15 de junho de 2013

Viajando através das letras - 3





                      Anchieta Fernandes
                                         Em 1969, o Departamento Estadual de Imprensa publicou o quarto livro do poeta, pintor, contista, teatrólogo e cronista Newton Navarro. O título do livro: “30 Crônicas não Selecionadas”. Depois de livros de poesia (“Subúrbio do Silêncio”, Departamento de Imprensa, 1953; e “ABC do Cantador Clarimundo,” FJA, 1966) e um de contos (“O Solitário Vento do Verão”, Governo do Estado, 1961), Navarro experimentava agora o instrumento literário da crônica, ciente de que, conforme uma das frases-epígrafes do livro, “um jornal é um pouco como um organismo humano (...), a crônica é o seu coração”( Vinícius de Morais).
                                              Dentre as 30 crônicas, 8 são dedicadas a lembranças navarrianas de Paris, a mágica capital da França. Nestas crônicas, ele não narra propriamente lances de viagem entre Natal e a Europa, e sim expressa seu deslumbramento, por vezes até místico, com lugares. Tais crônicas são como que cartões postais em forma de textos. A primeira (“Meditação sob a Rose Nord”) fala de uma igreja, a partir do olhar de artista plástico que Navarro era, contemplando os vitrais da igreja, onde os personagens pintados estão “parados no vidro, imersos na cor lilás e púrpura ou nos macios tons de azuis profundos”.
                                                  E Navarro traz ao leitor uma cena histórica ali acontecida com um personagem histórico: a conversão do poeta Paul Claudel; “recebias Claudel, no alto meio-dia de tua misericórdia”. Aliás, Claudel, como está dito em sua biografia na “Nova Enciclopédia de Biografias” (Planalto Editorial Ltda., edição 1979), se tornou um católico fervoroso, e “sua temática circula em torno do conflito entre o desafio dos sentidos e Deus e a possibilidade da salvação pela renúncia e repressão do desejo”. Também teatrólogo, Claudel escreveu peças como “A Anunciação a Maria” e “O Sapato de Cetim”, além do poema “O Homem e seu Desejo”, teatralizado.
                                                     Aliás, em seus passeios por alguns locais religiosos de Paris, Newton Navarro vai mencionando os nomes de outros artistas e escritores que tiveram algum relacionamento com o espaço destacado. Na crônica “A Colina”, ele escreve: “Vou subindo lentamente a colina do Sacré Coeur. Prefiro mesmo os lances maiores da rua Utrillo, onde tantas vezes o velho pintor Maurice deve haver descansado, a pintar a colina branca, seus arredores, as árvores, o campo maior da cidade, lá embaixo, assim tão exposta, como agora me permite ver a bruma que se dissipa.” E então, Navarro fala também sobre outro escritor místico: Charles Péguy.
                                                         Maurice Utrillo, filho da pintora Suzanne Valadon, de quem aprendeu as primeiras noções de arte. Teve crises nervosas, e algumas vezes internou-se em casas de saúde. Neste ano de 2013, completa-se o primeiro centenário de sua primeira exposição em nível individual, inaugurada na Galeria Eugene Blot, na Rua Richepanse, em Paris, em maio de 1913. Um dos seus temas preferidos eram as ruas parisienses, os grandes monumentos vistos pela fachada, como a Catedral de Notre Dame. Captou esteticamente as várias nuances de cores dos arredores do Sacré Coeur. Era considerado um médium, mensageiro dos deuses da Arte.
                                                              Já Charles Péguy teve um itinerário de vida interessante, a bem dizer, duas fases contraditórias. Primeiro, foi um socialista, editando a revista “Os Cadernos da Quinzena”, que revelou muitos escritores franceses modernos. Desde que publicou um ensaio sobre o filósofo metafísico Henry Bérgson, evidenciou sua tendência ao misticismo. Terminou por romper com o movimento socialista francês, escrevendo desde então livros úteis à hagiografia cristã: “O mistério da Caridade de Joana D’Arc” (1910), “O mistério dos Santos Inocentes” (1912), “Eva” (1913), além de em “Nossa Pátria”, de 1905, ter defendido a regeneração da França.
                                                                          Uma tarde parisiense inspirou a Navarro o texto publicado no livro, sob o título “Dedos de mulher e conhaque”. O cronista natalense situa a cena nas luzes dos Champs Elysées. Aliás, ele talvez estivesse tomando um “conhaque cheio de luzes dos Champs Elysées”, frase que inicia a crônica. Texto que também pode ser definido como conto. Um conto surrealista. Veja-se um trecho: “Vá. Suba em espirais de irrealidades que em Paris passam a ser reais. Tome as leves mãos da mulher e deposite na mesa como um ramo de flores. Sirva-se do seu dedo anular muito longo e branco, de unha rósea, para um tira-gosto. Vá provando à vontade a mão alongada.”
                                                                               Aquela tarde em Paris, bebendo conhaque, fumando espirais azuis de fumaça, comendo surrealisticamente uma mão de mulher num bar dos Champs Elysées, foi o clima da cidade mágica oferecido ao cronista/poeta, imaginando sonhos, enquanto as luzes da cidade se acendiam ao crepúsculo, e ele buscava no possível leitor a parceria criativa para descrever o sonho surrealista, ao lado de outro poeta, este francês, Jacqus Prèvert. Navarro fez  um convite ao leitor: “Recite Prèvert, por precaução, contra doenças da alma”, e, mais adiante, garante: “um anjo azul, saído da tela de um pobre pintor primitivo, num atelier de Montmartre, cuida de enfeitar seus dedos com flores japonesas.”
                                                                                 Jacques Prèvert (1900-1977) foi um dos mais criativos representantes do movimento surrealista francês. Publicou em 1946 seu livro de poemas “Paroles” (Palavras). No ano anterior, no Teatro Sarah-Bernard, de Paris, havia sido representado seu bailado “Le Rendez-vous”, com música de J.Kosma e coreografia de R.Petit . Prèvert também contribuiu para o cinema francês desde 1932, como roteirista, para filmes dos mestres Jean Renoir e Marcel Carné. Mas começou mesmo fazendo, no referido ano de 1932, o roteiro do filme “L’Affaire est dans Le Sac”, dirigido por seu irmão Pierre, que se afirmaria também no cenário da Sétima Arte com outros filmes apreciados.
                                                                                      Aliás, por falar em filmes, um dos registros de Newton Navarro, para contar suas lembranças de Paris no livro “30 Crônicas Não Selecionadas”, foi sobre o filme”Mon Oncle” (Meu Tio), do diretor francês Jacques Tati, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1958 e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1959. Aliás, “Meu Tio” foi o primeiro filme colorido (em eastmancolor) de Tati. A crônica sobre o filme, no livro de Navarro, é quase uma demonstração de como escrever críticas sobre filmes sem muita exibição de conhecimento técnico da linguagem cinematográfica; ou seja: escrever com sensibilidade, refletir no texto os tons poéticos do ver o ser do humano.
                                                                                           Veja-se os trechos principais: “Nada me entristeceria depois que saí do cinema. Uma canção levava eu em meu sentimento, no meu coração. A beleza do grande mundo de Tati. A renovação das coisas, que a picareta não destrói, ao derrubar velhos muros musgosos.O cântico da vida se renovando na graça permanente dos meninos. As fatias gostosas, o doce da vida escorrendo na massa saborosa, o açúcar penetrando nas mãos sujas, também de vida, do alegre e poético vendedor de subúrbio, que tem seu negócio instalado num fundo de quintal entre cães vadios, tufos de capim brabo, paredões de terra roxa. Ganhamos todos um mundo novo. E em nós ressurgiam vozes juvenis do que já fomos.
                                                                                                  Ah! Mon Oncle, Mon Oncle! Alma do mundo vivo do passado, as confusas gerações do mundo novo, os bêbados, os teus tipos tão nossos, tão de todo o mundo Jacques Tati. Teu bairro de pobreza tão rica. E aquele cenário que se iluminava com o sol, pequeno sol  de tua vidraça pobre! Todos aqui te esperamos para muito breve . Volta, Tio, volta com teu canarinho, teus cachorros, tua bicicleta, teu guarda-chuva, onde escondes (quem sabe?) toda a tua poesia. Volta com tuas meias listradas de saltimbanco. Mas volta contigo mesmo, sobretudo. Com a tua bondade permanente daquele nosso saudoso e feliz Tio, que vem todas as tardes libertar das convenções da família e das crueldades do bairro sofisticado.”
                                                                                                              Um dos pontos imprescindíveis a conhecer de perto, por quem visita Paris, é a Torre Eiffel, famoso monumento de ferro, com 1.792 degraus, construído em 1889 para a Exposição Universal de Paris. Seu projetista foi o engenheiro Alexandre Gustav Eiffel. Existe elevador para levar os turistas até ao topo. Newton Navarro a visitou num fim de tarde nublado. Não é possível descrever toda a emoção que o pintor/poeta sentiu, sem transcrever trechos da crônica “A Torre”: “O tempo enfarruscado ameaça a noite. Mas, mesmo assim, a Torre Eiffel parece uma tentação aos nossos olhos. Na vertigem colossal com que os seus trezentos metros varam o céu nublado de Paris, é um convite mais desafiador (...).
                                                                                                                São três afoitas etapas a vencer no fio rolante que iça, suavemente, os elevadores. E a subida é fascinante. Daqui e dali, de todos os cantos, Paris também ascende.” A chegada ao topo, ao varandim, entusiasma mais ainda o escritor: “E por fim, o tope, o ponto alto, o deslumbramento total. Do varandim, por inteiro, a cidade é sua. (...) Adivinhe mesmo, dentro da bruma, o melhor de Montmartre, o mais descansado do Bois de Boulogne, o mais misterioso dessas ruas que serpenteiam ao longe. (...) A torre silenciosa, alta, poderosa, sustenta sua admiração e o seu pasmo. Sustenta mesmo o seu nervosismo. Garante-lhe a prodigiosa visão, agora que Paris vai começar a se acender.”
                                                                                                                             Da   Torre Eiffel, no poeta o pintor lembrando Marc Chagall, que, apesar de russo de  nascimento, foi uma das figuras-chaves da chamada Escola de Paris. Olhando a cidade do alto da torre, “quase a se oferecer a um demorado toque das mãos ávidas”, Navarro foca o seu olhar no rio Sena, “como se possível fosse agitar o verde musgoso desse Sena que demora lá embaixo. Arrancar-lhe os peixes e plantá-los nesse céu de chumbo, como fosse Chagall”. Com certeza, Navarro estava recordando, dentre outras, a tela “O tempo não tem limites”, onde o pintor nascido em Vitebsk (Rússia) em 1887 e falecido em Saint-Paul de Vence (França) em 1985 visualizou no imaginário um peixe alado navegando no infinito.
                                                                                                                                       Dos momentos humanos mais fortes, nessa visita de Newton Navarro a Paris, em outubro de 1965, foi a amizade com um velho garçom de um pequeno café. Se tornaram tão amigos que, durante todas as manhãs em que o autor de “30 Crônicas Não Selecionadas” ia lá, tomar chá com leite e brioche, era recepcionado pelo velho garçom chamando-o pelo próprio nome: “Bom jour, Monsieur Navarro.” E o cronista  deixou de ser apenas o freguês pontual, para ser também o parceiro de “conversas soltas”, onde o garçom ficou sabendo da nacionalidade brasileira de Navarro, revelando ser admirador de Pelé e conhecedor de um samba “cantado pelas telas da cidade. Talvez no Orfeu do Carnaval.”
                                                                                                                           Navarro, é claro, se interessou em saber detalhes da vida do velho garçom. Sem muito movimento no café, em determinado momento o velho  foi contando um pouquinho de sua história: que era do interior, da região Norte da França. Deixemos com o estilo gostoso do cronista, a continuação da fixação deste flagrante humano nascido de uma amizade amarrada em instâncias turísticas: “Mas o muito tempo de Paris lhe dá  segurança de homem da capital. E acrescenta  com um tom de profundo sentimento que Paris já é sua...” Em pouco tempo, uma revelação do garçom despertou em Navarro também o sentimento de consciência política, existente em todo escritor autêntico.
                                                                                                                          É que o velho tivera um filho, chamado Antoine, que morrera moço, “lutando, em plena rua, lá perto da Cite, numa barricada.” Fora um herói da Resistência francesa na 2ª Guerra Mundial. Navarro encerra a crônica “Pago a conta e me retiro” Do seu canto o velho agradece a saudação de despedida. “Antoine vai nos meus sentidos. É a ele que agora falo – Bom dia, Monsieur Antoine. Meu jovem e bravo parisiense, morto pela glória de deixar Paris tão livre, nesta  manhã  para que eu a sentisse e amasse por ele, pelo seu jovem coração que a terra francesa faz transformar, toda primavera, em luminosas flores.”                                                                                                    

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