22 de julho de 2013

Caco Barcellos


Escrito por redação /Almanaque Brasil  

"O País tem que respeitar a vida, ou nada funciona."
Ele é um dos principais jornalistas televisivos do Brasil, mas foi nos livros que pôs à prova toda a sua vocação de repórter. Esteve nos dois lados da fronteira. Em
Rota 66 (Record, 1992), destrinchou as entranhas da polícia paulista em busca das barbaridades que ela cometia "por ordem dos coronéis". "Era uma ideologia estúpida. Se o soldado matasse cinco bandidos, ele levava prêmio, tinha ascensão de carreira." Em Abusado (Record, 2003), traça uma biografia do líder do morro Dona Marta, no Rio, para delinear o perfil do tráfico de drogas na cidade. No comando do programa Profissão Repórter, na Globo, ainda titubeia diante de novos desafios investigativos. Pode tanto ser uma incursão pela selva amazônica em busca dos reféns das Farc colombianas, quanto um novo livro-reportagem, buscando agora nas raízes do Brasil a explicação para tamanha violência: "Por que um povo maravilhoso em tantos aspectos tem também esse componente tão grave?" 

Como nasceu o programa Profissão Repórter?

É um projeto meu, até que bem antigo. Sempre gostei de coordenar grupos de investigação. Nos meus livros, sempre que podia e que me sobrava alguma grana, contratava freelancerspara trabalharem comigo nas investigações. E já nessa época imaginava um programa como esse, mas que fizesse investigações na área da justiça cível, porque lá há um juiz soberano que decreta por caneta se você é culpado ou inocente. A sociedade não conhece os bastidores desse negócio. Há ações milionárias, de altíssimo interesse público, que acabam sem cobertura da imprensa. No programa, há sempre duplas de repórteres atuando com o mesmo foco, mas com olhares diferentes. De preferência, elas devem ser até ideologicamente heterogêneas, para que haja controvérsia, conflito. É uma maneira de assegurar um mínimo de eqüidade.

Abordar os bastidores das reportagens responde a uma certa curiosidade em relação ao universo do jornalismo?

De certa maneira, sim. Por isso a escolha de jovens. Com eles rende muito mais. Quando começamos a formatar o programa, pensamos o seguinte: imagine eu, o Carlos Dorneles, os parceiros mais antigos, envolvidos na cobertura do julgamento do caso Suzane von Richthofen. Seria sensacional, mas ia ser mais um entre 200 que acompanhamos em nossas vidas. Já para um garoto que vai pela primeira vez a um julgamento desses, tudo é uma coisa do outro mundo. É um universo tão rico, tão maravilhoso para ele, que rende bastidores seguramente mais atraentes.

Fazer o livro 66, em que você destrincha os crimes praticados pela polícia de São Paulo, foi um tanto arriscado, não?

Eu sabia que havia algum risco nessa investigação, mas imaginava que fosse um risco calculado. Sempre me indignou a violência praticada pela polícia. Ainda hoje, começo a falar sobre isso e fico uma fera. Acho muita covardia, muita brutalidade praticada sistematicamente por ordem de coronéis. A imprensa assina um atestado de fracasso ao conviver com uma situação dessas e não se organizar para combatê-la. A polícia continua matando um jovem a cada 7 horas no Rio de Janeiro. Que negócio é esse? Em lugar nenhum do mundo existe uma polícia assim. Hoje, em São Paulo, o número é menor, mas ainda é muito alto. Mais de 500 mortes por ano significam mais de uma morte por dia.

Você ainda acompanha esses números?

Acompanho, mas não como na época do Rota 66, porque não sou louco de condenar minha vida a ficar em frente de cadáveres, atrás de informações, de sobreviventes. Fiz ali minha parte. Mantenho certo controle estatístico, estou atento à sistemática de atuação da polícia, mas não com tanto rigor.

O livro te rondou por quanto tempo?

Desde sempre, mas trabalhei mesmo de 1985 a 1992. E até hoje vivo com ele. Fui processado sete vezes - o último veredicto saiu há pouco tempo. É curioso: no livro eu só acusei os oficiais, de sargento pra cima, mas quem me processa são soldados. Por esperteza, eles usam o recurso da justiça que permite que quem não tem condições financeiras não precise depositar 1% do valor da causa. Como são ações indenizatórias de 1 milhão de reais, eles teriam que depositar 10 mil para abrir cada ação. E, se perdessem, teriam de pagar as custas - e eles sempre perderam. O engraçado é que eles alegam pobreza, mas sempre aparecem com dois, três advogados... Essa estratégia de me processar foi idéia do ex-governador Fleury. Ele um dia me disse: "Eu salvei a sua pele".

Como ele teria feito isso?

Os policiais estavam me ameaçando, falando bobagens. Seguiam meu carro, vinham atrás de mim no supermercado. Ele teria dito: "Vocês estão só enchendo a bola do cara. Se fizerem algo, vai piorar. O livro vai vender ainda mais. Se há algo errado, processem o autor, vão para a justiça". E aí as ameaças acabaram.

Como agiam esses policiais?

Para ser bem justo, eles eram extremamente violentos, mas, do ponto de vista do crime contra o patrimônio, eram corretos. Não eram ladrões; não eram corruptos. Os assassinatos que eles praticavam faziam parte de uma filosofia extremamente estúpida. Certa vez, um soldado foi pego porque levou propina de uma madame. Na tortura, Ubiratan Guimarães tirou sangue dos ouvidos dele. Porém, se o soldado mata cinco bandidos, ele leva prêmio, tem ascensão de carreira, aumento de salário. A maioria achava que essa "limpeza" era necessária.

Numa entrevista há alguns anos, você disse que, se fosse fazer um livro similar ao Rota, seria sobre o Bope. Lembra-se disso?

Lembro, sim. E tinha razão, não tinha? Fizeram o
Tropa de Elite e deu super certo. Grande sucesso... “O país tem que respeitar a vida, ou nada funciona”

Você assistiu ao filme? O que achou?

Assisti, sim. Não quero comentar muito porque detesto criticar a obra alheia. E, como é ficção, o diretor tem todo o direito de criar o que quiser. O que me preocupa é como a sociedade está interpretando o filme; como se aquilo fosse o que acontece nas ruas. Estão transformando em herói um cara que é um personagem de ficção.

O que te levou a fazer Abusado, uma espécie de biografia do Marcinho VP, líder do tráfico no morro Dona Marta?

Esse cara era um personagem interessante. Seria bem-sucedido em qualquer segmento fora do crime, se tivesse tido oportunidade, ou encanado em ser um cara honesto. Ele mesmo reconhecia isso: "Eu quero é ser bom no que faço. No crime, ninguém é melhor traficante e assaltante do que eu. Agora, tapete de bacana eu não quero ser. Trabalhar em portaria, como o meu pai, vender cachaça em botequim... Isso é muito pouco para mim. Eu quero mais".

Dinheiro, poder? O que o levou para o tráfico?

As duas coisas. Assisti a diálogos da época do rolo com o cineasta João Moreira Salles, que queria tirá-lo do tráfico. A irmã do Marcinho dava broncas: "Pô! Quantas pessoas deram sangue pela firma e você vai deixar isso assim? Acha que ele vai garantir a vida de todo mundo?". E a irmã nem era traficante... Ele era muito aventureiro, e ingênuo também. Tanto que acreditava que o subcomandante Marcos, de Chiapas, fosse fazer uma parceria com ele para ganhar a Zona Sul.

Por que Marcinho morreu?

É uma grande pergunta. Ele estava dentro da cadeia. Há quem tenha apontado o fato de o livro ter falado da vida dele. A polícia falou isso no mesmo dia da morte. Mas sabe como é a polícia. Tanto que já passaram quase cinco anos e não se sabe nada de concreto. O certo é que a unidade onde ele foi morto é do Comando Vermelho. Outra coisa que indica que o assassinato tenha sido obra da facção é que o Claudinho é hoje comandante do Dona Marta. Ele era inimigo do Marcinho desde adolescente. Era um problema: o Marcinho traçava todas as meninas; o Claudinho, nenhuma.

No livro, você relata um certo idealismo do Marcinho. Há espaço para isso hoje?

Tudo indica que não. Até parte da sociedade pensa com cabeça de matador. Tem muito intelectual e jornalista aplaudindo esse tipo de postura. No crime, também os matadores tomaram conta do Comando Vermelho. Tanto que esses julgamentos sumários não existiam no passado. Existia só em algumas situações determinadas. Hoje eles mandam nas cadeias. Essas figuras cresceram muito. Tem toda uma herança dos esquadrões da morte da polícia, que proliferou e entrou no crime também. Se você for ver, uma execução do Comando Vermelho é idêntica à execução do Bope, da Rota. Não tem o que tirar nem pôr.

De maneira geral, qual o perfil desses traficantes?

Conheci um intelectual britânico com uma tese muito interessante. Ele estudou a fundo o tráfico, trabalhando para a polícia britânica. Chegou à conclusão de que os traficantes, do ponto de vista do perfil psicológico, têm uma mentalidade idêntica à dos executivos das transnacionais, desses que querem lucros exorbitantes acima de tudo, não respeitam direitos trabalhistas e fazem linhas de produção lá na Conchinchina para não ter que pagar impostos.

Só que eles morrem mais cedo...

Os criminosos da velha guarda acham o traficante um careta do crime. É um tédio, realmente, a vida do cara. Compare o assaltante "romântico" com um traficante. O assaltante só trabalha com informação de qualidade. É fácil obter isso, porque os parentes estão no mercado formal. Eles sabem onde está o dinheiro. A cidade não é partida, como diz o Zuenir Ventura. É partida para os bacanas. Para quem é pobre, não. O pobre sobe e desce o morro, conhece os dois lados. Mas, como eu dizia, o assaltante não precisa ter o esconderijo dele; não precisa ter uma quadrilha. Ele contrata . Às vezes, vai no traficante amigo, que tem arma, além de soldados, e diz: "Quero meio dúzia aí". Já traz soldado com arma. E vai para a parada. Se der certo, paga o prometido e vai gastar com as namoradas, porque vai ter um monte a fim de gastar a grana dele. Não precisa ficar em casa; vai para o morro vizinho, chega de bam-bam-bam no baile funk... É uma vida sensacional, do ponto de vista de quem não gosta de trabalhar. Ganha fácil, isso se não morrer.

Já o traficante...

Pois é. O traficante é um comerciante ilegal. Diz a lei do comércio: comércio bom, dono perto. Ele tem que estar ali. É escravo, refém do esconderijo. Precisa ter segurança confiável, então tem que pagar bem, senão o concorrente paga mais e o mata. Tem que ter esconderijo para essa gente. Tem que ter arma, e boa. Tem que ter lugar para guardar as armas; lugar para guardar a munição. Depois, matéria-prima: tem que negociar bem, conseguir o melhor preço; tem que ter um bom atacadista. Tem que ter onde guardar a droga, porque senão roubam. Tem que ter esconderijo para a endolação, que é a embalagem da droga. Tem que comprar o policial do batalhão. O cara da igreja evangélica, o padre, os líderes comunitários - ele tem que conviver com todos. Se vem a polícia, que troca tiro, mata ou fere alguém, tem que ter hospital de confiança para levar os parceiros, senão vão ser presos assim que chegarem. Precisa pagar ambulância, enterro... O cara precisa administrar isso tudo.

Apesar disso, o tráfico ainda é extremamente atraente...

Costumo dizer que essa situação só vai mudar quando pagarmos melhores salários. É uma questão de concorrência. Por que o cara vai repetir a trajetória do pai ou da mãe, sabendo que eles trouxeram para a vida deles aquela realidade? E se uma empregada, em vez de 450, 500 reais, ganhasse 3 paus? Evidentemente, se há no mercado formal um salário desses, você vai querer ganhar mil no tráfico? Claro que não. Muita gente não gosta de encarar isso. É melhor atribuir o problema da violência à falta de educação ou à desarmonia das famílias. 

Você acha que a criminalidade se entranhou na nossa cultura? 

Quando eu era correspondente na França, recebi uma encomenda de uma matéria sobre o tráfico de drogas em Paris. Busquei a brigada mais eficiente de combate às drogas. Queria acompanhar o trabalho deles. Então me levaram ao bairro onde há a maior incidência de tráfico. No caminho, comecei a perguntar a um dos policiais sobre as estatísticas de violência, quantas mortes haviam ocorrido naquele ano. O cara não entendeu a pergunta. Pensei que fosse o meu francês vagabundo, mas não era. Ele achou estranho eu perguntar de morte, porque não lembrava se tinha ocorrido. "Pois bem, mas e crime contra a vida?" E ele: "Bom, teve uma facada. E o cara está preso." Isso na área mais violenta de Paris... No Brasil, nós matamos 48 mil pessoas por ano. Isso é muito grave. Você vê, outro dia uns empresários de uma multinacional foram presos contratando matador para pegar um gerente. Há um desrespeito generalizado à vida.


A impunidade contribui para isso, não?

Nem deveríamos divulgar o índice de punição dos crimes de morte. É inferior a 2%. Se você tem a certeza de que sua chance de ser preso é de menos de 2%, se matar, por que vai buscar a justiça contra o seu sócio, contra o seu vizinho? Vai demorar 7 anos, gastar uma grana, com o risco de não levar nada. Se o cara não é bom da cabeça, contrata um matador. Não existe apuração séria, sobretudo se um dos lados é mais fraco. Os poucos casos que têm punição envolvem dois poderosos. Aí surgem bons advogados dos dois lados e a justiça funciona. Foi o que aconteceu no caso da Suzane von Richthofen. A gente fez um
Profissão Repórter sobre o caso. O processo tinha 3 mil e tantas folhas. A polícia trabalhou como se fosse a polícia francesa. Foi extremamente eficiente.

E nem sempre isso acontece...

Nesse mesmo programa, analisamos casos que não envolviam gente poderosa. Pegamos os casos de 1º de outubro até o final daquele ano para ver como a polícia tinha trabalhado. Eram 350 casos, dos quais 345 já estavam arquivados, com 20, 30 folhinhas vagabundas. Nem sequer testemunhas eram ouvidas. Isso porque eram crimes que aconteceram, muitas vezes, às 7 da noite, em frente a um ponto de ônibus, botequim aberto, mercadinho funcionando, umas 400 pessoas assistindo. E nada - nenhuma testemunha ouvida. A mesma cidade, a mesma realidade social, política e econômica. A mesma polícia.
De um lado, 3.900 páginas; do outro, 10, 15 folhas. Aqui as coisas funcionam assim. Não se leva a sério a vida. Acompanhei recentemente um caso com um pessoal da Receita Federal. Eram sete pessoas, uma força-tarefa maravilhosa. Mas mataram o primeiro deles, e os outros, ameaçados de morte, dissolveram o grupo. Como exigir que o cara vá contra a realidade? A tendência é que, correndo o risco de morrer, você não vá investigar mais. Então por isso eu acho, e pode parecer uma obsessão doentia, que a questão da vida é tão essencial. O País tem que respeitar a vida, ou nada funciona.


O que podemos esperar diante dessa sua inquietação?

Estou pensando em escrever sobre violência, mas agora indo nas raízes. Já comecei a apurar, mas está longe ainda. Estava com vontade de buscar informações lá atrás, em 1800 e tanto. Coisas relacionadas com violência na família - um que morreu porque estava pulando a cerca, o outro que foi vingar a morte do irmão. Queria mexer com isso, entender por que o povo brasileiro pode ser tão violento. Eu queria me aprofundar nessas questões para aprender mais sobre isso tudo que estamos falando. O País está bombando em tantas coisas, na área de economia e tal, mas tem esse entrave que impede que vá para frente. Por que ficou desse jeito? Por que um povo tão legal, tão maravilhoso, tão bacana em tantos aspectos tem também esse componente tão grave? Vamos ver se consigo encontrar uma explicação.




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