Darcy Ribeiro - foto: divulgação
Luciano Capistrano
Professor e Historiador
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
(O
Navio Negreiro - Castro Alves)
A
sociedade brasileira traz na sua formação a triste nódoa de ter seus pilares
fundadores, erguidos em fundamentos escravocratas. O processo de construção da
nação brasileira, carrega, assim, o peso de ser porto de chegada de negros,
vítimas da diáspora não desejada. A engrenagem montada por “civilizados”
lusitanos, nas palavras de Darcy Ribeiro, criaram, neste lado do Atlântico, uma
“máquina de moer gente”.
Existe
uma frágil ideia, muito mais na tentativa de naturalizar ou amenizar o modelo
de escravidão ibérico, de se fazer uma referência a escravidão realizada por
africanos. Apesar das dificuldades em conceituar a escravidão africana, a
historiografia caminhando de mãos dadas com outros campos do saber, aponta para
as particularidades das diversas comunidades existentes, naquele continente, no
período em que situa-se o “empreendimento colonial”. As diferenças entre o
modelo escravocrata português e das comunidades africanas são bem claras:
Não é correto afirmar que “africanos”
escravizavam “africanos” para vendê-los como escravos. A consciência coletiva
de uma identidade continental entre os povos das nações africanas surgiu apenas
no século XX, no momento de sua emancipação frente aos europeus. Até então, o
sentimento de identidade não ia além da comunidade de aldeia, da linhagem,
grupo tribal ou, no máximo, grupo linguístico.
[...]
Costuma-se designar o tipo de cativeiro
praticado na África de “escravidão de linhagem”. Sua finalidade não era
exploração econômica em larga escala, e também a perda de liberdade pessoal não
era completa, pois os cativos permaneciam integrados ao grupo social dos
vendedores. (MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Editora
Contexto, p.101, 2013)
O
processo de colonização empreendido pela Coroa Portuguesa teve como
característica a degradação humana, aqui nos trópicos, os verdes canaviais e as
cores reluzentes das minas, expandiram as fronteiras da economia real, com o
sangue do negro escravizado. Aqui se estabeleceu a escravidão, enquanto,
sistema econômico. Toda uma cadeia de atividades socio-económica foi fruto do
modelo de utilização da mão-de-obra escrava.
A
sociedade brasileira tem em todas as suas instituições uma pesada herança
colonial, pois, os tempos da “escravidão legal”, criou no imaginário social a
ideia do “trabalho como algo indigno”, ou
visto como uma desprezível condição de inferioridade social.
Na Bahia, no início do século XIX, os
escravos que trabalhavam como carregadores ou em outras profissões, eram o
único sustento de famílias inteiras, que nada faziam. O trabalho, na realidade
era considerado, pelas pessoas livres, algo de desonroso e digno apenas de
servos. [...] No Brasil, a escravatura era muito mais do que uma instituição
econômica, já que a propriedade de escravos não só era lucrativa, como também
elevava o status do proprietário aos olhos dos outros. (CONRAD, Robert. Os
últimos anos da escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
p.14-15, 1978)
Ao trazer
à baila essa temática, o faço, de forma provocadora, no sentido, da necessária
reflexão sobre um tema tão caro para a compreensão do que seja o povo
brasileiro, uma nação resultado do encontros de civilizações, distintas, a
europeia, a dos povos indígenas e a africana. Nas palavras de Darcy Ribeiro:
Nenhum povo que passasse por isso como
uma rotina de vida, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós
brasileiros somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos
nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura
mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a
gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também
somos. [...] A mais terrível de nossa herança é esta de levar sempre conosco a
cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade
racista e classista. Ela é que incandesce ainda hoje, em tantas autoridades
brasileiras predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem
ás mãos. Ela, porém, provocando crescentes indignação nos dará forças amanhã
para conter os processos e criar aqui uma sociedade solidária. (RIBEIRO, Darcy.
O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, p 120, 1995)
Finalizo,
este curto artigo, com os versos do poeta Castro Alves, como um convite à
reflexão sobre os caminhos e descaminhos da formação do Brasil.
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
(O
Navio Negreiro - Castro Alves)
Nenhum comentário:
Postar um comentário