15 de julho de 2015

AS RAIZES MEDIEVAIS NO TEATRO NORDESTINO


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Racine Santos
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No panorama do teatro brasileiro é fácil identificar momentos de dramaturgia que particularizam alguns aspectos da multifacetada cultura nacional. São peças que, se em alguns casos não chegam a formar um conjunto expressivo, uma tendência ou mesmo um estilo, são pelo menos, tidas com significativas referências para uma análise mais consequente da dramaturgia nacional. Limitando nosso campo de observação ao teatro brasileiro produzido nos últimos 50 anos, essas peças trazem as assinaturas de Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Luiz Marinho, Paulo Pontes, Oduvaldo Viana Filho, Flávio Rangel, Millôr Fernandes, Augusto Boal e outros que fizeram da questão nacional temas de seus textos dramáticos.
Com esses autores o elo que ligava o palco brasileiro à vida nacional, e que havia se rompido depois de Martins Pena (1815-1848), França Jr. (1838-1890) e Artur Azevedo (1855-1908), é agora retomado. A maioria desses novos autores procurava aliar objetivos artísticos a uma consciência ideológica, pois achava não ser mais possível promover apenas o entretenimento de uma plateia que buscava no teatro a digestão agradável do jantar.
As expressões maiores dessa nova postura, em se tratando da renovação da linguagem do teatro nacional, foram, sem dúvida, Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna. Esses dois autores, curiosamente nascidos no nordeste, em borá percorrendo caminhos distintos, conseguiram levar para o palco a fala, o gesto, a psicologia, enfim, a alma do povo brasileiro. As fontes onde esses dois autores foram buscar a matéria para sua obra, por mais antagônicas que fossem apontavam para uma mesma direção: um teatro com a fisionomia do nosso povo.
Enquanto Nelson Rodrigues mergulhava fundo no universo da classe média urbana, notadamente a do Rio de Janeiro, rompendo com o convencionalismo das situações domésticas comuns às peças das gerações anteriores, e se apresentando com uma linguagem renovadora, Ariano Suassuna vai beber na cultura popular do Nordeste, marcadamente rural. Morando no Recife Suassuna fazia parte de um grupo de artistas e intelectuais formado por Joel Ponte, Hermilo Borba Filho, Gastão de Holanda e Aloísio Magalhães, que havia voltado para o estudo e aproveitamento da riquíssima cultura popular da região. E é com sua peça AUTO DA COMPADECIDA, que estreou profissionalmente em 1957, em São Paulo, que surge, em conceito e forma, o chamado “teatro nordestino”.
Essa vertente do teatro brasileiro, com características muito próprias, com fala e gestos muito específicos, com uma ótica particular capaz de trabalhar a contemporaneidade cênica sem perder suas raízes, é um teatro que vem se afirmando como um dos mais autênticos/expressivos segmentos do teatro nacional. Esse teatro tem por trás de si o universos da poesia popular dos folhetos, as “brincadeiras” do Boi-de-Reis e dos Pastoris, e o teatro de bonecos conhecido aqui como João Redondo e em Pernambuco como Mamulengo. Esse caminho seguido por Ariano Suassuna, diametralmente oposto ao urbano de Nelson Rodrigues, carrega consigo elementos da cultura portuguesa do século XV e XVI que aqui aportaram com os colonizadores e que aqui permaneceram congelados por circunstâncias particulares.
Estudando a presença da cultura da Baixa Idade Média no Nordeste Brasileiro de hoje, a professora Lígia Vassallo, doutora da Universidade de São Paulo, afirma que essa região é depositária de um acervo cultural e social da Europa medieval, e que a existência desses traços medievais entre nós foi provocada pelo fato de ser o Nordeste a mais antiga zona de colonização que prosperou; pelo isolamento em que a região permaneceu; pelo encontro e cruzamento contínuo de raças e culturas; pela estabilidade e longa duração de uma organização social semi-feudal de latifúndios e patriarcalismo perpetuadora de tradições herdadas.
Outros sociólogos e historiadores, como Raymundo Faoro e Fernando Uricochea, afirmam que a configuração social do Nordeste brasileiro, de modo geral até a década de 30, quando se inicia a chamada era Vargas, se identificaria com a situação medieval portuguesa e mesmo da Europa.
Luis da Câmara Cascudo pesquisando o que era lido no Brasil entre os séculos XVI e XVII, conclui que os livros preferidos pelas camadas populares eram as novelas tradicionais da Península Ibérica: A Donzela Teodora, A Imperatriz Porcina, Roberto do Diabo, A Princesa Magalona e a História dos Doze Pares de França. Novelas trazidas para o Nordeste brasileiro pelos colonizadores portugueses e que na região se vestiram com uma roupagem nova, sendo muitas vezes reescritas em décimas e sextilhas pelos poetas populares.
Recolhendo material junto ao Boi-de-Reis de Manoel Marinheiro no bairro de Felipe Camarão, em Natal, quando pretendia escrever um auto de Natal, nos anos 70, gravei uma toada da brincadeira que continha versos que identifiquei origem nos autos vicentinos. O folclorista português J. leite de Vasconcelos (“Tradições Populares de Portugal”) registrou ainda no século passado o adágio: ”Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”, que ouvi repetido muitas vezes na cidade de Cerro Corá, lá pras bandas do Seridó.
Sendo então a cultura popular a expressão maior dessa medievalidade que ainda sobrevive no Nordeste brasileiro, no momento em que ela serve de suporte para um teatro aqui produzido, serve também de condutor desses traços medievais que garimpamos na produção de textos para nossos palcos. Suporte do chamado TEATRO NORDESTINO a cultura popular é impregnada de um catolicismo arcaico e ameaçador de rabecas e sanfonas nas feiras, ciganos, bonecos de João_Redondo, vendedores de folhetos, novenas, histórias de animais misteriosos, comadres alcoviteiras e o diabo surgindo de mil formas, valentões, amarelinhos espertos e um mundo de tipos e personagens que parecem transportados do medievo para os sertões do Nordeste.
Na busca de uma linguagem que refletisse a cultura do povo, o teatro nordestino se aproximou do folclore. Não para reproduzi-lo, mas como matéria bruta a ser trabalhada. Ocorre aí o mesmo fenômeno que ocorreu na Idade Média, quando o drama medieval renuncia o texto em latim para falar a língua do povo, o vernáculo, conforme observação de Petr Bogatyrev. E nessa busca de um teatro que chegasse cada vez  mais próximo do povo, o elemento folclórico foi importante e tornou-se uma presença muito importante no drama medieval, tanto na forma como conteúdo, até nas peças religiosas, mas é nas cenas cômicas, especialmente, que se percebe com mais intensidade a presença do folclórico no drama medieval.
O mesmo fenômeno se dá com o teatro nordestino que vai buscar na cultura popular a essência de sua comicidade e a carnavalização que perpassa todo seu repertório. Uma carnavalização que desapareceu paulatinamente na Europa após intensa existência na Idade Média e no Renascimento, conforme afirma Baktin, mas que permanece viva na cultura popular do Nordeste. E não só a carnavalização, mas também o paródico alimenta a cultura popular da região. Nas brincadeiras de Boi-de-Reis e nos bonecos de João-Redondo as figuras do padre, do médico, do policial, do patrão ou do coronel (enfim, do Poder) são sempre mostradas com irreverência, com deboche, com ironia. Na cultura do povo se dá uma espécie de rebaixamento cômico do discurso religioso, jurídico e científico.

A VIDA DO CORDEL

Das manifestações da cultura popular do Nordeste brasileiro que alimentam o palco, a mais expressiva é a literatura de cordel. Os romances populares, os folhetos de feira com suas aventuras de cangaceiros e valentões, histórias de amarelinhos espertos, batalhas aventurosas, amores impossíveis e honras lavadas a sangues, presepadas e quengadas de personagens típicos da região, serviram de inspiração e foram matéria para peças de Ariano Suassuna e muitos outros autores da região. O universo do folheto de cordel serviu de base e alimenta a dramaturgia de autores como  Lurdes Ramalho, Jairo Lima, Vital Santos, Luiz Marinho, Osvaldo Barroso, Tácito Borralho, Aldomar Conrado, Altimar Pimentel.
Quando a cultura popular chega ao palco erudito via literatura de cordel, chega aí facilitada por uma característica dessa poesia dos folhetos: a oralidade. A poesia popular é feita para ser lida em voz alta, contada nas feiras ou nos alpendres ou terreiros das casas nordestinas. Seu compromisso maior não é com a literatura enquanto arte de escrever, mas com a arte do dizer. Que é também a arte do palco. E essa oralidade do cordel, construída em cima de uma linguagem coloquial, do dia-a-dia do leitor/ouvinte, está tão próxima da linguagem do palco nordestino que alguns encenadores não tiveram sequer o trabalho de adaptar a linguagem do folheto para a  cena, e montaram espetáculos encenando cordéis ipsis litteris.
A relação palco/folheto de cordel se dá, no entanto, de três maneiras distintas. A primeira é quando a encenação do folheto acontece conforme o texto escrito pelo poeta. A segunda é a recriação dramática do enredo do folheto. E por último a utilização do universo do cordel para a criação  de textos teatrais.
O primeiro caso acontece quando o encenador simplesmente transpõe para o palco os versos que o poeta escreveu, sem interferir na estrutura do poema, na composição da obra enquanto texto, personagens e ambiente.Os exemplos pelos palco brasileiro são vários. Um deles foi a encenação que J. Solha fez em João Pessoa, em 1986 do folheto A Batalha de Oliveiros e Ferrabras, de Leandro Gomes de Barros. Embora construindo um espetáculo moderno, com uma linguagem cênica contemporânea, o encenador teve o cuidado de ser fiel ao texto do folheto. Da mesma maneira procedeu Marcelo Costa que montou em 1972  em Fortaleza, um dos clássicos da literatura popular nordestina: O Romance do Pavão Misterioso, do poeta João Melquíades Ferreira, conhecido como“O Cantador da Borborema”. Esse mesmo folheto foi também encenado em natal por Marcos Bulhões e Clotilde Tavares, que igualmente transpuseram para o palco a história do famoso pavão seguindo fielmente os versos do poeta.
Em 1992, em Campina Grande, o encenador galego Moncho Rodriguez levou para o palco o folheto de Lourdes Ramalho “O Romance do Conquistador”. É essa talvez a mais feliz transposição do cordel para o palco. Sem alterar um só verso do folheto o encenador construiu um espetáculo de contundente resultado cênico.
A segunda maneira de lançar mão do folheto de cordel para criação de espetáculos teatrais acontece quando um dramaturgo recria em diálogos para o palco as cenas narradas pelos versos do poeta. Nesses casos há um trabalho de dramaturgia, que não havia antes, que interfere na estrutura do folheto. Há uma recriação, uma mudança de texto, de linguagem, embora em função da mesma história e a serviço dos mesmos personagens. Nesse caso não é um folheto que está sendo encenado, mas sim oferecendo material para o trabalho de um dramaturgo onde estão presentes folhetos como O Enterro do Cachorro, A História do Cavalo que defecava Dinheiro, O Castigo da Soberba e a Peleja da Alma. Sobre a utilização dos folhetos de cordel para a construção de sua peça, diz o próprio Suassuna: O Romanceiro é matéria bruta para a poética erudita.
De ciclo de peças que compõem o chamada TEATRO NORDESTINO, o Auto da Compadecida é a que deita raízes mais fundas na cultura popular nordestina/sertaneja/medieval. Tanto por suas matrizes textuais, como pela estrutura dramática utilizada pelo autor, que retoma a tradição católica didática dos fins da Idade Média, conforme observou o crítico Anatol Rosenfeld.

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Transcrito do Jornal “O Galo” – dezembro/96 – Racine Santos é teatrólogo. Escreveu, entre outras peças, “A Festa do Rei” e “À Luz da Lua os Punhais”.

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