12 de novembro de 2013

Viajando através das letras – 6


Anchieta Fernandes
Além de contista, cronista, crítico literário e musical, e repórter, o escritor santanense (de Santana do Matos, RN) Manoel Onofre Júnior é também um bom anotador de viagens. Exemplificável esta sua prática dentro do gênero em que se destacaram alguns livros internacionais (“Um Bárbaro na Ásia”, de Henri Michaux; e “Na Patagônia”, de Bruce Chatwin) e nacionais (“Gato Preto em Campo de Neve”, de Érico Veríssimo; e “Gregos e Troianos”, de José Lins do Rego) por, pelo menos dois livros: “Portão de Embarque – Brasil, Brasis” e “Portão de Embarque 2 – Portugal”. Comentando este último, viajarei imaginariamente à terra dos meus ancestrais, os Fernandes da Vila de Faral.
Alguns dos capítulos do livro são encerrados com a data em que MOJ os escreveu, mas na maioria deles somente indicando o mês e ano em que foram escritos, com exceção do capítulo “Óbidos”, em que o escritor detalha não somente o dia, mês e ano de sua redação (28 de agosto de 2009), mas também indicando que foi escrito em Natal (possivelmente os outros foram escritos no momento da viagem, em hotéis, nos próprios meios de transporte etc.) Outros capítulos não tem data. Cronologicamente, a primeira data é junho de 1984; do primeiro capítulo, intitulado “Lisboa na Primavera”, a visão poética inicial do viajante:
Vista do Castelo de São Jorge, Lisboa lembra um pouco Salvador. Colinas povoadas de velhos sobrados sugerem ângulos do Pelourinho, e o Tejo, espraiado, sereno, ao fundo, parece a baía de Todos os Santos. Mas, a semelhança entre as duas cidades fica apenas no visual.” E porque fica apenas no visual? Talvez porque a diferença está no comportamento dos habitantes, e na organização urbana; “Lisboa é bem comportada. Trânsito organizado, largas avenidas, mas bem traçadas e limpas. (...) Nas pessoas, nada me chamou a atenção. Parecem-me discretas, pouco expansivas, muito normais.” Diferente da nossa desorganização do trânsito, e da comunicabilidade direta do brasileiro.
Manoel Onofre Jr. Já viajou várias vezes a Portugal. O périplo registrado no livro “Portão de Embarque 2 – Portugal” vai até setembro de 2011, abrangendo, portanto, 27 anos dos passeios do escritor ao país matriz do império sonhado pelo infante Dom Henrique. Ao contrário de outras pessoas, que só se dão bem viajando em excursões, com os mesmíssimos pontos turísticos já demarcados para serem visitados, sob a orientação de “guias” especializados em repetir os mesmos lugares-comuns sobre fatos históricos ou pratos típicos, MOJ gosta de viajar só, para “com a coragem e a cara e alguns dólares no bolso”, ele próprio descobrir lugares, monumentos históricos etc.
Por causa dessa característica de sua personalidade humana, de uma de suas visitas a Portugal, há o registro de que, duas horas antes de tomar o avião de volta para Natal, resolveu dar uma volta pelo Chiado e Bairro Alto, deparando-se com a Igreja de Santa Catarina, “velho e bem conservado templo”, que “não consta e nunca constou de nenhum roteiro turístico, mas bem que merece uma visita. (...) Bela talha dourada valoriza a decoração interna, em boa parte barroca.” Onofre demonstra ser um entusiasta pela arquitetura de alguns monumentos portugueses, principalmente os que foram construídos com estilo barroco ou gótico.
E, como bom escritor, sabe comunicar bem, em seu texto, a emoção diante do belo. Como, por exemplo, sobre a Sé Catedral de Santarém: “Grandiosa fachada principal em estilo barroco jesuítico. No interior, a decoração vai do barroco (capela-mor e quatro primeiros altares laterais) ao neoclássico (quatro outros altares laterais); em destaque, o grande afresco do teto, uma das obras mais interessantes do gênero. Deixei de ver Santa Clara e Santa Cruz, ambas situadas fora do centro histórico. Estas igrejas, e algumas das já mencionadas, são bastante representativas do estilo gótico, daí porque se deu a Santarém o cognome de Capital do Gótico.”
Sobre castelos, depois de observar que os castelos portugueses têm pouquíssimos elementos decorativos, mantendo-se em suas “linhas sóbrias, severas”, o escritor viajante destaca, contudo, alguns um pouco diferentes. O de Leiria, “com os belos arcos do seu terraço ou varanda (...) e outros ornatos.” O de Almourol, situado numa ilha do rio Tejo (“é belíssimo”, diz MOJ). O de Óbidos, o de Bragança, o de Beja, e o de Santa Maria da Feira (“elegante castelo, bastante reformado no século XX, diferencia-se das demais fortificações portuguesas pelos torreões cônicos, que lhe dão uma nota inconfundível, quase fazem lembrar o Castelo da Bela Adormecida.”
Também toca a sensibilidade do prosador poeta (que, no entanto, conscientemente, renunciou a escrever poesia depois que mostrou um poema escrito por ele à Zilá Mamede, e ela não lhe deu nenhuma importância; isso não tirando, contudo, a sensibilidade do poeta que muitas vezes marca o texto do prosador) o Mosteiro dos Jerônimos, “um dos monumentos mais expressivos da arquitetura religiosa portuguesa”, e a Torre de Belém, esta que, com “a elegância e a graça das suas linhas; a requintada arte dos ornamentos” e a “aparente fragilidade e leveza; tudo isto afigura-se incompatível com a idéia que se faz de uma fortificação militar.”
MOJ ainda viu museus diversificados, principalmente alguns de Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga; Museu Nacional dos Coches; Museu Calouste Gulbenkian (de artes plásticas e artes decorativas); Museu Nacional do Azulejo e Museu da Marinha. Mas também teve despertada sua atenção para as colchas bordadas do Museu Francisco Tavares Proença Júnior, da cidade Castelo Branco. Mas MOJ é um viajante que não se deixa enganar pelas aparências. A estátua do rei D.Sebastião, na cidade de Lagos, lhe pareceu “uma feiúra, um prodígio de mau gosto.” E a cerâmica da cidade de Caldas da Rainha não lhe empolgou, vendo nela algo kitsch.
Mas lembre-se que o visual inspirador português não está somente na arquitetura, nas igrejas, nos castelos, nas torres. Assim como a paisagem natural do pequeno país litorâneo da península ibérica inspirou os expressivos contos beirões de Aquilino Ribeiro e os bucólicos poemas de Antônio Nobre, permitiu ao turista cultural potiguar Manoel Onofre Júnior testemunhar: “De volta ao Porto, deixo-me seduzir pela paisagem serrana da região do Viseu. Pinhais a perder de vista (...). Aqui e acolá, aldeias e pequenas cidades muito brancas no verde escuro dos montes. São 20 horas e 22 minutos, mas o sol ainda brilha feito ouro líquido. Encena-se o crepúsculo. Belo, belo.”
Constatada esta contemplação do narrador-poeta ante um belo sol crepuscular, não se desfaz a sensibilidade poética quando ele vê a paisagem sob a névoa, soltando nas linhas do seu diário de viagem o imaginário despertado: “Mágica visão, na manhã cinzenta e fria: a névoa cai como um véu branco, esgarçado, sobre a Sé (...). No pequeno parque em volta da torre, tudo deserto. Silêncio. Aos pés do outeiro um velho cemitério dorme. Passam ao largo dois vultos meio desfeitos na névoa. Seriam fantasmas?” Aliás, as formas e gestos do personagem humano em Portugal são motivo de observação quase de cineasta no escritor.
Em Viana do Castelo, viu, emocionado, um grupo folclórico local dançar o Vira, “a dança típica por excelência.” Da janela do ônibus que passa pela estrada que corta uma cidadezinha, viu “cinco ou seis velhinhos sentados num banco à sombra de velha casa. Todos usam a clássica boina e vestem agasalhos.” Dentro do Metro (em Portugal, o trem subterrâneo chama-se metro, sem se botar o acento circunflexo no “o”), outras observações da figura humana: “Aquela senhora, lá, depois de um dia de trabalho árduo, cochila. Ao seu lado, o velho de boina enxadrezada lê o jornal distribuído gratuitamente. Turistas estrangeiros, em grupo, conversam em voz alta.”
Em uma de suas viagens a Portugal, MOJ ouviu este som irritante, de vozes altas de turistas. Mas em outras viagens ouviu sons mais suportáveis; os sons do carrilhão de Santo Ildefonso; a cantiga de uma fonte; e, no Portugal conhecido através da sensibilidade estética do narrador poeta, o próprio som do silêncio: “chego a Beja na hora da sesta duma quarta-feira destes começos de novembro. Em plena Praça da República, centro do Centro antigo, tudo parado, uma doce e provinciana tranqüilidade. Dá pra se ouvir o silêncio.” Isto é a mesma poesia que está no próprio som da construção sígnico-auditiva da pronúncia das palavras pelos portugueses.
Por isso que no livro “Portão de Embarque 2 – Portugal” tem o capítulo intitulado “Poesia dos Nomes da Terra”, onde MOJ relembra o poeta pernambucano Ascenso Ferreira, explicando: “Das cidades portuguesas pode-se dizer o que Ascenso Ferreira disse dos engenhos de sua terra: só os nomes fazem sonhar: Évora! Coimbra! Vila Real! Grândola! Castelo de Vide! Inúmeros outros nomes ressumam poesia: Montalegre, Leiria, Castro Daire, Penalva do Castelo, Chão de Maçãs, Arcos de Valdevez.” Sobre Évora, ele escreveu à p. 89: “o encanto dessa cidade começa no nome: Évora. Reparem a beleza de sons: ÉVORA! Parece nome de flor. Imagino um alegre canteiro de évoras...”.
Aliás, por lembrar a beleza de certas palavras portuguesas, deve-se chamar a atenção para um aspecto do livro de MOJ: é não somente um livro que delicia (pelo estilo literário que dá prazer ao lê-lo, mas também é um livro que ensina como entender a língua portuguesa, desde a forma com que os habitantes locais a pronunciam (falam depressa, não raro “comendo” as vogais, e tendendo a trocar o “e” por “a”), ao significado de certas palavras, diferentes do significado destas mesmas palavras aqui no Brasil (por exemplo: bica é cafezinho, rapariga é moça, camisola é simplesmente camisa, elétrico não é somente o adjetivo e sim o nome substituto de bonde).
É de se notar que o texto de Manoel Onofre Júnior é às vezes lúdico, na pesquisa vocabular. Expressando sua opinião a respeito de um sanduíche chamado francesinha, feito com pão de forma, bife, chouriço e presunto, coberto de queijo derretido e molho, pedido num dos restaurantes na Ribeira, cidade do Porto, e que é muito “do agrado dos portuenses”, ele escreve: “desgostei”, ou seja: usando o verbo desgostar no pretérito perfeito, aproxima-o reversivelmente do verbo degustar, significando a não apreciação da iguaria ao final da avaliação palatal. Um dos capítulos é intitulado simplesmente Universidade, discorrendo sobre Coimbra.
Sobre outras iguarias da culinária portuguesa, MOJ tem opiniões diferentes, conforme a ocasião. Por exemplo, na Confeitaria Nacional, degustou um arroz doce, que “estava sublime”. No dia seguinte, voltou lá e o arroz doce não pareceu tão sublime, “apenas bom”. A mesma dúvida “me ficou há tempos, quanto a outra famosa especialidade da doçaria portuguesa – os ovos moles de Aveiro. Provando-os, então, achei-os intragáveis. Já agora não me souberam tão ruins ao paladar”. É claro que, bacalhau, caldo verde, as castanhas portuguesas, e o famoso Vinho do Porto MOJ, aprovou e as “papilas gustativas” do escritor viajante degustaram bem.
Neste assunto alimentar, não falta no livro de MOJ referências a famosos cafés portugueses: o Café Nicola, “verdadeira instituição lisboeta, reduto secular de escritores e boêmios”; o Martinho da Arcada e um chamado A Brasileira, por sinal ambos tendo, como assíduo freqüentador, ninguém menos que Fernando Pessoa. O poeta – em bronze – está sentado a uma das mesas da calçada de A Brasileira, à Rua Garrett, 120,346 – 9541. O café foi inaugurado em 1905, sendo desde sua inauguração ponto de encontro de escritores, médicos, jornalistas, políticos etc. Nele, muitas vezes Pessoa bebeu xícaras de cafezinho (ou bica) preparado com grãos que vinham diretamente do Brasil.

No livro, MOJ refere-se pouco a eventos culturais a que esteve presente. Mas, como turista cultural não deixou passar as oportunidades, e visitou por duas vezes a Feira do Livro de Lisboa, realizada anualmente em começos do verão ou final da primavera. São dezenas e dezenas de barracas armadas no Parque Eduardo VII; numa delas ele encontrou certa vez o conhecido escritor José Saramago. O livro “Portão de Embarque 2 – Portugal” encerra-se com um capítulo intitulado “Alguns livros sobre Portugal”, listando certos livros que falam sobre a terra e gente de Portugal. Somente faltou incluir o livro “Portugal, meu avozinho”, de David Nasser, o corajoso repórter da extinta revista “O Cruzeiro”.

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