângulo de visão) corresponde, para Edgar Morin, ao olhar de
descoberta que deve ser exercido sobre um objeto ideal: a cultura, fenômeno constituído por um corpo complexo de normas,
símbolos e imagens que penetram na intimidade do indivíduo, estruturam seus
instintos, orientam suas emoções e desejos. Como ele diz textualmente.
“Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida
prática e também pontos de apoio
práticos à vida imaginária que cada um secreta no interior de si mesmo (sua
alma), - o ser semi-real, semi-imaginário que cada um secreta em si próprio e
no qual envolve sua personalidade.” (in O
Espírito do Tempo. 1962)
Morin pertence, pois, à linhagem dos
pensadores que, neste século, vêm alertando para um fenômeno que estamos
vivendo de maneira praticamente inconsciente: o da mutação em curso em nossos
dias e que compromete o nosso equilíbrio normal de seres humanos. Na verdade,
já se sabe que não bastam os malabarismos com as ideias, nem a avalanche de
informações que desafiam nossa capacidade de assimilação. Torna-se urgente a
cada um de nós, conquistarmos uma refletida
tomada de consciência a partir de um novo ângulo de visão para, se possível,
podermos interferir no processo pelo qual o homem contemporâneo está se
transformando, juntamente com o mundo por ele transformado...
Em última análise, podemos dizer que a
preocupação visceral de Edgar Morin é com o homem, com o eu-sujeito, auto-consciente não só de seu lugar no mundo, mas
principalmente da importância de suas relações solidárias com o outro. Autoconsciência que está patente
em sua dinâmica e generosa personalidade humana e intelectual.
Apaixonado defensor do Autoconhecimento, como a vida mais
salutar para se chegar ao núcleo
essencial do ser humano (isto é, o inconsciente e seus conteúdos, a
respeito dos quais ninguém pode emitir juízos definitivos), a preocupação
fundamental que permeia toda a sua obra é restabelecer o diálogo entre as exigências de investigação e de verificação
próprias do conhecimento cientifico
e as exigências propostas ao conhecimento
filosófico. Diálogo este fundado no reconhecimento dos limites da lógica e na aceitação de que “o espírito humanos não
pode ser onisciente, pois a realidade implica mistério”.
Na verdade, Morin nos oferece “setas
indicadoras” do novo caminho a ser
trilhado, embora este ainda permaneça obscuro em suas reais dimensões. E é ele
próprio que nos lembra os versos do poeta espanhol Antônio Machado:
“Caminhante/não há caminho/Este faz-se com o caminhar...”
(Transcrito
do Jornal “O GALO”, junho 1998 - Nelly Novaes Coelho é professora da
Universidade de S. Paulo e especialista em Literatura Infantil.
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