28 de maio de 2013

Viajando através das letras – 2





                                Anchieta Fernandes


                  Apesar de já ter lido alguns livros de viagem à Europa (“Cartas de dois mundos”, dos quatro irmãos Freitas Azevedo; “No estranho país dos iugoslavos”, de Leoncio Basbaum; e “Sedução da Europa”, de Cassiano Nunes), o primeiro livro de autor norte-riograndense narrando uma viagem ao velho continente, que li (e gostei) foi “Do outro lado do mar”, do poeta Augusto Severo Netto. E bote a palavra poeta aí com toda a força de expressão, pois no texto do livro em vários momentos a sensibilidade traz ao leitor verdadeiras conotações poéticas em prosa.

                      A diferença entre a viagem à Europa por Augusto Severo Netto, e a maioria de outras viagens ao mesmo continente por autores contemporâneos, é que Augusto viajou por via marítima, e os autores contemporâneos viajam preferencialmente por via aérea. Então, viajar por avião é suportar a monotonia de várias horas sentado na cadeira do veículo, enquanto que viajar por navio abrange várias diversões (jogar cartas, dansar, ver um filme no cinema, sentar em cadeira no convés para ver o movimento do mar).

                          E olhar os portos intermediários em cada etapa do longo percurso do navio até ao destino final. Quando Augusto fez a viagem que resultou na publicação do livro “Do outro lado do mar”, em 1960, pela editora carioca dos Irmãos Pongetti, existia um ritual interessante, promovida para animar a viagem, e do qual participavam os passageiros. Quando a viagem era (como no caso em foco) entre a América do Sul e a Europa, a passagem pelo Equador era uma verdadeira celebração, quase uma representação teatral, com enfoques da mitologia.

                            Sigamos o poeta de “Sinfonia do Tempo” (1959) em sua viagem de 1958: ele embarca entre “adeuses, lágrimas, risinhos semi-históricos, abraços, lenços, votos de boa viagem (nem sempre sinceros), encomendas, recomendações, cuidados, olhares de inveja, chuva pesada, cais sujo e betuminoso, pontas de cigarro nas poças d’água, auto-falantes que fazem a última chamada, escada recolhida. A chaminé emite um longo e fumacento uivo de ‘cão metafísico’ de uma estória que já li algures e…” Aí, o imaginário poético se solta, temperado com particulares toques pictoriais do “ver” de ASN e travessia.

                                O barco vai saindo devagar, passa entre os arrecifes, faz-se ao largo, a costa desaparece, e o barco vai deixando “uma longa e espumosa esteira branca, com laivos transparentes e claros, que parecem indecisos entre o azul e o verde. Se o mar não apagasse tão de pronto aquela estrada de espumas, ocorreu-me agora que se poderiam chamar de saudades as esteiras dos barcos que seguem rumos distantes.” Passam por Fernando de Noronha, e pelos rochedos de São Pedro e São Paulo, que “são como estátuas cinzentas de desolação, lavadas de infinito.” Primeiro local de parada: ilha de Las Palmas.
                                   Pertencente ao arquipélago espanhol das Ilhas Canárias, de onde veio para o Brasil o padre José de Anchieta, poeta e dramaturgo, Las Palmas foi também o pouso onde produziu sua arte o pintor Néstor de la Torre. Quando Augusto Severo Netto passou por lá, nesta viagem reportada no livro que estou comentando, visitou o Museu Néstor de la Torre, e ficou entusiasmado com o talento do canarino. Até deixou no livro o texto de uma oração endereçada ao ao artista, onde lhe solicita o sentimento de fraternidade, para igualar a sensibilidade de poeta à sensibilidade de pintor.

                                         “Néstor de onde estejas, permite que eu me sinta teu irmão. Eu serei um irmão despretencioso, humilde e sincero. Com a tua paleta interpretaste a gênese e o mundo que lhe seguiu; eu sinto em mim o poeta que caminha, ainda por entre brumas, em busca do princípio. Deixa que eu me sinta teu irmão, oh Néstor!” E o poeta natalense de “Nau Frágil” (1984), que caminha dentro do navio, humaniza o navio e tem pena do navio? ~O navio está ofegante, como que cansado de tanto esforço. Por que não o deixam dormir? (…) Señor Capitan, permita al buque acostar-se um poco.”

                                            Mas, depois de Las Palmas, o navio ainda deu-se com esforço e mais esforço, ofegando ou não, a conduzir turistas de alguns países, inclusive o poeta norte-riograndense que se apiedou dele, para só se acostar mesmo e parar, quando chegou ao primeiro ponto, no roteiro da viagem, do velho continente de tanta arte, guerra, ideais políticos e inovações tecnológicas e econômicas: Cádiz, na Andaluzia, cidade mais antiga da Europa, estabelecida pelos fenícios no ano 1100 a.c. Tanto em Las Palmas quanto em Cádiz, o poeta enche os olhos com a beleza de flores pendendo de sacadas.

                                               Detalhes curiosos acontecem a partir de Cádiz, nos momentos da visita dos turistas a pontos interessantes das cidades. Inclusive o uso, nos passeios urbanos, dos fiacres, veículos puxados a cavalo, alugados por corrida ou a hora. Das janelas desses veículos, ASN testemunhou a simpatia receptiva e florida dos habitantes de Cádiz, “escutando o tloc-tloc compassado do cavalo, sentindo o balanço (ou seria saculejo?) rítmico daquela pitoresca viatura de grandes rodas de madeira, olhando jardins e sacadas cheias de flores e de acenos, que iam ficando para trás (…).”

                                                 A viagem de Augusto Severo Netto que resultou no livro “Do Outro Lado do Mar” (1960) abrangeu cinco países: Espanha, Itália, Suíça, França e Portugal. Pode ser resumido o que foi visto na viagem e os episódios pessoais destacados do dia-a-dia  de cada passeio nos outros países depois da Espanha (onde ASN viu, mas é claro que não gostou, uma tourada na Plaza de Toros, em Madrid, mas também é claro que viu e gostou, e se emocionou, com obras-mestras da pintura universal expostas nas galerias do Museu do Prado, obras de Goya, Velasquez, Murilo, Rafael, Tintoretto, Rubens, Van Gogh e tantos outros, de “tanta intensidade expressiva.”

                                                      A chegada à Itália foi através de Nápoles, onde os visitantes viram algumas das 330 igrejas da cidade, inclusive a Catedral de San Genaro, onde o sangue coagulado do santo se torna líquido uma vez por ano. Em Capri, “tudo era encantamento.” Ruas ladeirosas, vitrinas coloridas turistas também coloridos, a casa do famoso escritor Axel Munthe, o passeio à Gruta Azul (onde se entra deitado num barquinho, que mergulha por uma estreita abertura descortinando um “recanto que terá nascido, de certo, do sortilégio de uma boa fada”).

                                                        O autor de “Do Outro Lado do Mar” ainda passou pelas cidades italianas Pompéia e Herculano (que foram destruídas pela erupção do vulcão Vesúvio a 24 de agosto de 79 a.c.), daí chegando  le e os outros excursionistas à chamada “cidade eterna”, a Roma dos Césares e dos papas, onde tiveram muito o que ver e curtir: Piaza Navona, com a fonte dos quatro rios, Forum, Coliseu, Via Appia. Narra o poeta: “Na Fonte dos Desejos atiramos uma porção de liras e eu tive ganas de pedir a estrela da manhã.” Visita ao papa no Vaticano (Pio XII) que lhes falou num “português claro”.

                                                            Em Florença, a “pátria universal do belo”, como o poeta ASN a chamou, ele, que durante a viagem teve muitos momentos de gestos humorísticos, dessa vez foi tocado pela emoção e chorou. Foi numa missa assistida na Catedral de Santa Croce. “As centenas de tubos metálicos do grande órgão, pulsavam uma harmonia profunda, suave e sentida. Havia contrição e fé em torno de mim. Cença e Antonella rezavam. Ajoelhei-me. Senti intensa a presença de mamãe e dolorida aquela saudade que ela deixou comigo quando partiu. E chorei; chorei muito mesmo.”

                                                                 No roteiro da viagem pela Itália, ainda pôde serem vistas Veneza (onde se curtiu uma serenata a bordo de uma gôndola), Assis, Pistoia (onde 284 pracinhas brasileiros da Segunda Guerra Mundial ficaram enterrados), Bolonha, Ferrari, Pádua,Verona, Milão (onde foram para a boate Embassy, apreciando número de variedades; e onde se bebeu uísque, se fumou, se ouviu tangos, rocks e blues, e se dançou, e o poeta ASN sentiu “uma lassidão gostosa e uma vontade maluca de falar coisas, de dizer poemas de Rilke, de Vinícius ou, em último caso, meus mesmo”). Da viagem de ônibus para a de trem, destinando-se à Suíça.
                                                                     Tiraram uma foto, tendo ao fundo os Alpes, coroados de branco. E andaram pela Suíça “romântica, de lagos, montanhas de picos alvos de onde desciam pequenas cachoeiras e de tanta paz e tanta calma.” Da Suíça entraram na França por Dijon. Depois, Auxerre, Chartres (com sua catedral de vitrais impressionantes e cripta imensa). Enfim, Paris, Lourdes e Biarritz dos cassinos. Em Portugal, foram visitadas as cidades de Lisboa, Fátima, Coimbra, Leiria, Nazaré e Porto. Daí, voltaram à Espanha para o porto de Vigo, onde tomaram de novo o navio para regressarem à América do Sul. E partira, de volta do Velho Mundo, como o Tesouro da Juventude chamava no “Livro do Velho Mundo”.
                                                                         O mesmo roteiro, passando pelos rochedos de São Pedro e São Paulo, por Fernando de Noronha etc. Uma noite cruzaram com outro navio. “Houve uma parada, uma grande volta, deixando no mar um círculo de espumas, uma festa de apitos, luzes, foguetes e acenos.” Por fim, a última noite no mar. Passada na boate do navio. “Lá ficamos até o sol entrar pelas vigias. Um vento de mar nos beijou, quando abrimos as portas e o sol, ainda criança, encheu os nossos olhos. Mais tarde seria terra, já anunciada pelos triângulos brancos das velas das jangadas. Os arrecifes surgem. O barco passa entre eles e se encosta ao cais. Desembaraço. Desembarque. Aladino desejou-nos  buena sorte (…). QUANTA SAUDADE! …”                                                                  

Nenhum comentário:

Postar um comentário