15 de maio de 2013

Regina Casé




Escrito por redação / Almanaque Brasil

"A favela é a metáfora de tudo o que se tenta jogar para baixo do tapete." 

Não há razão para gastar muita tinta e papel fazendo a apresentação. Ela dispensa. Como atriz, há tempos é cara mais do que conhecida - pelas novelas, programas de humor, minisséries ou cinema. Mas Regina Casé não se contenta. Quer mais. Nos últimos tempos, tem deixado a carreira em quarentena para assumir outro tipo de atuação: “política, ideológica”, define. Seja nos programas Um Pé de Quê, do Canal Futura, ou Central da Periferia, da Globo, ou ainda no quadro semanal Minha Periferia, do Fantástico, deixa sempre a sua marca, provando que na tevê é possível, sim, arriscar, divertir, informar, fazer pensar. Corre o País de norte a sul, por favelas, rincões, periferias, povoados. “Impressionante o número de pessoas que beijei e abracei nesse último ano.” É uma demolidora de paradigmas, sempre disposta a lançar outro olhar sobre o que está debaixo do nariz e que ninguém vê, ou se recusa a ver: um Brasil com outros valores, outra cultura, outras histórias. “Vejo um País que não está escancarado, não o brasilzinho que se lê no jornal.”


Como você consegue dar conta de tantos trabalhos ao mesmo tempo?

Acho que a palavra que me descreveria melhor é fominha. No final do ano passado, por exemplo, em um momento em que eu estava no máximo do envolvimento com meu trabalho “documental”, recebi o convite: “Você quer ir para o Acre fazer Amazônia?” Eu pensei: “Puxa, se eu não fizer, quando é que eu vou para o Acre?” Em suma: em dezembro gravei a minissérie, o Central da Periferia e o Minha Periferia, que é semanal. E ainda tinha um especial de Natal e outro de Ano Novo no Fantástico. Essa situação é uma arapuca que eu mesma criei, por isso digo que sou fominha. Tem gente que fica meio deprê, dizendo: “Não tem nada que me interesse.” Percebi que sou o contrário dos outros. Todo dia vou dormir arrasada, não porque nada me interessa, mas por não dar conta de fazer tudo o que quero.

Não é mais confortável ser só atriz?

Muito mais. Eu morro de rir quando alguém fala: “Meu Deus, já vai começar a novela, minha vida vai virar um caos.” Eu só fiz duas novelas inteiras do primeiro ao último capítulo, fora as participações especiais. E, nas duas, a minha lembrança é como se eu estivesse de férias. É um trabalho que já vem pronto. Alguém me dá um texto, eu decoro, vou lá e faço. Não tenho responsabilidade nenhuma sobre as outras pessoas que estão ali, sobre o resultado final. No Minha Periferia, fico envolvida até com a segurança da equipe. Além disso, tenho que ser engraçada, animada, inteligente. Tenho que decorar textos, pensar na pauta da outra semana, nos relacionamentos com a equipe, com meu marido [Estêvão Chiavatta], que é o diretor e produtor. Fazer novela, para mim, é como ir pra Cambuquira - uma estação de águas, vida calma, ar refrigerado. Nos meus programas, sempre tem um calor incrível, mil cheiros, trânsito, poluição, milhões de circunstâncias que não aparecem.

Você ocupou um espaço que não existia: horário nobre com criatividade, ousadia, outra visão sobre a sociedade. Você imaginava que seria possível essa conquista?
Acho que, quando se é jovem, temos muito mais preconceito com quem é mais velho do que o contrário. Pelo menos essa é a minha experiência. Todas as minhas amigas mentiam para os pais. Quando iam dormir com o namorado, diziam que estavam na casa da amiga. Eu sempre falei tudo para a tia com quem eu morava. O Asdrúbal Trouxe o Trombone foi criado dentro da casa dela, que era uma velhinha. Para mim, o mesmo vale para quem está no poder. Acho que, no caso da Globo, senti em toda a minha trajetória muito mais preconceito por parte das produtoras independentes, dos artistas - seja no cinema ou no teatro -, do que o contrário. Acho que esse muro é construído pelos dois lados. No meu caso, tratei de conquistar confiança para arriscar em projetos mais kamikazes.

Havia gente que te olhava com desconfiança?

Para a minha geração do teatro, fazer alguma coisa na Globo era execrável. O máximo que se podia fazer era ganhar um dinheiro para depois montar uma peça bem cabeça. Quando eu era novinha, ao contrário de muita gente, queria ser “engolida pelo sistema”, “triturada pela engrenagem”. Assim poderia fazer o que queria e achava legal, e para todo o País. Adorava trabalhar no Asdrúbal. Quando parei, resolvi que teria que fazer na Globo uma coisa tão legal quanto aquela. A gente vive aqui querendo que a referência seja a literatura, como é na França, ou o cinema, como é nos Estados Unidos, mas não adianta. Aqui é outro papo, a referência é mesmo a televisão.

Qual a importância dos parceiros na sua produção?

Imensa. O Asdrúbal, por exemplo, foi minha escola, de como eu trabalho, de como funciono. A gente viajou o Brasil inteiro por uns dez anos. Igualzinho a agora. E também era um mundão de gente. Ali aprendi muito sobre a relação com os lugares, com as pessoas. Graças a Deus, ao longo da minha vida, fui acumulando parceiros. O autor da primeira peça que fiz foi o Hamilton Vaz Pereira. O autor da mais recente também. O Luiz Fernando Guimarães foi o primeiro cara com quem atuei, e agora, se eu fosse voltar a ser atriz e montar um espetáculo, chamaria ele na hora. A amizade, a cumplicidade e a sintonia estão intactas. Cada parceiro vem por um atalho. O Leonardo Neto, por exemplo, era empresário da Rita Lee. A gente tem uma trajetória linda. Os últimos trabalhos que fiz são impregnados da energia e da concepção dele. Sem ele, talvez não fizéssemos o Central da Periferia. O Guel Arraes e o Hermano Vianna nunca tinham feito um programa de auditório. O Hermano, por sinal, é minha alma gêmea - se eu fosse presidente e ele me escrevesse um discurso com mil comprometimentos, eu poderia subir no palanque sem ter lido antes. Todas essas pessoas são muito importantes para mim, apesar de, na tela, eu aparecer sozinha.

Qual é a diferença entre trabalhar com a equipe de uma produtora independente e com a da TV Globo?
A Pindorama veio quando o Estêvão apareceu na minha vida. Agora temos a possibilidade de produzir separado, ter autonomia. Foi a carta de alforria. A gente vai para a favela com três pessoas. Antigamente eu tentava fazer isso tudo com a equipe da Globo, o carro da Globo, com 500 contrarregras… Você imagina o que é dar um pulinho lá em cima, no São Carlos, com 30 carros da Globo? Há uma porção de entraves.

Qual a sua referência para a criação desses programas? Teve influência, por exemplo, das produções da Olhar Eletrônico nos anos 1980?

Não, acho que não. Talvez não tenha nenhuma referência. Já trabalhei com o Tadeu Jungle, o Cao Hamburguer, o Marcelo Tas, o Fernando Meirelles, todo esse pessoal de São Paulo que veio da Olhar Eletrônico. Brinco que eles são mais chiques. Eles têm uma coisa “menos tv e mais cinema”. Mas é claro que temos muitas afinidades e correspondências. Ao mesmo tempo, tiro sarro. Mesmo quando eles fazem televisão, fazem em película. Eu digo que a película é a camisinha que o pessoal do cinema põe pra fazer televisão, pra não sujar, não pegar nenhuma doença. O Fernando me chamou para dirigir e escrever quatro episódios de Cidade dos Homens. Foi ótimo trabalhar com ele, ele é genial.
Difícil mesmo é lutar por algo que ninguém está julgando, nem por mal. Aquilo não existe.

No Central da Periferia você mostra manifestações culturais para as quais se costuma torcer o nariz. Vocês têm feito um investimento grande para desconstruir esses paradigmas. Tem sido difícil?

Não é fácil. Às vezes você aposta todas as cartas num cara que muita gente acha que não tem valor, que não é nada. E eu fico: “Pô, será que eu estou maluca? Estou achando isso legal pra caramba!” Por exemplo, a banda Calypso é julgada como cafona, brega. E aí eu vou lá e digo: “Não, olha só o que tem aqui. Olha quem são os professores do Chimbinha: todos mestres da guitarrada, todo mundo do carimbó. Olha que legal, como tem coisa atrás disso.” Dizem: “O axé é uma droga.” E eu: “Presta atenção como nisso estão presentes o samba duro da Bahia, o samba do Recôncavo.” Até aí tudo bem, é até fácil. Eu e o Hermano já estamos escolados de brigar por esse tipo de coisa. Difícil mesmo é quando se trata de algo que não tem nenhuma existência, que ninguém está julgando, nem por mal. Simplesmente está sendo anulado. Aquilo não existe.

Como você definiria os propósitos dos programas que tem feito?

Não tenho vergonha de dizer, e acho que o Guel também não, nem o Hermano, que a gente faz um trabalho político, ideológico. Não tem jeito. Já no Programa Legal havia uma ideologia clara: Olha, tem muita gente se divertindo de um jeito que você acha que é horrível, ou de que você tem medo, ou que você desvaloriza. As coisas não precisam ser só do seu jeito para serem legais. No Minha Periferia e no Central, batemos bastante na questão da vida nas favelas. É preciso dizer que pobreza não significa criminalidade. Eu sempre dou uma estatística básica. Na Rocinha moram 400 mil pessoas. Quantos bandidos você acha que tem lá? Pode contar qualquer soldadinho, qualquer um que esteja com arma. Duvido que chegue a mil. Pra dar 1%, você precisaria de 4 mil bandidos. E você julga as outras 399 mil pessoas por aquela minoria. Todo mundo passa com o vidro fechado e apavorado pela Rocinha, sendo que tem 399 mil pessoas que estão sendo tratadas injustamente, de uma maneira errada. É como se alguém estivesse o tempo todo te acusando de ladrão, de assassino. O tempo todo da sua vida - da hora em que você acorda até a hora em que vai dormir; do dia em que nasce até a morte. É uma criminalização do espaço, do lugar onde essas pessoas vivem.

Você demonstra um envolvimento emocional grande com as coisas que retrata.

Acho que às vezes me envolvo mais do que devia. Às vezes me sinto como uma estagiária da Pindorama, que é “adesão total” - vai para a favela e acha tudo lindo, e fica carregando cinco crianças ranhentas no colo. Eu, por mais que já tenha ido mil vezes a favelas ou periferias, sempre me espanto. É fascinante o poder de transformação, a força de quem vive em condições tão adversas. Sinto, às vezes, que não consigo lidar com aquilo de uma maneira mais sóbria. E depois, quando assisto aos programas, penso: “Tá parecendo que tá tudo lindo, que viver na favela é uma maravilha.” Eu tenho que me controlar o tempo todo. No último Central da Periferia de 2006, fizemos uma retrospectiva com os melhores momentos. Apareceu a gente em vários lugares durante o ano. Assistindo, fiquei impressionadíssima com o número de pessoas que beijei e abracei nesse ano. Mas assim, de beijar muito, abraçar muito, de saber, quando vejo na televisão, como eu estava emocionada; como realmente estava comovida. Aqueles são encontros verdadeiros.

A vida nas periferias ainda é desconhecida para quem não vive nelas?

Muito. A pontinha do iceberg é a empregada da sua casa. Recentemente liguei para o Arnaldo Jabor para agradecer por uma coluna em que ele elogiou o Central da Periferia. Ele escreveu que considerava o programa revolucionário, que o governo tinha de fazer o que a gente faz: entrar na favela, mas não com a polícia. A favela é a metáfora de todos os problemas que a gente tenta botar pra baixo do tapete. A ideia que está na gênese do Minha Periferia e do Central da Periferia era um programa chamado A Visita. Acabou virando só um quadro no Fantástico, no final do ano passado. Nele, um garoto loirinho, de 13 anos, que jogava tênis numa academia em Cosme Velho - um lugar lindo - ia visitar o menino da mesma idade que pegava as bolinhas enquanto ele jogava. Ia lá para o topo do morro da Santa Marta. Foi ótimo.

Por que o programa não vingou?

O quadro-base, que dá origem a tudo, é a madame que vai na casa da empregada, o morador que vai na casa do porteiro, a criança que vai na casa da babá, a adolescente que vai na casa da manicure. Só que ninguém mais topou participar. E não é nem que eu consegui poucas pessoas. Eu não consegui nenhuma pessoa. Tentei fazer, por exemplo, com uma mulher que lavava, passava e engomava camisas. Você não imagina o lugar onde ela trabalhava, o percurso que essa mulher de 60 e tantos anos fazia, de subir o morro para lavar essa camisa e trazer de volta. Se o dono por um segundo tivesse essa dimensão, aquilo mudaria a vida dele. Ele pensaria nisso cada vez que usasse a camisa. Contei essa história para o Jabor. E ele: “Pois é, mas acho que eu mesmo não ia querer ir. Sabe por quê? Não é porque eu tenho medo de ir à favela. Eu teria medo de ver como é a casa da minha empregada. Eu teria medo de ver a injustiça, de ver que essa pessoa que está dentro da minha casa vive daquele jeito.” Ele resumiu muito bem esse sentimento.

Qual a sua grande constatação em relação ao País?

Vejo um País que não está escancarado. Um País que eu já enxergava no sertão, e que na favela vejo ainda mais. O que mais me assusta é que mesmo quem é do bem, pessoas que eu admiro, que eu sei que têm o maior empenho para que essa realidade mude, não têm a menor ideia do que são esses lugares, do tamanho das favelas, das periferias, do Brasil que ninguém está vendo. Não é o brasilzinho que se lê no jornal. Eu, que não sou nenhuma princesa de torre de marfim, com 30 anos de experiência, no ano passado me surpreendi como se tivesse descoberto um continente. É como se você achasse que já conhece bem o mapa-múndi, e de repente descobrisse um lugar desconhecido maior do que a Ásia.

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