17 de agosto de 2013

Variações e permanências linguísticas no falar potiguar



Anchieta Fernandes


Quando o filósofo francês Teilhard de Chardin falou em “cefalização” no processo da evolução humana, estava querendo se referir à consciência no contexto da evolução da espécie. Neste processo chega-se ao sistema específico: a Língua. Na definição dicionarpistica, sistema no contexto linguístico é um conjunto de elementos linguísticos solidários entre si, ou, como um todo, a própria Língua encarada sob o aspecto estrutural.
Álvaro de Sá, em sua “Teoria Geral das Linguagens”, historia a passagem da expressão/fala à expressão escrita. Roland Barthes ensinou sobre o papel da Língua e Fala: cada um destes dois termos só tira evidentemente sua definição plena do processo dialético que une um ao outro. A Língua existe como tecnologia de comunicação. Toda tecnologia, embora possa nascer simplesmente de uma prática, resulta em suporte teórico.
Poder-se-ia implementar o suporte teórico da tecnologia de comunicação chamada Língua, investigando as permanências e as variações dos seus padrões. Uma língua não tem um padrão único. Suas variações ocorrem por diversos motivos, podendo-se mencionar: a) transformações históricas na ortografia, modificadoras da escrita (por exemplo, a palavra igual antigamente era escrita com e inicial e não com i); b) peculiaridades dialetais.
Além do mais, poder-se-ia mencionar também os empréstimos vindos de outras línguas via comércio e indústria (por exemplo: é comum se pedir: “me dê uma Brahma”, em vez de “me dê uma garrafa de cerveja da marca Brahma” – porque a palavra “Brahma” já foi incorporada ao falar cotidiano). E também gírias decorrentes de certos grupos sociais. Paulino Vandresen, estudioso de socio-linguística, escreveu o seguinte em artigo para a revista “Vozes”:
Partindo da premissa de que tanto a linguagem como a sociedade são estruturas e não mera soma de itens, a tarefa da sociolinguística será mostrar a covariação entre a estrutura linguística e a social. Algumas das dimensões pesquisadas serão: a) a existência de dialetos sociais ou a correlação entre certos comportamentos linguísticos e a classe social do falante; b) as normas linguísticas que são adotadas nos contatos linguísticos entre falantes de classes sociais.”
Vandresen ainda falou sobre modificações de registro determinadas pela classe social do interlocutor, mudança de código em áreas bilingues etc. Muitas vezes as mudanças de registro, de código, ou de outros fatores linguísticos estão associadas ao assunto ou a determinadas atividades ou ocasiões sociais. Uma abordagem também interessante é o estudo comparativo entre o padrão linguístico real e o ideal; Na aculturação linguística de imigrantes, por exemplo.
Falando com terminologia mais simples, o historiador Chico Alencar interpretou o aspecto socio-histórico da fala do povo: “A História está presente até na maneira da gente falar o português. As crianças, as amas-de-leite e os velhos escravos do tempo da Colônia e do Império fizeram como as cozinheiras das casas-grandes: tiraram das palavras os espinhos e os ossos. Só ficaram as sílabas moles, gostosas e fáceis de dizer. Antônio virou Totonho ou Tunin. Tereza, Tetê. Francisco ficou Chico.”
E o historiador continuou desenvolvendo o seu raciocínio, mostrando que as gírias e simplificações foram ganhando espaço na língua do povo. Foram surgindo dois modos de falar no Brasil. Um era o linguajar dos negros escravizados e libertos, dos mestiços e dos brancos pobres, e também dos filhos do senhor, das sinhás e das sinhazinhas. Outro modo de falar era o das autoridades, dos governadores-gerais, dos donos de gado e gente mais letrada. Dos que desempenhavam o papel de mandar.
Pelos exemplos dados, volta-se às teorias sobre a dialética na prática de língua e fala. Não há língua sem fala e não há fala fora da língua. Às vezes, o povo impõe um jeito de falar palavras que, se escritas é com grande ou pequena modificação visual. Como Luiz Gonzaga exemplificou no baião “ABC do Sertão”, as crianças sertanejas tendiam a fechar com circunflexo a pronùncia do nome das letras: “O eme é mê, e o ene é nê,/o efe é fê/Na escola é engraçado/ouvir-se tanto ê”. O cantor poetisou a fala pura do sertão nordestino.
Dentro destes parâmetros de observação dos relacionamentos entre fala e língua, importante que se destaque a contribuição potiguar no enriquecimento da fala do povo. Nos anos 30 do século passado, o professor norte-riograndense Clementino Câmara escreveu um dicionário da gíria, intitulando-o “Geringonça do Nordeste”. Fatores de ordem moral, política e religiosa fizeram com que o livro fosse censurado, na época, não tendo sido permitida a sua publicação, que o autor havia solicitado ao governador.
Como Verailton Alves registrou, em reportagem cultural neste suplemento, em agosto de 2010, o livro foi resgatado pelo escritor, jornalista e ex-reitor da UFRN, Geraldo Queiroz, incluindo-o integralmente em sua tese de mestrado em Educação, intitulada “Geringonça do Nordeste, A Fala Proibida do Povo”, que foi publicada em forma de livro em 1989 (Clima), e, em segunda edição, em 2009 (editora da UFRN). Dentre os diversos verbetes, palavras e expressões linguísticas captadas por Clementino, algumas são bem interessantes.
Por exemplo: o arcaísmo “cadê”, derivado da locução “Que é feito de...”. “Coca”, que é uma dupla spincope e apócope de “Cócoras” (“quem é aquele que está ali de coca?”. “Corno”, epíteto dado ao homem cuja mulher é infiel. “Danisco”, diminutivo de “danado”.”Deus lhe fale n’alma”, expressão que acompanha o nome de algum morto. Ex: “O compadre Zé Fidélis, Deus lhe fale n’alma, foi dono deste sítio.”. “Estrovenga”, palavra empregada para designar tudo quanto parece incompreensível. “Eu ele”. Elipse da expressão “se eu fosse ele”.
Comentando, a 27 de abril de 1940, em sua coluna “Acta Diurna”, no jornal “A República, o livro “Várzea do Assu”, de Manuel Rodrigues de Melo, Câmara Cascudo entusiasmou-se com o que chamou “vocabulário capitoso”, onde o escritor varziano registrou vocábulos e expressões “que ouvimos, empregamos mas não escrevemos, assombrados com a fauna extinta dos gliptodontes gramaticais”. Tão antigas, tão desusadas pelos contemporâneos de então, e só preservadas pelos habitantes da Várzea do Assu, palavras como “fiota”, “taipero” etc.
Em outro livro seu, “Cavalo de páu”, Manuel Rodrigues de Melo, a partir do famoso brinquedo das crianças nordestinas “registra em suas páginas um mundo etnográfico e sociológico que não mais existe e está presente somente na memória dos mais antigos e nas páginas de obras como esta”(v. Woden Madruga, orelha da 2ª edição, fac-similar, de “Cavalo de páu”, 2002). Neste mundo etnográfico, a riqueza do vocabulário antigo que Rodrigues de Melo cita.
Dentre as palavras e expressões mais interessantes as seguintes: “Apois”, figura de metaplasmo, usando prótese, querendo dizer “Pois”. “Chô!”, interjeição para espantar ou tanger galinhas. “Não sei que diga”, expressão muito usada no interior, empregada com a significação de “semvergonha”, “diabo” etc. Visa de preferência os meninos traquinas. “Qui...qui”, interjeição com a qual se chama o cachorro. E para excitá-lo, assanhá-lo, usava-se (talvez ainda se use) a interjeição “Úla-Úla!”.
Enfim, falando espontaneamente, nosso povo contribue para novos parâmetros do escrever linguístico, do fazer novos signos. Signo (de etimologia latina: signu=sinal), em linguística, no sentido saussuriano, é a entidade constituída pela combinação de um conceito, denominado significado, e uma imagem acústica, denominada significante (observe-se, aliás, que os primeiros balbucios das crianças são ima formação linguística, embora sem significados, contendo apens significantes.
Tudo resulta na constatação de que a signicidade é um fato social e não originalmente natural, porque apenas a convenção social é que atribui tal ou qual significação a determinada reunião de sons. Os índios Xicrim, do Pará, emitem durante o conselho da tribo, gritos estridentes, querendo dizerem “fúria”, “combatividade”. São emitidos principalmente por óndios que foram derrubadores de ninhos de marimbondos. Estes gritos são chamados “amiu-ã-bem-diri”, signos ecoantes, não prosódicos”


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O eme é mê/e o ene é nê/ o efe é fê/na escola é engraçado/ouvir-se tanto ê”.  

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