22 de fevereiro de 2013

VIAJANDO ATRAVÉS DAS LETRAS – I

Anchieta Fernandes


Não sei se por causa do meu signo (no volume dedicado ao signo de Gêmeos, na coleção “Os Signos do Zodíaco”, da Editorial Presença, de Lisboa é dito claramente: “os Gêmeos gostam muito de viajar”), eu gosto de viajar. Mas tenho me dedicado pouco a essa atividade, devido a uma circunstância pessoal: tenho medo de viajar sem uma pessoa da família me acompanhando. Irmãos e irmãs têm viajado até pela Europa, mas eu me acharia um intruso, atrapalhando os planos de irmãos com suas famílias e de irmãs com seus interesses específicos femininos.
  Devido a isso, não conheço nenhum outro país fora o Brasil, e conheço poucos municípios do meu próprio Estado, o Rio Grande do Norte. Mas, refletindo melhor: conheço outros países e outros municípios potiguares, através de excelentes livros de viagem de escritores norte-rio-grandenses, que sabem colocar o sal necessário nas receitas dadas quanto a comidas e restaurantes existentes mundo afora,e bonitas e intensas cores no estilo com que descrevempaisagens, ruas e monumentos estrangeiros. Assim, com esta série passo aos leitores minhas impressões das impressões de viajantes da nossa terra.
É claro que o primeiro livro de viageminteressante,de autor norte-rio-grandense, é mesmo “Viajando o Sertão”, do mestre Câmara Cascudo. Resultado de uma excursão oficial do interventor Mário Câmara para o interior do Estado, acompanhado de técnicos em educação, agricultura e açudagem, e do escritor Câmara Cascudo, para fazer o registro da viagem em estilo reportagem. De 16 a 29 de maio de 1934, esta viagem aconteceu, os viajantes se servindo de diversos veículos: automóvel, auto-de-linha, trem, canoa, rebocador, cavalo e hidroavião.
Partindo de Natal, o roteiro incluiu as cidades de Macaíba, Santa Cruz, Cerro Corá, Angicos, Açu, Paraú, Augusto Severo (atualmente tendo voltado ao antigo nome Campo Grande), Caraúbas, Patu, Almino Afonso, Lucrécia, João Pessoa (atualmente como antigo nome Alexandria), Luiz Gomes, Pau dos Ferros, Itaú, Apodi, Pedra de Abelha (atualmente, com o nome Felipe Guerra), Mossoró, São Sebastião (atualmente, com o nome Governador Dix-Sept Rosado) e Areia Branca. A reportagem foi publicada primeiramente em A República, de 31 de maio a 22 julho de 1934.
A primeira edição do livro foi pela Imprensa Oficial, no mesmo ano de 1934. Saiu uma segunda edição, em 1975, pela gráfica Maninbu, da Fundação José Augusto, trazendo uma nota explicativa escrita por M. Rodrigues de Melo. É a erudição de Câmara Cascudo focando suas lentes de observação em aspectos antropológicos, etnográficos, arquitetônicos,linguísticos, religiosos e políticos na história de cada comunidade visitada. Isso com um estilo delicioso, que comunica facilmente aos leitores a emoção da viagem. Com lances inegáveisde humor.
Viajar ao sertão de inverno daquela época era uma verdadeira epopeia. Embora eu tenha referido os veículos que os viajantes usaram, Cascudo detalha: “Andamos a pé, de cadeirinha, de macaquinho, dentro d’água, na lama, nos massapês, pulando cercas, saltando, de pau em pau, os roçados que a enchente circundara, correndo nos panascos, empurrando o auto, trabalhando de pá, carregando maletas, levando os companheiros no ombro, livrando os xique-xiques, galopando a cavalo, apostando velocidade nas retas areentas (...)”.
E situações mais constrangedoramente inesperadas foram registradas: “Devemos somar as variantes, as perdidas, as trilhas feitas na hora, abraço, para que oFord subisse trepidando as barreiras caídas, esmagando o barro das areieiras escorregadias, descendo, brusco os barrancos inseguros e oscilantes. Falta anotar a fome, o frio das roupas molhadas, a fadiga das caminhadas, a mania obsequiosa do sertanejo oferecendo-nos galinha e macarrão em vez de carne-de-sol e coalhada”. Mas as reações às dificuldades, por parte de alguns companheiros do repórter Cascudo,resultavam cômicas.
  (Soares Junior, que de médico passou a engenheiro hidráulico; as incríveis aptidões de Oscar Guedes; o sono de Anfilóquio que o salteava, quandoo caminho era difícil, singular como sua asma, que só atacava quando Ford estalava de força inútil num Tremedal, além de um bom humor que desafiava enchentes e lameira; tipos, anedotas, casos, observações, o caso do peru que virou ovelha, a incrível espirituosidade das respostas sertanejas, são dignos de maior demora uma leve e breve serie de registros.) Mas o importante é constatar o resultado cultural de uma viagem como essa.
Quando um Câmara Cascudo participava dessas excursões ao interior do Estado, o seu peso de pesquisador se somava a sua sensibilidade estético-historiográfica, para apontar belezas da nossa paisagem natural e das criações artísticas do nosso povo que não ficavam em desvantagem quanto às mesmas belezas existentes em outros Estados ou Países. Nos altos de Cerro Corá, então povoado, Cascudo se deslumbrou com entusiasmo, ao mesmo tempo de musico e de pintor, pois “derredor o panorama desdobra-se em perspectivas indefinidas, esperando, numa preparação de trama musical, que surja Loengrin”.
Só ao longe a barreira das serras azuladas fecha o avanço ao olhar ávido pelos limpos horizontes ilimitados. Para diante a rodovia piora ate desaparecer. Um sopro de coivara requeima. Mas o verde continua anunciando as aguas rumorosas que desceram durante dias fartos. (Todas as gradações do verde estadeiam doçuras e prometem abundâncias.) É neste sertão de contrastes que Cascudo encontra em Açu o artesão José Leão, “passando fome”, trabalhando “sem auxilio, sem estimulo”, mas obstinado, artista legitimo, moldando fisionomias de dezenas de santos, crucifixos, anjos, com firmeza incrível gravando os traços morais na árvore.
Somente um escritor do talento de um Câmara Cascudo para expressar,com verdadeiro conhecimento de crítico de arte, o valor da simplicidade no barroco potiguar da capelinha de Nossa Senhora dos Impossíveis, na Serra do Lima, “barroco pobre sem decoração, sem enfeite, sem conchas e golfinhos” (estas coisas que são características do barroco europeu ou até mesmo de Minas Gerais), Mas contendo em sua frontaria branca e melancólica de ermida colonial, o “Arrecatado e humilde de eremitério cenobítico e de pouso de oração silenciosa”.Até em portões de cemitérios, como o de Pau dos Ferros, Cascudo viu beleza.
No livro recordador de sua viagem ao interior do Estado, Cascudo aproveita para discordar de uma mania na arte religiosa. Diz ele: “Um outro ponto melancólico é a substituição dos santos de madeira pelos santos de gesso e de massa, bonitos e róseos com uma lindeza extra-humana.” Cascudo menciona o São Sebastião padroeiro da Paróquia de Caraúbas,cuja imagem de madeira foi substituída no altar-mor pela de um novo São Sebastiao (de gesso). Mas Cascudo fez a ressalva,de que em Caraúbas o santo velho não foi apeado dos altares, mas sim deixado no altar lateral.
Na oportunidade de descrição de cada momento da viagem, Cascudo apresenta uma face de sua erudição, principalmente de sua observação etnográfica no contato com tipos sertanejos. Em Luiz Gomes, de uma simples conversa com o prefeito Antônio Gonçalves, nasce o desenvolvimento de explicações cascudianas sobre o falar sertanejo, muito antes, portanto, da sociolinguística surgida no âmbito dos estudos de linguagem (cerca dos anos 60 do século passado) e de Joaquim Mattoso Câmara Jr.afirmar cientificamente sua linguística (seu livro “Princípios de linguística geral” é de 1942).
Cascudo pergunta ao prefeito se morava na vila.  O chefe da edilidade saiu-se com essa: “Tenho casa aqui mais sempre assisto na fazenda”. Foi um toque para a memória livresca do mestre encontrar coisa parecida lá atrás no tempo: “O poeta de “Marilia de Dirceu” (1744 – 1807) um dos chefes da Inconfidência Mineira, assim enumerava suas posses românticas: “Tenho próprio casal e nele assisto”. Cascudo acrescenta: “o sertanejo tem algumas centenas de arcaísmos empregados vivamente em seu dialetar.” Lembra então que anotou do poeta pastoril português Bernardim Ribeiro os mesmos termos que o sertanejo emprega.
Quase ao final do livro, se lembrando de outra viagem que fizera em 1929, então passando por Macau sensibilizou-se com a harpa-eólia dos carnaubais, onde o ar se enchia com a surda sonoridade das palmas rudes, flabelando, lentas, na quentura dos meios-dias, passava agora pelo brejo do Apodi, onde também,“até os claros horizontes distantes denso, maciço, compacto, agitando as palmas hirtas, como leques de cerimonia oriental surdeava o mar montante dos carnaubais”. E enfim, após passar por Porto Franco em Areia Branca, com um sono sem sonhos despedidas, pegar um hidroavião, às 07h30min, para voltar à terra Natal.
Então, da janela do veículo aéreo, o mestre viu passar os povoados, “alvejando ao meio de coqueirais. Vezes, ronronando, o avião atravessava restingas maiores, entrando pela terra. As casinhas dos pescadores achatavam-se na perspectiva. Voamos sobre os morros de areia alvíssima. Nos arrecifes cinzentos o Forte dos Santos Reis emerge como uma sentinela. A água cortada pela proa do hidroavião espadana.Silvando, os motores param a respiração fremente e rítmica. Vamos devagar, para o flutuador. Fisionomias conhecidas sorriem. Na moldura das dunas a cidade se estende, imersa na doçura matinal. 09h20min”.



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