Anchieta
Fernandes (in memorian)
Em livros e artigos publicados em
jornais e revistas, já se tem destacado o pioneirismo de mulheres potiguares:
na política (a primeira eleitora no Brasil: Celina Guimarães Viana), na
administração (a primeira prefeita no Brasil: Alzira Soriano), na aviação (a
primeira brasileira brevetada por uma escola de aviação: Lucy Garcia). Mas,
merece ser relembrada sempre a própria valentia, a bravura de algumas
potiguares que enfrentaram a arbitrariedade de poderes constituídos, ou de
potências estrangeiras, em nome de patriotadas, de religião, de domínio
econômico.
É necessário se fazer uma soma de
fatos, onde a memória de procedimentos femininos heróicos, colhidos de dentro
de recortes históricos, sirva à identidade da mulher potiguar em um único
volume de uma nova História do RN, segundo o viés dela, o pertencimento dela ao
patrimônio das decisões históricas, mesmo contra a vontade masculina. Não para
separar um sexo do outro (“guerra dos sexos” é mais uma expressão para
telenovelas da Rede Globo), mas para complementar, com a versão dos fazeres
femininos de luta, esta nova História do Rio Grande do Norte.
Vejamos a história de algumas
destas nossas conterrâneas, como corajosas representantes do seu sexo que não
se submeteram a determinadas imposições masculinas. Comecemos por aquela que é
considerada a primeira guerreira, a primeira mulher que, por vezes as tarefas
familiares para empunhar armas em defesa da terra brasileira: a índia Clara
Camarão.Esposa de Poti, batizado como Dom Felipe Camarão, combatente contra a
invasão holandesa, Clara surpreendeu o marido e outros guerreiros (portugueses)
pela coragem e pela habilidade no manejo das armas.
Em seu livro “Natureza e História
do Rio Grande do Norte”, João Alves de Melo conta: “Mergulhada nas hostes de
Henrique Dias, à frente dos seus negros, e Camarão à frente dos seus índios,
Clara Camarão comandava a sua esquadra de mulheres, por ela atraídas e por ela
dominadas, lançando-se com elas na vanguarda das tropas que combatiam. E o seu
nome ficou, como uma legenda, nessa batalha de Porto Calvo, em 1643”. Clara era
da tribo dos Carijós e foi escolhida pelo Chefe dos Potiguares para sua esposa.
Viveram no lugar conhecido como Aldeia Velha (hoje, bairro de Igapó).
Outra mulher heroína, de inequívoca,
foi Ana Floriano. Mãe do jornalista Jeremias da Rocha Nogueira, demonstrou em
Mossoró sua coragem em pelo menos dois episódios. O primeiro foi a 1 de janeiro
de 1875. Devido ao jornal O Mossoroense sempre ter demonstrado independência de
opinião diante dos erros das autoridades locais, criticando-os, foi motivo de
uma tentativa de empastelamento no referido dia 1 de janeiro de 1875. O
jornalista Lauro da Escóssia, bisneto de Ana, contou em um número d’O
Mossoroense (exemplar de 17 de outubro de 1972) como foi a coisa e quem a
heróica mulher enfrentou:
“Um grupo capitaneado pelo deputado
Rafael Arcanjo da Fonseca, na mais ignóbil ostentação de desordem oassou todo o
dia fazendo exibições nas ruas da cidade. Há em torno dessa pérfida atuação dos
desordeiros, aquele episódio conhecido da história e registrado na agência
consular portuguesa, onde o diretor e redatores do jornal (...) se homisiaram.
Ana Floriano, a mãe de Jeremias, postada no descanso da escada que levava ao
primeiro andar do prédio em que estavam os jornalistas, gritou para a turma de
desordeiros alcoolizados posta ao pé da escada: “Quem subir a escada morre na
ponta deste espeto!”
Em setembro do mesmo ano, Ana
liderou um grupo de umas 300 mulheres que, inconformadas com o sorteio
obrigatório dos nomes de filhos e maridos para o serviço militar, foram até à
casa do escrivão do Juiz de Paz, e tomaram papéis e livros concernentes ao
sorteio para o exército e armada, rasgando-os. Amotinadas mesmo, as mulheres se
dirigiram à Praça da Liberdade, para enfrentarem um corpo da Polícia,
organizado para dominá-las. Aos gritos de “Avança!” as mulheres lideradas por
Ana entraram em luta com os soldados, tendo como conseqüência feridos e feridas
no calor do entrevero.
O ano de 1934 possibilitou vir à
tona a coragem das mulheres do Rio Grande do Norte sob dois prismas: o da luta
eleitoral, e o das lutas sindicais no viés das guerrilhas. Governava o estado o
Interventor Mário Câmara. Desenvolvia-se desde 1933 a campanha para as eleições
à Constituinte Federal. Num clima de muita violência, ocorrendo desde surras
aplicadas contra padres até o assassinato do engenheiro Otávio Lamartine. Filho
do ex-governador Juvenal Lamartine. Os membros do Partido Popular diziam que
estas violências eram perpretadas pela Aliança Liberal, o partido de Mário.
As mulheres reagiram bravamente a
estas violências. Um dos fatos conhecidos é o que aconteceu em Caraúbas. O
jornal oposicionista A Razão publicava artigos narrando as violências, e
acusando de autores o interventor através de bandos armados. O Dr. José
Augusto, um dos líderes do Partido Popular, anunciara sua passagem por
Caraúbas, como uma das etapas da campanha. Joaquim Saldanha, líder da Aliança
em Caraúbas, andou dizendo que faria o Dr. José Augusto engolir um dos
exemplares d’A Razão, para “dar uma lição”. A comitiva populista foi recebida
na cidade aos gritos de “morram!” pronunciados por um grupinho.
Na sala de uma das casas da cidade,
de propriedade de José Leônidas Fernandes, foi realizada uma sessão para se
homenagear a comitiva e se ouvir as propostas do Partido Popular. Quando os
recém-chegados ouviam um discurso de saudação de Filemon Pimenta, entrou na
sala, de rebenque em punho, e exibindo um exemplar d’A Razão, dizendo que
“vinha cumprir a promessa”, Joaquim Saldanha. Enquanto o Dr. José Augusto dava
as costas ao aliancista, a jovem Arlete Fernandes, num ímpeto de bravura,
chegou perto de Joaquim Saldanha, e gritou bem alto: “Viva o Dr. José Augusto!”
Também no interior, se desenvolvia na
época a luta do sindicalismo. Mas um sindicalismo consciente, não atrelado ao
peleguismo. Vinha desde os anos 20 no Rio Grande do Norte. A historiadora
Brasília Carlos Ferreira, em seu livro “O Sindicato do Garrancho” (Departamento
Estadual de Imprensa, 2000), dá notícia do Sindicato Geral dos Trabalhadores,
existindo no estado durante a referida década de 20. Este sindicato publicava o
jornal semanal “A Folha Operária”. No começo da década de 30, foi fundado em
Mossoró o Sindicato dos Trabalhadores em Salinas (também chamado Sindicato do
Garrancho).
Este sindicato faria uma experiência
pioneira de guerrilha, em 1934, onde, no combate contra os “coronéis”
latifundiários da região morreu o grande proprietário de terras e de gado
Arthur Felipe. Orientados pelo sindicato, todas as salinas da região oeste já
haviam feito uma greve geral em 1932. O importante na guerrilha de 1934, é que
empregadas domésticas, de uma Associação de Mulheres, foram importantes na
aquisição de armas para a luta. Tomavam ou roubavam revólveres, botavam no seio
e levavam para os guerrilheiros. De uma vez, pegaram 12 rifles da companhia
Força e Luz de Mossoró, quando estavam limpando as armas.
Passam-se os anos. Em 1964, vem o golpe
militar da direita no Brasil. Prisões. Mortes. Torturas. Os mandões do dia
tiram antidemocraticamente do seu cargo o Prefeito de Natal, Djalma Maranhão.
Dentre os prisioneiros políticos feitos no estado, além do prefeito e do seu
vice, Luiz Gonzaga dos Santos, estavam algumas mulheres: Maria Laly Carneiro
(hoje, médica e condessa, na França), Margarida de Jesus Cortez, Maria Diva de
Salete Lucena e Mailde Ferreira Pinto. Esta última (hoje, casada com o escritor
Cláudio Galvão) era na época a Diretora da Diretoria de Documentação e Cultura,
órgão da Prefeitura Municipal de Natal.
Ela, embora atemorizada, é claro,
pela brutalidade dos métodos empregados por policiais e outros militares contra
presos políticos, demonstrou algumas vezes rara coragem. Uma das suas reações
corajosas, onde se pode deduzir exemplo de resistência, foi quando um policial
que a interrogava, perguntou (sugerindo capciosamente que ela iria comandar
guerrilhas) se ela “gostava de empunhar metralhadora.” Ela sentiu-se insultada,
sustentou seu olhar contra o do militar “e nada respondi” (conta ela em seu
livro “1964. Aconteceu em Abril”, precioso documento sobre o que se sofreu
naqueles anos de chumbo).
A valentia da mulher potiguar foi
demonstrada, inclusive, fora do estado. Como exemplo, pode-se mencionar o caso
de Irmã Lindalva (Lindalva Justo de Oliveira). Nascida em Assu, fez Noviciado
na comunidade da Casa de Caridade Imaculada Conceição, em Nazaré da Mata,
Pernambuco. Foi enviada para servir no Abrigo Dom Pedro Segundo, em Salvador.
Desrespeitando a sua condição religiosa, um dos abrigados tentou levá-la a
infames práticas sexuais. A jovem freira rejeitou com firmeza, e foi
assassinada em 1993. Em 2007, foi beatificada como Mártir.
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