12 de agosto de 2014

PRESTES EM NATAL




Por Franklin Jorge 
Pontual e de uma irrepreensível cortesia, Luís Carlos Prestes recebe-nos a mim e ao escritor Jarbas Martins às 6h30 da manhã, no saguão do hotel Samburá, onde está hospedado, no Centro da cidade.
Recém-saído do banho, ainda exalando um agradável cheiro de sabonete, o cabelo bem cortado, faz-se acompanhar do médico Salomão Gurgel, um norte-rio-grandense que ele conheceu em Moscou. Prestes, homem discreto, parece de alguma forma cansado, talvez, por tanta exposição na mídia que o persegue como se fora um animal pré-histórico. Veste-se com elegância e distinção.
Madrugador desde menino, reporta-se à  exaustiva homenagem que lhe foi prestada na Assembléia Legislativa do Estado, ontem à noite, em sessão que se prolongou demasiadamente além do previsto.
No Brasil, nada funciona, afirma numa voz calma, segura e polida. Até as homenagens excedem os limites da normalidade. Dormi pouco, mas após um banho frio, sinto-me renovado e pronto para responder aos seus questionamentos. Pergunte o que quiser.
Prestes tem 89 anos. De estatura abaixo da média, nem gordo nem magro, conduz a conversa com desenvoltura. Então os senhores são jornalistas. Pois saibam que os jornais e as rádios continuam sistematicamente a censurar minhas palavras. Geralmente, omitem minhas idéias quando não distorcem minhas palavras. Mesmo assim, continuo falando, pois dependo da palavra para ajudar na transformação de uma sociedade estigmatizada pela miséria e instruída pela corrupção. A palavra é a arma de que disponho e estou sempre a usá-la da melhor forma contra os políticos individualistas que oneram o país.
A imprensa é uma organização capitalista e está toda nas mãos da classe dominante. Portanto, não podemos estranhar que colabore para que tudo continue como está. Apesar da abertura, a imprensa continua comprometida com a classe dominante e nada faz para reduzir o quadro de alienação que vigora de Norte a Sul.
Costumo dizer que no Brasil ninguém nasce comunista. Falta-nos politização. O brasileiro não é politizado. Aqui, a ideologia é metida na nossa cabeça quase a marteladas. Nosso maior erro, contudo, é não fazer nada. Há uma cultura de acomodamento que dirige e entrava o país. Submetemo-nos a tudo sem espernear e sem usufruir desse direito legítimo. Não fazemos nenhum gesto passível de desmascarar o poder arbitrário que a tudo corrompe. De todos os brasileiros, o presidente Sarney é o mais submisso. E também o mais duvidoso dos brasileiros.
Nos países civilizados, as forças armadas são instrumentos do Estado. Aqui, ocorre o contrário: o Estado é instrumento das forças armadas. É refém delas.
Desde moço fiz uma opção reiterada pelo ser humano e pela liberdade. Por isso, desde a mais remota juventude – sempre renovada no entusiasmo de uma luta sem fim e sem fronteira -, jamais me curvei a interesses que contrariassem meu idealismo. Sempre me coloquei acima dos limites partidários. Não tenho nem nunca tive uma vida fácil.
Sentado numa poltrona à entrada do restaurante do hotel, Prestes fala torrencialmente, como alguém que tem urgência em comunicar suas experiências. Se eu o conhecesse, diria que está bem humorado. Ele confessa que não esperava que a entrevista fugisse ao ramerrão de praxe. Sempre me perguntam as mesmas coisas, como decorrência desse grande cansaço que mortifica os jornalistas brasileiros. Tenho a impressão de que eles fazem sempre as mesmas perguntas, em todos os lugares, a qualquer pretexto. Natal, de qualquer forma, me surpreende. Porém não posso dizer que conheço Natal. Não vim fazer turismo. São muitas as solicitações e os compromissos que ainda tenho de satisfazer.
O sofrimento é uma grande escola. Como sabe, muito moço, conheci a prisão. Quando descobri a ideologia marxista, vi-me obrigado a exilar-me
Em Santa Fé, na República Argentina, viveu por muitos anos na clandestinidade. Toda a minha vida, desde a mais tenra idade, foi marcada pelo sofrimento. O idealismo custa caro. A você, que é ainda bastante jovem, diria que fique atento a essa realidade: o idealismo custa caro, muito caro. Mas, em geral, só despertamos para esse fato demasiadamente tarde. Porém sem idealismo nada se faz que seja grande. O sacrifício pessoal faz parte do idealismo.
Filho de Antonio Pereira Prestes (1870/1908), e de Leocádia Felizardo Prestes (1874/1943), ficou órfão aos dez anos. Meu pai era engenheiro militar. Foi aluno de Benjamin Constant e sempre simpatizou com o Positivismo comtiano. Vivíamos em Alegrete, no Rio Grande do Sul, uma cidade abafada e insalubre, construída sobre uma grande lage de pedra.


Lá, em Alegrete, minha mãe contraiu tuberculose e mudou-se para Porto Alegre. Meu pai, porém, continuou em Alegrete. Ele tinha a patente de capitão do Exército. Quando morreu, seus próprios colegas de farda roubaram-lhe os pertences. Muito cedo, senti a necessidade de trabalhar.

Eu era o filho mais velho e sempre fui educado entre as mulheres. Morávamos numa casa modesta. Nossos recursos eram limitados. Diante disso, minha mãe passou a costurar para fora e matriculou-me num colégio militar. Fui a contragosto, mas não havia o que fazer. Eu me lembro que passei a chegar cedo ao colégio, para participar do almoço; depois das aulas, permanecia mais tempo na sala de aula, fazendo qualquer coisa, à espera do jantar. Agindo dessa forma eu diminuía as bocas que se alimentavam de um pequeno soldo, que foi tudo o que o meu pai nos deixou.
Minha mãe era uma mulher culta. Ela costumava dizer-me que a juventude era feita para o estudo. Era uma mulher que lia e educou-me na crítica aos militares. Aos dez anos, durante a famosa Campanha Civilista encabeçada por Ruy Barbosa, minha mãe levava-me com as minhas irmãs aos comícios. Aquilo me empolgou. O senhor deve saber que a mulher, quando é combativa, é mais conseqüente do que os homens. Assim era minha mãe. Uma mulher que não se deixou vencer. Dei o seu nome à minha filha.
Emocionado, evoca a grande marcha da “Coluna Prestes” que, sob o seu comando, cruzou o Brasil e passou pelo Rio Grande do Norte. Aqui cruzamos o alto sertão e nos aquartelamos em Luis Gomes, uma aldeia ainda e esquecida dos poderes constituídos. Nossa luta era fundamentalmente dirigida contra o presidente Arthur Bernardes. Era a luta contra a fraude que campeava por toda parte, arruinando o país e promovendo a descrença entre os cidadãos. Lutamos, como idealistas, contra o poder da justiça brasileira que já era muito corrupta naquela época e ignorava soberbamente o direito dos pobres. Lutamos por uma justiça limpa e um Estado livre da corrupção, representada, naquele momento, pelo governo de Arthur Bernardes.
Empolgado com as lembranças de sua luta, o velho cavaleiro da esperança, conforme o definiu o escritor Jorge Amado, Prestes refere-se longamente sobre a origem de tudo, o escândalo provocado pelas cartas, comprovadamente de autoria do presidente, como afirma com ênfase, dirigidas ao seu amigo Raul Soares. Divulgadas pelo jornal “Diário da Manhã”, indignou a opinião pública e o pôs em marcha, à frente de uma coluna, em sua heróica reação. Tantos anos depois, Prestes ainda sabe as cartas de memória e as repete com a indignação de sempre. “(...) Os militares podem ser comprados com outros galões e bordados”, escreveu o presidente Bernardes a Raul Soares.

Fragmento de “O Spleen de Natal” [V. 3-3, inédito]

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