21 de junho de 2013

Juca de Oliveira


Redação/Almanaque Brasil    


"Se pudermos tocar uma única pessoa na plateia, a vida já está ganha"

Ele é um fenômeno do teatro brasileiro. Suas peças levam milhares de pessoas para as poltronas e são capazes de ficar anos em cartaz. Mas, segundo ele, não há talento ou vocação que expliquem o sucesso. “Os grandes pianistas estudam 10, 12 horas por dia. É preciso dominar a técnica para poder se expressar.” E é em busca disso que ele se debruça compulsivamente sobre textos teóricos e roteiros desde 1959. De galã de novela com um dos maiores salários da Globo nos anos 1970, ele abandonou tudo para se dedicar integralmente ao teatro, com o amparo das exigentes musas gregas Tália e Melpômone. “Esse compromisso é, de certa forma, religioso. Tem a ver com sacerdócio, sacrifício, entrega. Eu acredito nos deuses do teatro.”

Você coleciona uma série de profissões inusitadas. Marceneiro, sapateiro, ajudante de farmácia, motorista de caminhão e até vendedor de mulas…

Eu sou de São Roque (SP), minha família era muito pobre. Meu pai era um caipira, um homem de pouquíssima instrução. Ele nasceu na roça e sempre lidou com animais: mulas, cavalos… Durante mais da metade da vida ele trabalhou como negociante de animais de tração. E eu ajudava no trato dos bichos - laçava, cuidada, dava comida. Não era propriamente um vendedor de mulas, mas talvez um assistente de vendedor de mulas…


E as outras profissões?

Fui mesmo chofer de caminhão. Meu pai, naquele afã de se tornar alguma coisa na vida, tentava de tudo. Numa ocasião ele decidiu ser carvoeiro. Queimava a mata do sitiozinho e vendia para fazer carvão - hoje, um atentado antiecológico. E quem fazia as entregas era eu. Fui também sapateiro e ajudante de farmácia, cuja função fundamental era lavar os frascos para colocar os remédios - os remédios eram manipulados, não havia todas essas drogas que temos hoje, sintetizadas dentro de um laboratório. Trabalhei também como marceneiro. Enfim, isso tudo na minha infância em São Roque. Com 11 anos eu já era registrado. Daí em diante, trabalhei o tempo todo. Aliás, hoje, trabalho mais do que nunca.


O que você imaginava fazer da vida nessa época?

Eu não tinha muita perspectiva, não tinha esse afã de ser alguém. Eu vivia numa cidade pobre, num meio relativamente pobre, com pessoas de poucos recursos. Eu sequer podia ir ao clube chique da cidade, porque não tinha roupa para isso. A grande sorte que dei foi que, de repente, inauguraram o ginásio na cidade. Até então só havia o grupo escolar. Minha família, a despeito de ser pobre, decidiu me matricular para eu continuar estudando. E lá tive professores excepcionais, como o professor Sérgio e a professora Guiomar, que exerceram uma importância muito grande na minha vida, porque me estimularam a ler e a escrever.

Como o teatro surgiu na sua vida?

Eu trabalhava num banco, e um colega que fez um teste vocacional me disse para eu fazer também. Eu estava entre Medicina, Engenharia e Direito. No teste deu Direito e, quem diria, Teatro. Acabei aplicando mecanicamente o teste. Estudei e entrei na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na USP. Mas e Teatro? Como poderia fazer Teatro? Um dia, lendo o jornal - comunista lê pra caramba; faz agitação e propaganda… - vi o seguinte: “Grupo de jovens precisa de ator”. Decidi ir atrás. Me disseram: “Você tem que preparar um texto, vem aqui e faz”. Eu não entendi nada, mas fui assistir ao Sérgio Cardoso no Henrique 4º, do Pirandello. O Sérgio foi um dos maiores atores que o Brasil jamais teve. Fiquei alucinado. Decidi que iria “preparar” aquele texto. Fui na Livraria Teixeira e o comprei em espanhol. Eu mesmo traduzi, mal e porcamente. Apresentei e fui aprovado. Aí comecei a trabalhar com teatro. Depois descobri que havia a Escola de Arte Dramática (EAD), prestei vestibular e passei.

Você fez os dois cursos juntos?

Minha vida era uma loucura. De manhã, faculdade de Direito. Entrava no banco ao meio dia. Saía às seis, seis e meia. Às sete, entrava na EAD. Saía à meia noite, ia para a pensão na rua Domingos de Morais e às sete da manhã estava de volta à faculdade. Eram 24 horas de atividade, com apenas algumas horas para dormir… Chegou uma hora em que não aguentei mais. Acabei deixando o Direito de lado. Comecei a conhecer a gente do teatro e decidi que era mesmo aquilo que eu queria para a minha vida. Fiquei amigo do Flávio Rangel, do Gianfrancesco Guarnieri. Tanto é que, mais tarde, acabei sendo convidado para comprar o Teatro de Arena, junto com o Guarnieri, o Boal, o Paulo José e o Flávio Império. Compramos o teatro numa operação imobiliária fantástica, da qual não saldamos um único tostão até hoje. Ninguém pagou coisa nenhuma.

É uma geração teatral de respeito…

Era mesmo. Quando houve o golpe de 1964, a Cacilda Becker veio nos dizer que os militares não tinham muito contra o teatro, mas algumas pessoas - o Guarnieri, o Flávio Rangel, o Boal, o Juca de Oliveira - tinham que desaparecer; esses eram perigosos. Eu fiquei extremamente feliz. Pô, eu estava sendo procurado pela polícia ao lado de Flávio Rangel e Guarnieri… Ao lado dos maiores intelectuais do Brasil. Aliás, o Paulo José logo arrefeceu esse entusiasmo: “Ô, Juca. Eles não estão procurando vocês pelo talento, mas por uma ideologia porca e mal conduzida…”


E nisso você acabou indo parar na Bolívia…

Foi uma aventura fantástica com o Guarnieri. Depois de muitos episódios, estávamos os dois, sozinhos, prestes a atravessar a ponte que liga os dois países. Havia uma companhia do exército na ponte. Tinha até uma metralhadora calibre 30 num jipe. A gente só tinha nas mãos um salvo conduto fajuto que conseguimos na polícia. Naquele momento, a gente já via a metralhadora “tatatatata”, e os nossos membros saltando, tingindo de vermelho a ponte… Mas, na verdade, quando demos por nós, já estávamos do outro lado. E aí nos abraçamos, comovidos, chorando. “Desgraçados! A gente volta um dia!”, o Guarnieri gritava. Mas a gente partiu deixando aquela recomendação maluca: “Manda dizer que todas as acusações sejam direcionadas para nós. Nós, o Guarnieri e o Juca, somos responsáveis por tudo.” Foi um período difícil, mas acho que foi um dos momentos mais felizes das nossas vidas. Olha que engraçado: nós estávamos vivendo uma tragédia e éramos felizes. E por quê ? Porque éramos jovens; nós acreditávamos; nós éramos idealistas. Aquilo tudo era apenas um acidente de percurso. A luta pela democracia, os ideais, a liberdade, a integridade dos homens, essa era uma luta que seguia firme.

Quanto tempo vocês passaram na Bolívia?

Ficamos oito meses fora. Estávamos indo para a Itália, via Cuba, quando o Guarnieri ouviu no rádio que o maestro Edoardo Guarnieri, pai dele, tinha sido preso na porta do Teatro Municipal. O Guarnieri foi tomado por tamanha comoção que resolveu voltar para o Brasil. Imagine, nós estávamos com tudo certo, prontos para ir para a Itália… E aí, aquele negócio da solidariedade. Resolvi voltar com ele. “Mas você está louco, Juca. Você vai ser preso!” Mas eu tinha que ir com ele. Quando chegamos aqui, a situação estava feia. Dificuldade total, todas as peças proibidas. Não teve outro jeito. Apesar da minha resistência ideológica, acabei indo trabalhar na tevê. Todos os atores e escritores já tinham ido trabalhar lá. Eu fui um dos últimos a aderir, sendo contratado pela TV Tupi.


Foi lá que você fez a novela
Nino, o Italianinho e o personagem de mesmo nome?

Foi, em 1969.
Nino, o Italianinho foi uma novela absolutamente genial, um sucesso extraordinário. E por quê? Porque sua base fundamental era uma coisa que já não existe mais hoje: a solidariedade. Estamos cada vez mais perdendo isso, nesse afã de que cada um deve se colocar melhor na sociedade; deve ter um cargo melhor, uma posição melhor, um carro melhor, um apartamento melhor. E que se dane o resto… O Nino tinha sobrando isso que nos falta hoje, que é a solidariedade. A novela era sobre um grupo de pessoas que vivia numa vila, passando por dificuldades, mas sobrevivendo em função do afeto e, sobretudo, da solidariedade. Esse é um pressuposto da sobrevivência do bicho, do mundo. Se os animais não forem solidários, a espécie se extingue. Eu, que sou um apaixonado por Biologia, acho que, com a evolução da espécie humana, perdemos isso no nosso DNA.

Por que, anos depois, você rompeu com a televisão?

Eu já estava na Globo e um dia tomei a decisão. E nisso a Zu, minha mulher, teve um papel muito importante. As razões pelas quais nós tínhamos sido compelidos a ir para a televisão haviam cessado. Era possível sobreviver de teatro novamente. Mas eu tinha um dos maiores salários da Globo. Era o Tarcísio Meira, a Glória Menezes, a Regina Duarte, o Francisco Cuoco e, em seguida, eu. Eu era bom e muito reconhecido. Mas a Zu um dia me falou: “Juca, tem algo errado com o seu emprego. Você vai reclamando, volta reclamando, pega o texto e começa a reclamar, acha que nem sempre tem a qualidade que você gostaria, que não sei o que mais…” Realmente eu não era feliz. Tomava uísque escocês, comprava carro do ano, mas não era feliz.

Contando essa história hoje, você acha que a decisão foi correta?

Eu acredito nos deuses do teatro. Acredito na Melpômene e na Tália. A Melpômene é a máscara da tragédia; a Tália, a da comédia. E tanto acredito, que na minha fazenda mandei fazer duas estátuas - a estátua da Tália e a da Melpômone -, e um banco no meio, onde fico para que elas passem as coisas para mim. Digo isso porque só quando tomei a decisão de abandonar a tevê, encontrei o meu talento de escritor. De repente me surpreendi com um tempo enorme - não tinha mais que passar horas memorizando textos. E comecei a escrever. A primeira peça foi
A Baixa Sociedade. Depois vieram Motel Paradiso, Meno Male, Caixa Dois, Qualquer Gato Vira-Lata Tem Uma Vida Sexual Mais Sadia que a Nossa etc. Na verdade, devo dizer, quem escreveu não fui eu, mas as minhas musas, que me inocularam essas ideias.

A que você atribui tamanho sucesso de seus textos?

O Antunes Filho, que é um sujeito muito rigoroso, veio outro dia assistir
Às Favas com os Escrúpulos, que esteve em cartaz, dirigida pelo Jô Soares, com a Bibi Ferreira. Ele se apaixonou pela peça, ficou uns três dias falando, telefonando. Até gravei um depoimento muito bonito que ele deixou na secretária eletrônica. Depois ele veio me perguntar como é que eu tinha escrito aquilo. Eu respondi: “Olha, eu posso pecar por falta de talento, mas não por falta de técnica.” Essa frase, por sinal, ele depois adotou como sendo dele, aquele desgraçado… Enfim, eu estudo esse negócio que nem um louco desde 1959. No sujeito que faz teatro, há duas coisas natas: talento e vocação. Acho que tenho talento para escrever, e acho que tenho vocação, porque eu amo o teatro, amo o processo de criação. Mas cheguei à conclusão de que a técnica você tem que aprender mesmo; tem que exercitar, suar a camisa. Veja só: os grandes pianistas estudam 10, 12 horas por dia. É preciso dominar a técnica para poder se expressar. Por isso estudo textos e roteiros até hoje. Minha biblioteca sobre isso é imensa.

O que te leva a escrever?

Eu fui comunista, sou de uma família de italianos. Temos essa coisa passional, emotiva. O que sempre nos mobilizou foi um sentido altruísta; um sentido solidário, afetivo, generoso. Nosso projeto é tornar as pessoas menos predadoras. Por que fazer arte? Porque, talvez inconscientemente, temos a presunção de transformar pessoas em pessoas melhores, aperfeiçoar a sociedade, melhorar o ser humano. Quando você vê uma obra de Shakespeare absolutamente genial, você sai melhor, você é um outro ser humano. Tenho a impressão que esse compromisso é, de certa forma, religioso. Por isso falo sempre das minhas musas. Tem a ver com sacerdócio, sacrifício, entrega.


E os temas, como surgem?

São assuntos que me tomam a atenção. Por exemplo, agora o Lula anuncia que vai plantar 20 milhões de hectares de cana para produzir etanol. Só mesmo um extraterrestre poderia meter na cabeça essa ideia maluca. O canavial é poluente e esterilizante. Com defensivo agrícola e agrotóxico, nada sobrevive no canavial - lagarta, minhoca, passarinho. Nada. Sem falar do envenenamento dos mananciais. Acaba com a água. Depois que você tem um canavial sendo utilizado por alguns anos, se você quer tirar o canavial, tem que recuperar o solo. E para recuperar o solo, tem que plantar leguminosas, soja perene, e ir incorporando. Quando ela cresce um pouco, você corta. Na época da colheita, incorpora para ela devolver a fertilidade à terra. Geralmente, você tem que fazer isso por cinco anos. É uma loucura.

Sem falar que as plantações acabam tomando o lugar de outras culturas…

A cana primeiro avança sobre a roça de mandioca; depois sobre a roça de milho, a roça de feijão, a roça de arroz, que é de onde o agricultor tira a comida. Depois ela vai avançando sobre os pastos. E quando ela for sobre os pastos, os pastos vão desviar para a Amazônia, para o Pantanal - aliás, eles já estão lá. Usar toda essa fertilidade, que garante uma temperatura média na superfície da Terra, para produzir álcool que vai queimar nos congestionamentos - nos automóveis parados, porque os carros não andam mais em lugar nenhum do mundo - é um absurdo. Pensa um pouco. Para mim, esse tipo de coisa é insuportável. Mas, para muita gente, para os ministros, para o presidente da República, é uma coisa absolutamente fantástica. Porque, afinal, nós transformaremos o etanol numa
commodity e ficaremos todos bilionários. Mortos, porém, bilionários.

Qual o papel que escrever cumpre diante dessas indignações?

Esse é o meu trabalho. Todas essas coisas fazem parte dele. Mas vou fazer uma confissão horrível: acho que essas coisas não têm remédio; não têm mais jeito. Você sabe que algumas borboletas se fascinam pela volúpia do movimento e do voo. Então elas voam e ficam tão tomadas com aquilo que acabam aindo da área de segurança e são comidas pelos predadores. Olha que bonito. Elas se deixam levar pelo encantamento, pelo devaneio. Nós, artistas, somos um pouco assim. E se ainda pudermos tocar uma única pessoa na plateia, a vida já está ganha. Valeu a pena.

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