18 de julho de 2013

Viajando através das letras - 4




 O caicoense Jaime Hipólito Dantas, escritor (principalmente contista das admiráveis narrativas do livro “Estórias Gerais”; mas também percuciente crítico literário presente no livro “De Autores e de Livros”), jornalista e professor, apesar de filho de um caixeiro viajante nunca pensou em publicar um livro de viajens. No entanto, por causa de uma chance oferecida pela OEA e pelo British Council, ele estudou, de 1966 a 1967, na Universidade de Swansea (País de Gales), onde se diplomou em Política Social e Administração com a tese“Alguns Aspectos do Desenvolvimento Regional Planejado no Brasil”.
                                          Então, com o natural ímpeto de escrever surgiram do punho do escritor muitas cartas, narrando a viagem e descrevendo o viver numa das partes insulares da Europa. Cartas dirigidas a familiares e amigos. A primeira, datada de 19 de setembro de 1966, para a sua irmã Lourdes, foi escrita em guardanapos de papel, a bordo de um Viscount da Vasp da linha Rio/Recife, de onde ele embarcou para Londres no dia seguinte, ponto de onde seguiu para a cidade universitária galesa referida. São estas cartas, juntamente com outras, resultantes de outras viajens dele a Europa, o conteúdo do livro “Cartas da Europa”.
                                           Organizado por seu sobrinho Gustavo Luz, o livro foi publicado post-mortem (Jaime faleceu em Natal  a 22 de março de 1993) pela editora mossoroense Queima-Bucha, em 2008. Como disse Gustavo na Apresentação, “ao longo dessas cartas, Jaime se mostra advogado, jornalista, escritor, filósofo, poeta, político, conselheiro e amigo.” E eu completaria, afirmando que ele também se mostra, desde a primeira carta, o filho amoroso, quando pede à irmã: “Se mamãe estranhar que eu tenha mentido, dizendo que ainda voltaria a Mossoró, antes de viajar para Londres, explique que foi porque eu quis evitar a despedida.” Mas, promete: “Assim que chegar a Londres escreverei.”
                                              Como talvez Jaime, realmente, nunca pensou que suas cartas “britânicas” seriam publicadas em livro, não se preocupou em se autocensurar diante de possíveis contradições opinativas. Na primeira carta, é o entusiasmo pelo próximo encontro com o povo inglês: “Dizem-me que os ingleses são gente boa, e eu tenho muita facilidade de fazer amizade.”Bom, na época do Natal, o missivista já convivera bastante com os habitantes da terra de Elizabeth 2ª, para dizer em carta a outra irmã, Jandira, outra opinião sobre os ingleses: “Não deve haver povo mais individualista no mundo. (…) Ninguém quer saber da vida de ninguém.”
                                                 Em vez, pois, de se citar opiniões não tão consistentes em relação ao caráter do povo inglês (ou, por outro lado, em relação à qualidade da culinária preparada por aquele povo, como ele expressa em outra carta dirigida a Jandira, em abril de 1967: “O povo inglês pode ser bom noutras coisas. Em cozinha é horrível”), é malhor levar em conta o ótimo nível de civilização (cultural, urbanístico) que ele testemunhou nos meses que viveu em Swansea, numa Inglaterra, onde “quase não se bebe”, onde “não há pobreza ou miséria.” E onde os cidadãos são “loucos por música”, e a nação “dá tudo por teatro.”
                                                   E as paisagens naturais do país? Belas, é claro, bem cuidados os ambientes, de dar inveja se comparados ao relaxamento que se vê no Brasil: “Swansea é uma típica cidade galesa: rodeada de parques, lagos, repleta de jardins e outras coisas para o encanto do brasileiro.” E mais:~ Veja que coisa: aqui é impossível (impossível mesmo) encontrar uma mosca, muriçoca ou quaisquer outros insetos provenientes de sujeira, águas estagnadas e outrs imundícies. Que cidades limpas. Que beleza de ruas.”  Mas numa cidade tão fria como Londres, em época de inverno, a grande sacada dos londrinos é ir passar muito tempo nos parques, quando o sol verânico aparece.
                                                            É como descreveu Jaime numa das “Cartas da Europa”: “Na verdade, um raio de sol é, no geral, tudo para esse povo. Cedo, hoje, os do nosso grupo puderam ver as cenas mais comuns deste “Sunny Days”: londrinos de todas as idades estirados ao ar livre, sobre a grama dos parques Hyde Park, Regent`s Park, os outros parques, todos coalhados de jovens e velhos. Todos deitados ao sol, como se ninguém quisesse perder tais (raras)oportunidades.” Porque o frio lá maltrata mesmo, principalmente quando é trazido pelo vento: “ontem tivemos três graus de temperatura (chegou o frio): em si não é tão torturante. Terrível é quando sopra o vento (…)O cristão tem que se encolher e trincar os dentes.”
                                                                 Mas, para suportar o clima, o nordestino de Caicó teve que se equipar com roupas adequadas: “Para sair à rua ponho, além da camisa de meia, o seguinte: camisa colarinho (nylon), grosíssimo pulôver, o cachecol, paletó e sobretudo (o sobretudo deve pesar, no mínimo, dois quilos). E mais as luvas, de couro forrado com lã. O que muito sofre é a cara da gente, porque fica a descoberto. Ficam dormentes o nariz, as orelhas e as têmporas.” Mas, dentre todo o sofrimento, um motivo para riso: “Todo mundo, quando fala, tem que expelir aquele vapor engraçado, como se fosse fumaça de cigarro. Só se vê gente fumaçando pela boca.”
                                                                    A estadia de cerca de dez meses  de Jaime Hipólito Dantas em uma universidade do País de Gales, com algumas excursões por outrs cidades da ilha britânica e por outros países da Europa central (França, Alemanha, Holanda), serviu  para múltiplos aprendizados. Sofrer com o frio. Rir com reações biológico-químicas do organismo humano diante do clima. Desfrutar da bucólica visão através da janela do veículo (“ao longo de todo o percurso, sempre sobre estradas asfaltadas, o panorama que se descortina é típico da Europa: vales e montes cheios de vegetação, gado e ovelhas pastando, rios e inúmeras vilas.”).
                                                                        Conhecer pessoalmente a realidade da posição do sol conforme a posição geográfica (“No momento, pleno verão, estamos experimentando o melhor tempo por aqui. Não mais chuva, neve ou fog, e a temperatura é uma delícia: dezenove, vinte graus. Só começa a escurecer às dez horas da noite, pelo que os dias, nesta etação, são bem mais longos, bons e saudáveis.” Exercitar o prazer de ver a bela arte clássica (“Estive em muitos de seus famosos locais, inclusive no formidável “Victoria and Albert Museum”, onde vi verdadeiras maravilhas artísticas, destacando-se os célebres quadros de Rafael.”
                                                                              Como também de ouvir um trecho de ópera memorável num concerto estudantil (“Mas a nota principal foi a presença de um conjunto coral aqui de Swansea, integrado por cerca de trinta ou quarenta homens de todas as idades. E sabe, inclusive, o que esse coral apresentou? O “Hino dos Cativos Hebreus”, de Verdi – lembra-se do Congresso Eucarístico e de Frei Cecílio?Foi como um deslumbramento para mim, pois Zé Vidal – “Música, Eterna Música”, da Rural – sabe o quanto gosto desse trecho da ópera “Nabuco”, de Verdi.” Além desses deleites estéticos, além da possibilidade de ler jornais londrinos na Universidade, houve muitos outros aprendizados para o estudante caicoense de Swansea.
                                                                                        Por exemplo, o de saber se virar em necessidas essenciais: “Sobre roupa suja? Não é problema. Lavo-a na pia, ponho-a a enxugar no quintal e, depois, passo-a a ferro, que a senhora Mosek nos empresta”; ou:”Confesso que já domino bem pelo menos o centro de Londres. A necessidade, em qualquer sentido, é sempre uma grande mestra. Então a necessidade de andar só, de descobrir por mim mesmo ruas, praças, pessoas ou coisas, tem-me forçado a enfrentar tudo sem receio ou acanhamento. Enfio a cabeça pelas ruas, mapa no bolso, entro num subterrâneo aqui, saio do outro lado, pego trem debaixo do chão ou ônibus por cima, e o fato é que até agora tudo tem dado certo.”
                                                                                            E também a descontração, aprendida ou reforçada com a convivência entre estudantes de vários países do mundo (escandinavos, árabes, africanos), que participam de recepções com aoresentações artísticas: “Nossa última excursão foi a Port Talbot, uma cidade aqui do País de Gales, perto de Swansea.Fomos a convite do Rotary Club de lá. Foi ótima recepção, com bebida, música e dança. Achei lindíssimos os números musicais interpretados pór três bonitas galesas, uma delas tocando harpa. Dentre os “artistas” estrangeiros que se apresentaram ao microfone, podem ser enumerados: o negro Agoucha (Nigéria), os amarelos Kim e Park (Coréia) e o brasileiro de Mossoró (Dantas).”
                                                                                                  Para o leitor, um livro como este é agradabilíssimo. Não é um guia de viagem. Seu texto não foi escrito originalmente para ser publicado. Determinados hábitos e idiossincrasias da Inglaterra de hoje talvez sejam diferentes. Mas, sem o aborrecimento de ter que tirar passaportes, arrumar e desarrumar malas etc., o leitor, sentado ou até mesmo deitado, em casa, vai conhecendo, por exemplo, que nos anos 6o cada casa inglesa tinha seu jardim; que ali não se brincava carnaval; que as festas do Natal eram comemoradas privadamente, em cada casa, sem convidados; que haviam locais com publicações à venda, mas sem ninguém para receber o dinheiro, a ser depositado numa bandeja.
                                                                                                       Tudo isso, Jaime conheceu e transmitiu espontaneamente aos primeiros leitores de suas “cartas da Europa”. Ele aprendeu muita coisa, a partir do idioma (numa carta à sua irmã Jandira, de novembro de 1966, ele fala sobre o material de estudos e exclama: “o chato é que será tudo em inglês, e eu não estou muito bem no manejo do infeliz”), relacionamento social com gente de várias etnias e culturas diferentes etc., mas levou para as ilhas britânicas algo valioso dele mesmo: o sentimento lírico das coisas (“quando o vento sopra, é um espetáculo a queda das folhas das árvores, folhas secas do outono”); o continuar do interesse pelo seu país natal, mesmo sabendo de nossas falhas.
                                                                                                                Enfim, o ser humano e inteligente que era. Como tivera uma formação clássica, e estudara em Swansea já com 38 anos de idade e formado em Direito desde 1959, não compreendia muito bem os gostos da juventude da época. Em uma carta a Jandira, em março de 1967, ele desabafa: “As inglesas não sabem dançar nossos ritmos. Só sabem mexer as cadeiras ao som do (insuportável)iê-iê.”No entanto, mesmo sem gostar do ritmo criado pelos Beatles, ele tinha uma espécie de empatia responsável por jovens e crianças. Ele manda o recado em uma das cartas para um jovem mossoroense: “Diga-lhe que a juventude por aqui também adora cabelos longos, calças apertadas.”
                                                                                                                           E ele completa dizendo que os jovens ingleses também usavam barba à Fidel Castro, cantavam e dançavam etc.. “Mas sucede que todos estudam, todos sabem o valor que tem os livros, a escola, a Universidade. Não são fúteis. Não são iketrados.” Quanto a crianças, Jaime fez amizade com um casal de crianças filhas dos seus hospedeiros em Swansea. Diz numa das cartas que o fraco do menino era sentar nas pernas dele, quando estavam olhando televisão. “Deixa o pai e a mãe por mim.” E Jaime suportava numa boa as travessuras das crianças: “Mexem em tudo, pulam em cima da cama, batem na gente e tudo o mais. São divertidíssimos.”
                                                                                                                               Os flagrantes do comportamento humano chamado “amizade” são constantes no livro. Jaime se preocupou em comprar presentes para quase todo o mundo do seu conhecimento em Mossoró, além de fotografias tiradas dos locais mais importantes (o rio Tâmisa, a torre do relógio Big-Ben), cartões postais e selos para um colecionador mossoroense, selos bonitos conseguidos com os seus colegas da Indonésia, de Uganda, de Cameronn, da Jordânia, do Kuwait, da Argentina, da Índia e da Coréia. A última carta da primeira parte do livro é dirigida a Dorian Jorge Freire, anunciando o regresso. “No próximo dia 4 tomarei o avião em Londres para New York. No dia 12 deixarei New York rumo ao Recife, se Deus quiser.”
                                                                                                                                   Em 1972, Jaime voltou à Europa, não mais como estudante e sim como turista junto com a esposa Marília. Visitaram Lisboa, Madrid, Paris, Londres, Bruxelas(”bem iluminadazinha. Diria mesmo bonita”), Amsterdam (onde conheceram o anexo escondido de uma casa onde viveu Anne Frank), Frankfurt, Florença, Roma e outras cidades incluídas no roteiro turístico da empresa Polvani. Em uma terceira viagem à Europa (1984), Jaime  com a esposa visitou Nice, na Riviera Francesa, conhecendo na praia a moda do topless, moças e senhoras idosas com os seios nus totalmente expostos. Fazia um friozinho de outono, e a viagem a Nice partiu de Barcelona (Espanha) em um confortável e rápido trem.                        





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