8 de agosto de 2014

Toda a visceralidade do ator João Antonio Vale



Paulo Jorge Dumaresq
           
Ansioso. Não foi de outra forma que o ator e produtor teatral João Antonio Vale recebeu a reportagem em seu imóvel encravado na rua da Misericórdia, de frente para o espelho do rio Potengi, na Cidade Alta. Nos preparativos do bate-papo já foi soltando o verbo e adiantando histórias de vida nas quebradas do mundaréu. Brindou o dramaturgo Racine Santos com cerveja e a imagem de Santa Teresinha que nunca lhe deixa faltar dinheiro em casa.
            Em sua autodefinição, confessa que é uma pessoa de alma boa, mas ao mesmo tempo explosiva. Sente intensamente as paixões e por isso tem sempre muito amor para dar. Acrescenta que gosta de trocar experiências com os colegas de profissão e celebrar a vida. “Atualmente, estou mais pé no chão. Depois da faixa dos 50, a gente se ama mais e dá mais valor ao que faz”, ressalta.
Nascido a 23 de junho de 1959, na solar Areia Branca, lembra que desde sempre quis ser ator. João Antonio credita ao pai José do Vale – seu ídolo - a paixão pela arte. Conta que era levado pelo genitor para o circo e sob a empanada observava atentamente os dramas que se desenrolavam no picadeiro. Era a fagulha que precisava para sentir o fogo de representar queimar suas entranhas. O pai foi seu maior incentivador.
Conforme o ator, nos anos 1960 havia grande efervescência cultural em Areia Branca, inclusive a cidade contava com um cinema de 600 lugares. Nos dias de hoje, o berço de Carlos de Souza, Deífilo Gurgel, Mirabô Dantas, Rodrigues Neto e Tico da Costa é caricatura de si mesmo: “Independente das equivocadas gestões municipais, eu me orgulho muito da minha cidade. Adoro ser de Areia Branca. Tenho uma relação maravilhosa com o mar. Gosto do movimento das ondas. O mar é muito misterioso”.
Nas idas e vindas da família, mudou de cidade algumas vezes, até se estabelecer em Natal. Mossoró e Fortaleza também estiveram no seu caminho quando criança. Morando em Natal no início da década de 1970, vai estudar na Escola Estadual Sebastião Fernandes, onde começa a fazer teatro aos 12 anos. Representa em adaptações dos romances “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, “Barro Blanco”, de José Mauro de Vasconcelos, e “Iracema”, de José de Alencar.
Descoberto por Racine Santos, estreia oficialmente no espetáculo “A Festa do Rei”, na pele do personagem Coró. De cara, ganha o prêmio de Ator Revelação no Festival Norte-rio-grandense de Teatro, promovido pela Fundação José Augusto (FJA). O passo seguinte foi mambembar  com o trabalho pelo interior do Rio Grande do Norte na Kombi da Fundação. No espetáculo, contracenava com os colegas de ofício Patrocínio Bessa, Fafá Bibi e Kinha Costa.
            Envolvido no movimento teatral da capital, João Antonio presta vestibular e ingressa na primeira turma de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mas é jubilado por não frequentar as aulas. Na segunda metade dos anos 1970, toma parte no Grupo Aquarius de Teatro e representa nas peças “Simbad, o Marinheiro” e “A Farsa do Advogado Pathelin”, ambas dirigidas pelo dileto amigo Lenício Queiroga.
As lembranças dos amigos são gás lacrimogêneo nos olhos de João Antonio. Vertendo lágrimas, cita Racine Santos e Lenício Queiroga como os seus mestres no teatro. Com Queiroga, aprendeu os macetes da produção. Racine o descobriu ator e o empurrou para o palco. “Fiz cerca de 10 peças. ‘Apareceu a Margarida’ é meu termômetro de ator. Gosto também de fazer o coronel Chico de ‘Elvira do Ipiranga’. E adorei interpretar o José do auto Jesus de Natal”, destaca.


São Paulo
            Com o intuito de mudar de ares e fazer cursos na área teatral, João Antonio se manda para Sampa no início da década de 1980, e na Pauliceia permanece oito anos. Representa na peça “A Morte do Imortal”, de Lauro César Muniz, faz curso de voz com Eudosia Acuña Quinteiro e frequenta o curso do recém-criado Centro de Pesquisas Teatrais (CPT-SESC), com o renomado diretor Antunes Filho.
Em 1984, Antunes Filho ensaiava “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare. Quando passou no teste do CPT, João Antonio ficou no núcleo de Ulisses Cruz. Com dois meses de ensaios, Antunes entrou na sala e o “roubou” de Ulisses Cruz para representar o personagem Teobaldo no elenco de “Romeu e Julieta”. O ator não chegou a estrear. 
Se a experiência com Antunes Filho propiciara crescimento artístico, por outro lado João Antonio precisava sobreviver na selva paulistana. Como a vida não é para amadores, abraçou o ofício de estilista de vestidos de noiva. Montou atelier na rua São Caetano, no bairro da Luz, e abafou a banca, conquistando uma freguesia que o fez se manter com dignidade na Pauliceia durante oito anos. Desenhar bem não desenhava, mas conseguia conquistar as noivas pelo modo como manuseava os tecidos. “Foi uma experiência fantástica. Um aprendizado de vida. Aquilo era um teatro. As clientes ficavam na minha mesa atraídas pelo meu carisma. Eu só tenho que agradecer a Deus”, depõe.
Outra experiência marcante foi em Aracaju, onde conheceu o encenador Luiz Carlos Reis que o dirigiu no monólogo “Apareceu a Margarida”. Sublinha que o projeto escola começou em Aracaju. Lá mesmo, fez uma dobradinha com Luiz Carlos, que apresentava o monólogo “Junto ao poço”. Quando voltou para Natal deu continuidade ao projeto em parceria com o também produtor Lula Belmont.
Ribalta
Anos depois, criou a Ribalta Produções que está em plena atividade. “Acima de tudo, prezo a formação de plateia. Isaque Galvão, por exemplo, participou do projeto na condição de aluno espectador e depois enveredou pelo teatro e pela música, influenciado pelo projeto. Eu me preocupo com os textos e com a encenação dos espetáculos selecionados. O projeto escola contribui com a cultura teatral da cidade”, garante o produtor. Hoje em dia – confessa em letra de forma – assiste pouco às produções locais.
Ator de grandes recursos cênicos, João Antonio participa de três edições do espetáculo “Um Presente de Natal” e da edição de 2005 do auto “Jesus de Natal”. Lamenta que o primeiro não seja mais apresentado no centro histórico, uma vez que era uma maneira de congregar a família cristã em torno de um espetáculo natalino. Em contrapartida, afirma que não integrará mais nenhum megaespetáculo, porque não tem paciência para aturar ensaios quase diários. Nos espetáculos a céu aberto, conheceu atores da voltagem criativa de Crésio Torres, Gleydson Almeida, Ijailson Moreira, Pedro Queiroga e Clenor Junior, que, na sua opinião, é um artista completo.
Rasga elogios também para a velha guarda. Considera Eliene Albuquerque a melhor atriz potiguar. Cita, ainda, Beto Vieira, Fátima Arruda, João Pinheiro, Marcio Otávio e abre parêntesis para a atriz Kinha Costa, que mora atualmente em Joanesburgo, na África do Sul. Nomes (con)sagrados do teatro natalense.
Histórias pitorescas tem para contar. A mais hilariante envolve o ator e dramaturgo Rodrigues Neto, que chegou bêbado no Teatro Alberto Maranhão para atuar no espetáculo “A Farsa do Poder”, de Racine Santos. Preocupado com a situação crítica do amigo, o ator Geraldo Maia resolve dar um banho em Rodrigues Neto. Na hora da apresentação, o autor de “Dom Quixote Visita o Nordeste” disse suas falas na íntegra, enquanto que João Antonio e Gilberto Sérgio esqueceram falas do espetáculo e ainda foram repreendidos em cena por Rodrigues Neto.
Pisando com os pés molhados sobre o fio desencapado do projeto escola, João Antonio produz atualmente o espetáculo infantil “O Sítio do Pica-pau Amarelo” e o adulto “Dom Casmurro”, ambos da Companhia Monicreques, com direção de Clenor Junior, como também o monólogo “O Atheneu”, com o ator Luciano Luz. Presume que agenciou mais de 40 espetáculos teatrais por meio do projeto escola. Marca difícil de ser batida no estado. Na condição de ator, continua apresentando “Apareceu a Margarida” e volta ou outra representa em “Elvira do Ipiranga”.
Amarelo é a cor preferida de João Antonio Vale. Na Umbanda, é a cor de Xangô-Caô e no candomblé de Oxum. Já as cores do seu teatro são azul e vermelho. Na cozinha, gosta de preparar frango e feijão, mas no corre-corre da vida não tem muito tempo para se dedicar à arte culinária.
Prestes a completar 54 anos, a relação de João Antonio com o dinheiro não é das melhores. Dinheiro na sua mão é furacão. Confessa que não sabe administrar os cobres. Mas hoje encontrou na assistente Nilda a pessoa ideal para gerir as finanças. Declara que tem muito orgulho da atual equipe da Ribalta Produções.
Em que pese não frequentar muito a igreja, o artista crê que a religião é importante para se conectar com Deus. Busca na filosofia kardecista respostas para seus questionamentos sobre a vida e a morte. A felicidade vai buscar sempre, pois adora viver, mesmo com as fraturas sentimentais e os desafios diários que tem de transpor na luta pela sobrevivência. Assim é João Antonio Vale. Sem tirar nem pôr.   
            
               

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