Sinfonia Poética Sertaneja
A Música na Obra de Otoniel
Menezes
Manuel de Azevedo
SERTÃO
DE ESPINHO, DE FLOR E DE MÚSICA
Manuel
de Azevedo – Professor, Poeta e Músico
serrotepreto@hotmail.com
Por
que deixam um menino que é do mato,
Amar
o mar com tanta violência?
Manuel de
Barros (1956)
Por
que deixam um menino que é o do mar,
Amar
o mato com tanta violência?
Manuel de
Azevedo (2006)
O Sertão de Euclides,
opus inspiradora. O Sertão de Guimarães Rosa e o Sertão de Manoel
de Barros, duas grandes veredas literárias. O Sertão de Otoniel –
a terra Potiguar, curiosa e instigante lira de um poeta praieiro. De
suas veredas espinhosas, a passarada, a cruviana, o rio, o mugido do
gado escasso, o aboio vaqueiro, o chocalho, o sino de uma igreja, o
punho da rede, a cancela, etc, cantam a harmonia de uma terra que
vive céu e inferno, água e fogo, seca e inverno, tristeza e
alegria, espinho e flor, numa dualidade existencial intensa e rica,
sagrando-se fonte poética inesgotável.
A obra do grande Poeta
Norteriograndense Otoniel Menezes, Sertão de
Espinho e Flor, publicada em 1952 pelo
Departamento de Imprensa, Natal – RN é composta de dezesseis
poemas, todos em sextilhas heptassilábicas (AABCCB), forma um denso
cordel e honra a tradição poético sertaneja, que teve nessa
modalidade literária, seus primeiros registros. O contraste seca e
inverno, traduz-se na oposição harmoniosa espinho-flor, metáfora
poética de um Panorama físico e social dos
sertões Norteriograndenses, subtítulo da
obra.
Este pequeno estudo, de
uma obra singular que transita com fluência, pertinência e
competência do popular ao erudito, observa a relação musical nela
contida, sem deter-se nos poemas especificamente, mas, às suas
referências musicais por todo o seu conjunto, tendo como
matéria-prima desta análise elementos e terminologias musicais:
colcheias, ritornélos, coro, surdina, bemol, ária, canto em dueto,
agudos marciais, tons menores de ré, flautim, carrilhão, prato,
tambô, clarim, clarinete, requinta, violino, valsa, missa solene,
pauta... Percebe-se um poeta inteirado com esta arte, divina por
excelência, a partir do cantar dos pássaros que povoam seus poemas.
Sob um prisma poético-sinfônico, teríamos uma sinfonia em cinco
movimentos: Abertura, Aboio, Música Sacra, Clássicos e Música
Popular. Uma alada protofonia é Abertura
composta em
tom maior. Atentem para a rica sonoridade desses versos e suas
referências musicais, primeiramente quando define o Concriz como
Clarim da Alvorada nas marselhesas do sol,
tornando sublime o amanhecer sertanejo, visto que este instrumento só
se reserva as grandes celebrações. O sino também se reserva a tal,
quando seu toque é vivo
repicar do Cancão - um sino de penas.
A melodia se completa quando encaixada na sextilha, aprecie as duas
abaixo:
Centelha
vivente, réstea
De
sol, gorgeando!
Tiveste-a,
A
voz, no céu, a afinar?
Pintassilgo!
És o violino
De
um gênio, cujo destino
É
o de morrer...de cantar!
A
ária,
dulcíssima,
esparze-a
Nas
carnaúbas da várzea,
Graúna,
avatár de Orfeu!
Tua
asa é a tinta do poema
Dos
cabelos de Iracema,
-
Que de saudades, morreu...
É interessante
observar, como o cantar do pássaro é associado a um instrumento
musical (...Pintassilgo! Es o violino...),
e o mesmo acontecendo inversamente, ou seja, o instrumento tocando
assemelhando-se ao pássaro (clarinete
maguado, lembrando sabiá envultado).
Cantando no mesmo tom, outros alados exemplos:
No juazeiro
verdinho/tá cantando um passarinho/outro chega e pega
o tom...
...Súbito,
em notas extremas,/rompe
o tam-tam das siriêmas...
...Amai
pássaros românticos!/isto é o Cântico-dos-Cânticos,...
...Um
cancão de sentinela/acua o ofídio. Martela/rasga o toque
de reunir..
Casaca-de-couro. O
ninho,/enorme, é todo de espinho./dá-lhe o nome, a cor que
tem./canto, em dueto:
alarido!/ - Grita frocudo, o marido!/ - a mulher grita também!
Sobe a névoa
matutina./terno, o galo-de-campina/fere a canção
do arrebol...
.
A Sinfonia Sertaneja de
Otoniel segue seu curso, com o Aboio,
o canto gregoriano nordestino sertanejo, que com frases melismáticas
eivadas de plangências, preenche e consola a alma vaqueira. Duas
passagens reservadas a esse canto, ilustram o conhecimento do autor
sobre tanta densidade musical:
O
aboio,
ecoa maguado.
Vagaroso,
torna o gado,
Na
meia-luz vesperal.
Alta
a craibeira florida
Esfuma
a copa, estendida
Do
oitão do rancho, ao curral.
Ó!
O drama das retiradas!
Boiadas
e mais boiadas,
Num
chouto exausto, a mugir...
Aboio,
ilíada rude,
Tu,
só tu, tens a virtude
De
tanta dor traduzir!
No mesmo diapasão, como
um terceiro movimento desta Sinfonia Poética,
a Música Sacra
se faz presente em três momentos. Dois desses momentos estão nos
versos que descrevem em acordes fiéis, um quadro de uma festa
padroeira, primeiro, através da Missa Solene (missa cantada) e em
seguida, com uma Banda de Música conduzindo a procissão,
executando valsa bem chorosa. A
religiosidade musical ainda se manifesta no canto da Ave-Maria,
representando o momento místico mais freqüente no sertão, a hora
em que o sertanejo, mesmo sem ir à igreja, basta-lhe um rádio ao
crepúsculo, reza a Deus.
Às onze, a missa
cantada
Foi linda, toda
floreada
Nos tons
menores de ré
(- Vi – contou-me
Dona Dirce –
“Mais de uma
açucena abrir-se,
No bastão de São
José!”
Voz lindíssima,
Argentina,
Morre no coro
em surdina,
Em
louvor da Conceição.
Finda, a noite. Mas é
gente!
- Pelos oitões, pela
frente,
Sai moça, de
borbotão!
A procissão... vai
na frente,
Oscilando docemente,
A Virgem, no seu
andor.
De um lado e de
outro, meninas.
O sol acende
cravinas.
Nas pedras do
resplandor...
Toca a Euterpe,
caprichosa,
Uma valsa
bem chorosa...
- O conjunto é firme
e é bom!
Quinze figuras. Mas,
vale!
Essa banda
é mesmo o diale,
Com João Aprígio ao
piston!
Sopra o
trombone-de-vara,
Cadete Felipe ( a
cara
Papuda, que nem
mamão).
Fumaça é o
bombardino.
Magro, alto, Antonio
Sabino
Pinica no carrilhão!
Artur Aprígio é o
da Caixa,
Mas a pose não
relaxa!
- E quanta inveja me
faz!
Por que inveja não
sentires,
Do flautim
de Heráclito Pires,
Tinindo agudos
marciais!
Sobre a valsa,
quando a quando,
Floreia um bemol,
lembrando,
Na melodia louçã,
Um sabiá envultado
No clarinete
maguado
Do cabra José
Canã...
Sabiá, lira
da tarde!
Enquanto o crepúsculo
arde,
No flamboyant todo em
flor,
- Na pauta da
Ave-Maria
Saudade e saudade
envia,
Às donas do meu
amor.
Há ainda as referências
aos Clássicos, tanto
relativas à obra, como ao compositor. De uma forma direta (Strauss,
Carlos Gomes, Patápio Silva e Mozart) ou indireta (Bach-Gounoud e
Schubert através da Ave-Maria). Otoniel compara nossos Mestres
Tonheca Dantas e Manoel Fernandes a Strauss e Mozart,
respectivamente. O canto precioso dos canários atinge a
magnificência da obra O Guarani, de
Carlos Gomes, bem como o virtuosismo do grande mestre da flauta
brasileira, o compositor mulato Patápio Silva (1880-1907), quando o
poeta potiguar atribui a este flautista, poética comenda. A
musicalidade é abundante vista a seguir:
Tonheca...
Magro, anzolado,
É
um gênio. Strauss,
reincarnado,
Compondo
valsas
gentis,
-
Mas, de sol! De tardes quentes!
De
serranias dolentes,
De
arrulhos de juritis...
Canário,
rei dos troveiros!
Na
bastilha de ponteiros,
Pendurada
no portal!
Mesmo
assim, Patápio louro,
Estalas
colcheias
de ouro,
-
Numa pauta
vertical!
E
há outras figuras grandes:
-
O mestre Manoel Fernandes,
O
Mozart do Seridó,
Aí
trouxe a requinta à
festa,
Esse
concurso que empresta,
Vale
uma banda
– ele só!
Mil
canários amarelos
Corruchiam
ritornelos,
A
fervilhar no umarí.
De
um desses lances, talvez,
-
É que Carlos Gomes
fez
O
allegro do “Guarani”.
A Música
Popular empresta seu canto e seu ritmo a
esse bailado poético sertanejo, apresentando-se como movimento
final deste sensível poema sinfônico, fluindo variados termos
relativos aos instrumentos e gêneros musicais populares, tais como:
sanfona, fole, harmonium e rabeca, a polca, o samba, a cantiga, o
zambê, a valsa, o xote (chote), o baião (baiano), o serrote e o
chucaio (crítica a Jazz Band). Verseja o poeta:
Queima!
Vadeia, meu povo!...
O
harmonium
rompe de novo,
Uma
polca, em si bemol.
Do
chão, ao vivo compasso,
Sobe
um pó vermelho e Baco,
Que
ondeia, à luz do “farol”.
No
patamar, seu Veríssimo
Bate
no peito. É o Santíssimo.
Repique.
Rescende o altar.
Vivo,
a música sapeca
Uma
polca de Tonheca,
Rompem
cem fogos-do-ar.
A
um canto, João de Binona
Coça
o bucho da sanfona,
Escanchado
num baú.
O
zambê
vai ser de arranco,
Obrigado
a vinho branco,
Cachaça
e mel de uruçu.
Meigo,
nos longes da estrada,
Fere
Ilusão desfolhada,
Um
fole,
chorando em lá...
Voga,
na aragem do estio,
Um
cheiro casto e macio
De
mofumbo e reseda.
Junho,
da cor das espigas,
Nada
em sambas e cantigas,
Visões,
impressões gentis,
Toda
a passada amargura,
Esquecida,
na fartura
Desse
interlúdio
feliz...
No
alpendre de Dona Santa,
Preto-Limão
cospe e canta,
Num
tom de bravura e dó...,
Mistral
de chapéu-de-couro,
Teu
verso é uma “prima”
de ouro,
Da
viola
do Seridó.
Num
se dança mai o chote,
Nem
baiano,
nem serrote.
Fole
num vale um tostão.
Os
baile é só de infergáio...
-
A musga
toca é chucaio,
Prato,
tambô
e rabecão!
Pé-de-ouro,
o Tota Veloso,
Todo
enfronhado e cheiroso,
Dansa
valsa,
com Didi.
Tropeça...explode
afobado:
-
O compasso
tá errado!
Eu
num danso mái aqui!
A leitura de Sertão
de Espinho e de Flor,
por tanta melodia destilada em versos, proporciona êxtase,
amalgamando poesia e música num contracanto harmônico de coro bem
afinado, composto e regido pelo Maestro Otoniel Menezes, conseguindo
com a simplicidade das cantantes sextilhas e poesia autêntica,
anexar brilhantemente o Sertão Norte-riograndense ao grande sertão
literário Brasileiro, alinhando-o ao de Canudos, ao das Gerais e ao
Pantaneiro.
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