(O Preço do Algodão e o Orgulho
do Povo – 1935)
Manuel de Azevedo
Poeta,
Professor e Músico
Escrevo a pura verdade,
Do que vi pelos sertões,
Algodão de trezentos réis,
Passou pra cinco tostões,
Pegou um preço alterado,
Chegou até dois cruzados,
Aí, danou-se as confusões.
Decorrem
setenta e três anos desses versos publicados. Registro poético da era do “ouro
branco” – o algodão, na ótica de um sagaz rapaz, contando à época, dezessete
anos, parido das entranhas da Serra de Santana, no Sítio Piató, Santana do
Matos, lá onde o Seridó principia.
Noite de São
João de 1925, ainda menino, seu pai, Francisco Saldanha da Silva (Chico do
Piató), contrata para uma cantoria na casa grande da fazenda, o cantador José
Oiticica. Saldanha, aos oito anos de idade, infante alerta aos versos, ouve
atentamente o romance, Rosa e Lino – O
mal em paga do bem, do Poeta José Melquíades. Tal concentração, desde o
início até o fim, impressiona ao cantador, que, dirigindo-se ao seu pai,
vaticina: “Esse menino é poeta!”
Crescendo na
lida rural dos troncos das serras – comboio de gado, cavalo, cerca de pau e de
pedra, artefato de couro, roçado, coivara... - Saldanha tem nos pais, o
incentivo às letras. Trabalho ao dia, estudos à noite. Esboçam-se nesses autênticos
e nítidos traços sertanejos, o retrato do Poeta matuto, Zé Saldanha.
Santana do
Matos, 1935, o cenário é rico. Plantações de algodão, proliferando farturas por
todos os rincões. A sanha que abarca o apanhador (homens, mulheres e meninos), o
fazendeiro, e o usineiro, aumenta cada vez mais, quando o preço do alvo
produto, salta degraus, galgando cumes rapidamente. O dinheiro estufando os
bolsos sertanejos dinheiro pra encher
pote/ tá, o tamanho do pacote!... Dedé
(assim meu pai e os mais próximos o chamavam), empunhando o lápis, em versos,
descreve com precisão e simplicidade seu povo, seu tempo e seu espaço.
Nasce o Poeta
Cronista, José Saldanha Menezes Sobrinho. Pura literatura de informação. Moeda
corrente (Tostão, Contos, Réis, Cruzado). Produtos variados: tecidos finos (seda
ambataclã, voales, cambraia fina, cetim de ranã) e o chapéu de lã para as mulheres;
o brim de linho para os homens; anéis, brincos e dentes de ouro, brilhantina Manarra, perfume em garrafa Flores de
amores, vinho de uva, cachaça Sete
Queda, lenços de todas as cores, fita, pente e marrafa.... A pobre
camponesa, antes vestindo chita, agora esnoba na moda, vestido e combinação. Maria da velha Aninha/pra toda festa que ia/trocava cinco vestido/antes
de amanhecer o dia/isso é dinheiro de algodão/vestido e combinação/tenho que
perdi a quantia.
Dinheiro
fluindo do velho ao menino, do camponês ao fazendeiro, proporciona poderes a
todos: aí, danou-se as confusões...Brigas,
tiros, casamentos feitos e desfeitos, poligamia, a soberba e a luxúria, campeando
desde a Serra até a Rua, ameaçando
até a Igreja Católica. O avô de Saldanha, intervém no cordel, em defesa do
evangelho, evocando a profecia nas escrituras:
Havia
uma profecia/de uma tal de Besta Fera/ouvi meu avô dizer:/já está chegando a
era/essa Besta sem reprovo/vem dando dinheiro ao povo/e tudo se desespera..
Isso é da escritura / ela dará um estoro / e
vem soltando dinheiro / de um maldito tesoro /já vem de idéia pronta / trocando
ruzaro de conta / por um ruzaro de ouro.
Cordel revisado
pela professora D. Rita Regina de Macedo Saldanha, sua estimada mãe, está
estruturado em 26 setilhas, rimando ABCBDDB, versos de sete sílabas, alguns pés-quebrados.
Traz marcas típicas do cordel: o humor (Toinha
da véia Joana/magra que só tanajura), na oralidade, a liberdade das
concordâncias: verbal (eu já cheguei em
lugares/que pocos meninos vai), nominal (cachaça sete-queda), na grafia (ruzaro/rosário, toro/touro, boço/bolso,
tesoro/tesouro, pocos/poucos), para atiçar os puristas, as rimas, (demais/paz; touro/namoro/oro...). Dois pequenos lapsos ao rimar nas setilhas 13
(caseiros / tiros) e 20 (estrato / alto), erros de impressão, a partir da capa,
O PEÇO DO ALGUDÃO, mas, por se tratar
de uma obra popular, escrita por jovem, sertanejo, nordestino, são argumentos
favoráveis ao Poeta - meu conterrâneo – que reforçam tão somente a absolvição
ante qualquer pré-julgamento. Prevenindo-se disto, o próprio bardo santanense,
trouxe sua pré-defesa nos seus últimos versos, setilhas 24, 25 e 26:
Esse preço do algodão/esquentou o povo
demais/obrigou até a mim/escrever termos rivais/com os poucos anos meus/peço
proteção a Deus/para viver a vida em paz.
Peço desculpa ao povo/desta minha narração/o
primeiro versinho que fiz/sobre o preço do algodão/escrevi a realidade/do que
vi desde a cidade/ao interior do sertão.
Peço para desculparem/o menino do papai/aos
meus dezessete anos/essa lembrança não sai/sobre termos populares/eu já cheguei
em lugares/que pocos meninos vai.
Coroando tal
façanha, para rimar com Saldanha, segue este episódio: contou-me em sua casa, o
próprio, a saga da edição financiada pelo pai. Às 2 horas da madrugada da quarta-feira,
limiar de dezembro de 1935, cavalo esquipado corta o sertão. No matulão 25.000
réis. Meio dia na estrebaria de Santa Cruz do Inharé, agreste potiguar, o
cavaleiro-poeta da terra de Oscar Macedo, paga dois Tões pelas custas dos
cuidados eqüinos. Na Tipografia Santa
Cruz, fecha a empreitada literária de 1.000 folhetos em 20.000 Réis, tendo
a palavra de honra sertaneja, como selo, carimbo e assinatura desta transação e
o compromisso de entrega, na quarta-feira seguinte, no escritório da
Cooperativa de Escrita Comercial em Cerro Corá. Compromisso
firmado, compromisso saldado, conforme combinado. Saldanha nem abre o pacote,
monta cavalo e risca para o Piató. A alegria do Poeta confirma O Preço do algodão e o orgulho do povo
Santana do
Matos, sábado, pátio da feira, Saldanha abre a maleta e recita para os
Santanenses com orgulho, seu Primeiro
Cordel. Cinco tostões é o preço do folheto. As vendas disparam, até a metade da
maleta encerrar o dia. Disse-me ele: “Deu-me
um trabalho danado, pra tomar um café”. “Era um bolo de morcego nos bolsos.”
Dia seguinte domingo,
feira de Cerro Corá. Muitos folhetos, muitos morcegos nos bolsos. Antes do meio-dia, mais um quarto da tiragem
se esvai. Ainda sobra-lhe tempo e cerca
de 200 exemplares para em
Currais Novos nesse mesmo dia, vender o último folheto, rendendo-lhe
na alma milhares de Réis de felicidade, encerrando a epopéia literária desse expoente
da literatura popular brasileira, com mais de mil títulos editados, condecorado
com tão justa, singela e honrada comenda de O
Mais Velho Poeta Cordelista em Atividade.
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