BENÉ CHAVES
Uma
história política e que faz parte do meu livro ‘Castelos de Areiamar’, que
publiquei em 1984. Qualquer semelhança com a política brasileira não é mera
coincidência. Leiam...
Subiram no
palanque...
Luzes
distribuídas e olhares de sorrisos. O homem levantou o braço direito dando um
soco no espaço nu. Vislumbrou uma multidão incalculável e começou a falar:
-Povo
de minha terra: sou, a partir deste momento, candidato pela vontade soberana
desta querida gente. Sinto que vocês não estão satisfeitos com a situação atual
e venho, na hora justa, protestar contra esse estado de coisa. Teremos de
derrubar o governo pseudodemocrático que comanda o país, e só podemos fazê-lo
com o apoio de vocês. Talvez desta maneira ainda consigamos que o mesmo volte
aos seus dias gloriosos. Tenho, portanto, o dever de anunciar-me como candidato
nas próximas eleições.
Um
barulho de palmas surgiu na extensão da rua iluminada. E aquele homem a mostrar
os dentes e fazer exercícios nos braços como se quisesse abraçar alguém.
Irromperam, então, ruídos na grande avalanche humana.
-Viva,
viva, tá eleito, tá eleito... : algumas vozes eram ouvidas no enorme salão ao
ar livre.
Mas,
um observador atento comentou para si: são todos iguais, querem o poder e
depois... - começou a socar a mão direita (aberta) na esquerda (fechada).
-Precisamos,
unidos, lutar contra a opressão, o desemprego, o desestímulo à classe
produtora. Confio no vosso voto e hei de cumprir tais promessas.
Gritos
e mais gritos saíam de bocas pedintes, estômagos famintos. O interlocutor
tomava um copo d'água e distribuía afagos diante de si, a barriga já cheia de
comida. Carros com alto-falantes jogavam papéis para a multidão entusiasmada,
retratos vários pulavam no meio à massa humana.
Parecia tudo uma euforia dissimulada...
Candidatos
outros se seguiram na falação...
Previa-se,
contudo, que aquele povo estava sendo repartido, uma fatia devia caber pra cada
um naquele novelo ilusório.
Então
o homem disse com uma voz seca: temos de dividi-lo certo, você pega o bolo e
faz o corte em porções iguais, sem discriminação, nada de sabedorias, pois o
gosto a gente sente no final.
Na
mesa, portanto, os pratos servidos, uma faca posta para o saboroso trabalho. No
centro a atenção dirigida e conseqüentemente atingida.
As
comemorações feitas e os pedaços saindo de boca em boca, tragados com alegria e
satisfação. Estavam gostosos.
-E,
além do mais, - continuou o homem - não estamos aqui pra iludir ninguém, temos um
dever a cumprir e sabemos onde meter a mão. (Na certa, meteria no bolso escasso
do povo).
Disse então:
somos conscientes da tarefa que vocês nos entregarão e faremos de tudo para bem
servi-los. Uma vida, portanto, com menos sofrimento, pois não possuímos o dom
de querer enganar essa sofrida gente - e apontou o polegar na direção da mesma.
Ouviram-se
estrondos de um lado e de outro, como se um vulcão estivesse vomitando fogo, o
palanque quase indo abaixo com gritos e foguetões.
-Cuidado,
vá devagar, não precisa exagerar tanto – rechaçou uma voz comedida.
Na mesa, um vazio... Facas amoladas e o grande
prato despido, procurando esconder-se ante uma possível vergonha.
A
parte era sua, ninguém colocaria as mãos, ninguém...
Então
saiu a tomar um pouco de ar e aproveitou para revê-la melhor, alisá-la e
acariciá-la sem desdém.
A
distribuição feita: fulano fica na tal posição, sicrano substitui beltrano,
este parte para nova investida, etc., etc., contanto que não fiquem
insatisfeitos. As fatias não são iguais?
De
qualquer maneira se ouviam protestos, uns achando pedaços maiores, menores,
outros observando gratificações extras. Houve de viva voz descontentamentos. E
ele ali, no meio do salão, a repartir de acordo com sua consciência, embora
recebendo críticas e repetindo sozinho: não são iguais? Porém, parece que a
igualdade desse homem deixava lacunas...
Abriu
então os enormes dentes e abocanhou um pouquinho de ar, completando e gritando
desta vez: portanto, meu querido povo, não me decepcione, pois não vos
decepcionarei. Juntos, na urna, daremos a nossa resposta.
Um
clarim soou no meio da massa humana e todos começaram a dançar, enquanto o
orador desviou o olhar e colocou a palma da mão para sussurrar algo aos
correligionários.
-Não
sei, de uma hora pra outra essa gente pode enxergar melhor, disse o companheiro
ao lado, pondo uma dúvida na sua euforia profetizada.
-Que
nada!... Vê só uma coisa... E começou a gritar bem forte o seu nome, fazendo
eco no infinito. Um uníssono se ouvia.
-Não falei!...
São todos assim.
O povo
massificado, espoliado, sempre enganado.
Parecia certo da vitória, conseguira ludibriar
com um discurso forte e imaginativo, dizendo palavras desonestas, mentindo e
fingindo estar ao lado daquela pobre gente inocente.
Diante
da situação que instalou na festa organizada para servi-lo e aos seus
comparsas, não se tinha a menor dúvida que o citado candidato era um farsante,
charlatão. E isso ficou mais que evidente, sobretudo depois das frases de cunho
demagógico, pois o que se via eram somente promessas, promessas para iludir
aquele povo presente àquela manifestação.
Então,
depois, colocou as fatias em cima da mesa e ficou olhando-as durante alguns
minutos, o suficiente para lançar uma hipnose. Os outros tentaram comê-las, mas
foram impedidos por uma voz firme e grossa que surgiu, deixando-os perplexos.
Era o homem, agora desejando saboreá-las todas para si.
Engoliu
apressado os outros pedaços e, sujando-se todo, virou as costas disparando
carreira. Sumiu-se ante a suposta indignação dos companheiros.
Ajoelhou
na tábua e começou a chorar, antes desviando o rosto e colocando pingos de
colírio nos olhos. Ninguém notara tamanha habilidade, estavam pulando e gritando
na proposital euforia.
Recomeçou
a falação:
-Tudo
que desejo é ser amado pela minha querida gente, não consigo viver sem ela - e
com um lenço branco enxugou algumas gotas da face. Lágrimas de colírio.
Desceu,
então, o patamar e viu as formas variadas de fatias à sua frente, queria
juntá-las sozinho, enquanto os de trás ficaram golpeando-as em partes iguais.
Encolheu-se retraído e esperou qualquer resolução, o bolo a admirá-lo na
esperteza. E ouviu intrigado uma voz insistir que a conscientização era a meta
principal daquele enorme novelo.
Houve
certo abalo nas arestas ali sedimentadas e uma incerteza, a multidão já
fatigada e explorada da forma mais bestial possível. Era notório que o homem a
tinha logrado com suas constantes mudanças.
Do céu as estrelas faiscavam
a grande praça aberta, enquanto cá embaixo um silêncio profundo. As pessoas
ficaram abobalhadas olhando o palanque vazio e sentiram na carne o
reconhecimento de terem sido enganadas. Aquilo tudo era um engodo, é ainda uma
isca.
Apartearam-se,
portanto, e se dividiram em blocos disformes, deixando um labirinto de difícil
acesso. Aí a situação se complicou e não mais serviriam de sustentáculo para
ninguém. Sabia-se que a ambição daquele homem tinha ultrapassado o senso normal.
Então, naquele
exato momento, as fatias recolheram-se caladas, não se enganariam de serem
repartidas, engolidas. Estariam, portanto, firmes na intenção de não atenderem
a qualquer chamamento, livres da sujeira programada. Libertas daquele (e de
outros) político mal-intencionado.
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