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Racine Santos
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No panorama do teatro brasileiro é fácil
identificar momentos de dramaturgia que particularizam alguns aspectos da
multifacetada cultura nacional. São peças que, se em alguns casos não chegam a
formar um conjunto expressivo, uma tendência ou mesmo um estilo, são pelo
menos, tidas com significativas referências para uma análise mais consequente
da dramaturgia nacional. Limitando nosso campo de observação ao teatro
brasileiro produzido nos últimos 50 anos, essas peças trazem as assinaturas de
Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Dias
Gomes, Ariano Suassuna, Luiz Marinho, Paulo Pontes, Oduvaldo Viana Filho,
Flávio Rangel, Millôr Fernandes, Augusto Boal e outros que fizeram da questão nacional
temas de seus textos dramáticos.
Com esses autores o elo que ligava o palco
brasileiro à vida nacional, e que havia se rompido depois de Martins Pena
(1815-1848), França Jr. (1838-1890) e Artur Azevedo (1855-1908), é agora
retomado. A maioria desses novos autores procurava aliar objetivos artísticos a
uma consciência ideológica, pois achava não ser mais possível promover apenas o
entretenimento de uma plateia que buscava no teatro a digestão agradável do
jantar.
As expressões maiores dessa nova postura, em se
tratando da renovação da linguagem do teatro nacional, foram, sem dúvida,
Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna. Esses dois autores, curiosamente nascidos
no nordeste, em borá percorrendo caminhos distintos, conseguiram levar para o
palco a fala, o gesto, a psicologia, enfim, a alma do povo brasileiro. As fontes
onde esses dois autores foram buscar a matéria para sua obra, por mais
antagônicas que fossem apontavam para uma mesma direção: um teatro com a
fisionomia do nosso povo.
Enquanto Nelson Rodrigues mergulhava fundo no
universo da classe média urbana, notadamente a do Rio de Janeiro, rompendo com
o convencionalismo das situações domésticas comuns às peças das gerações
anteriores, e se apresentando com uma linguagem renovadora, Ariano Suassuna vai
beber na cultura popular do Nordeste, marcadamente rural. Morando no Recife
Suassuna fazia parte de um grupo de artistas e intelectuais formado por Joel
Ponte, Hermilo Borba Filho, Gastão de Holanda e Aloísio Magalhães, que havia
voltado para o estudo e aproveitamento da riquíssima cultura popular da região.
E é com sua peça AUTO DA COMPADECIDA, que estreou profissionalmente em 1957, em
São Paulo, que surge, em conceito e forma, o chamado “teatro nordestino”.
Essa vertente do teatro brasileiro, com
características muito próprias, com fala e gestos muito específicos, com uma
ótica particular capaz de trabalhar a contemporaneidade cênica sem perder suas
raízes, é um teatro que vem se afirmando como um dos mais
autênticos/expressivos segmentos do teatro nacional. Esse teatro tem por trás
de si o universos da poesia popular dos folhetos, as “brincadeiras” do
Boi-de-Reis e dos Pastoris, e o teatro de bonecos conhecido aqui como João
Redondo e em Pernambuco como Mamulengo. Esse caminho seguido por Ariano
Suassuna, diametralmente oposto ao urbano de Nelson Rodrigues, carrega consigo
elementos da cultura portuguesa do século XV e XVI que aqui aportaram com os
colonizadores e que aqui permaneceram congelados por circunstâncias
particulares.
Estudando a presença da cultura da Baixa Idade
Média no Nordeste Brasileiro de hoje, a professora Lígia Vassallo, doutora da
Universidade de São Paulo, afirma que essa região é depositária de um acervo
cultural e social da Europa medieval, e que a existência desses traços
medievais entre nós foi provocada pelo fato de ser o Nordeste a mais antiga
zona de colonização que prosperou; pelo isolamento em que a região permaneceu;
pelo encontro e cruzamento contínuo de raças e culturas; pela estabilidade e
longa duração de uma organização social semi-feudal de latifúndios e
patriarcalismo perpetuadora de tradições herdadas.
Outros sociólogos e historiadores, como Raymundo
Faoro e Fernando Uricochea, afirmam que a configuração social do Nordeste
brasileiro, de modo geral até a década de 30, quando se inicia a chamada era
Vargas, se identificaria com a situação medieval portuguesa e mesmo da Europa.
Luis da Câmara Cascudo pesquisando o que era lido
no Brasil entre os séculos XVI e XVII, conclui que os livros preferidos pelas
camadas populares eram as novelas tradicionais da Península Ibérica: A Donzela
Teodora, A Imperatriz Porcina, Roberto do Diabo, A Princesa Magalona e a
História dos Doze Pares de França. Novelas trazidas para o Nordeste brasileiro
pelos colonizadores portugueses e que na região se vestiram com uma roupagem
nova, sendo muitas vezes reescritas em décimas e sextilhas pelos poetas
populares.
Recolhendo material junto ao Boi-de-Reis de Manoel
Marinheiro no bairro de Felipe Camarão, em Natal, quando pretendia escrever um
auto de Natal, nos anos 70, gravei uma toada da brincadeira que continha versos
que identifiquei origem nos autos vicentinos. O folclorista português J. leite
de Vasconcelos (“Tradições Populares de Portugal”) registrou ainda no século
passado o adágio: ”Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”, que ouvi
repetido muitas vezes na cidade de Cerro Corá, lá pras bandas do Seridó.
Sendo então a cultura popular a expressão maior
dessa medievalidade que ainda sobrevive no Nordeste brasileiro, no momento em
que ela serve de suporte para um teatro aqui produzido, serve também de
condutor desses traços medievais que garimpamos na produção de textos para
nossos palcos. Suporte do chamado TEATRO NORDESTINO a cultura popular é impregnada
de um catolicismo arcaico e ameaçador de rabecas e sanfonas nas feiras,
ciganos, bonecos de João_Redondo, vendedores de folhetos, novenas, histórias de
animais misteriosos, comadres alcoviteiras e o diabo surgindo de mil formas,
valentões, amarelinhos espertos e um mundo de tipos e personagens que parecem
transportados do medievo para os sertões do Nordeste.
Na busca de uma linguagem que refletisse a cultura
do povo, o teatro nordestino se aproximou do folclore. Não para reproduzi-lo,
mas como matéria bruta a ser trabalhada. Ocorre aí o mesmo fenômeno que ocorreu
na Idade Média, quando o drama medieval renuncia o texto em latim para falar a
língua do povo, o vernáculo, conforme observação de Petr Bogatyrev. E nessa
busca de um teatro que chegasse cada vez
mais próximo do povo, o elemento folclórico foi importante e tornou-se
uma presença muito importante no drama medieval, tanto na forma como conteúdo,
até nas peças religiosas, mas é nas cenas cômicas, especialmente, que se
percebe com mais intensidade a presença do folclórico no drama medieval.
O mesmo fenômeno se dá com o teatro nordestino que
vai buscar na cultura popular a essência de sua comicidade e a carnavalização
que perpassa todo seu repertório. Uma carnavalização que desapareceu paulatinamente
na Europa após intensa existência na Idade Média e no Renascimento, conforme
afirma Baktin, mas que permanece viva na cultura popular do Nordeste. E não só
a carnavalização, mas também o paródico alimenta a cultura popular da região. Nas
brincadeiras de Boi-de-Reis e nos bonecos de João-Redondo as figuras do padre,
do médico, do policial, do patrão ou do coronel (enfim, do Poder) são sempre
mostradas com irreverência, com deboche, com ironia. Na cultura do povo se dá
uma espécie de rebaixamento cômico do discurso religioso, jurídico e
científico.
A
VIDA DO CORDEL
Das manifestações da cultura popular do Nordeste
brasileiro que alimentam o palco, a mais expressiva é a literatura de cordel. Os
romances populares, os folhetos de feira com suas aventuras de cangaceiros e
valentões, histórias de amarelinhos espertos, batalhas aventurosas, amores
impossíveis e honras lavadas a sangues, presepadas e quengadas de personagens
típicos da região, serviram de inspiração e foram matéria para peças de Ariano
Suassuna e muitos outros autores da região. O universo do folheto de cordel
serviu de base e alimenta a dramaturgia de autores como Lurdes Ramalho, Jairo Lima, Vital Santos,
Luiz Marinho, Osvaldo Barroso, Tácito Borralho, Aldomar Conrado, Altimar
Pimentel.
Quando a cultura popular chega ao palco erudito
via literatura de cordel, chega aí facilitada por uma característica dessa
poesia dos folhetos: a oralidade. A poesia popular é feita para ser lida em voz
alta, contada nas feiras ou nos alpendres ou terreiros das casas nordestinas. Seu
compromisso maior não é com a literatura enquanto arte de escrever, mas com a
arte do dizer. Que é também a arte do palco. E essa oralidade do cordel,
construída em cima de uma linguagem coloquial, do dia-a-dia do leitor/ouvinte,
está tão próxima da linguagem do palco nordestino que alguns encenadores não
tiveram sequer o trabalho de adaptar a linguagem do folheto para a cena, e montaram espetáculos encenando
cordéis ipsis litteris.
A relação palco/folheto de cordel se dá, no
entanto, de três maneiras distintas. A primeira é quando a encenação do folheto
acontece conforme o texto escrito pelo poeta. A segunda é a recriação dramática
do enredo do folheto. E por último a utilização do universo do cordel para a
criação de textos teatrais.
O primeiro caso acontece quando o encenador
simplesmente transpõe para o palco os versos que o poeta escreveu, sem
interferir na estrutura do poema, na composição da obra enquanto texto,
personagens e ambiente.Os exemplos pelos palco brasileiro são vários. Um deles
foi a encenação que J. Solha fez em João Pessoa, em 1986 do folheto A Batalha
de Oliveiros e Ferrabras, de Leandro Gomes de Barros. Embora construindo um
espetáculo moderno, com uma linguagem cênica contemporânea, o encenador teve o
cuidado de ser fiel ao texto do folheto. Da mesma maneira procedeu Marcelo Costa
que montou em 1972 em Fortaleza, um dos
clássicos da literatura popular nordestina: O Romance do Pavão Misterioso, do
poeta João Melquíades Ferreira, conhecido como“O Cantador da Borborema”. Esse
mesmo folheto foi também encenado em natal por Marcos Bulhões e Clotilde
Tavares, que igualmente transpuseram para o palco a história do famoso pavão
seguindo fielmente os versos do poeta.
Em 1992, em Campina Grande, o encenador galego
Moncho Rodriguez levou para o palco o folheto de Lourdes Ramalho “O Romance do
Conquistador”. É essa talvez a mais feliz transposição do cordel para o palco.
Sem alterar um só verso do folheto o encenador construiu um espetáculo de
contundente resultado cênico.
A segunda maneira de lançar mão do folheto de
cordel para criação de espetáculos teatrais acontece quando um dramaturgo
recria em diálogos para o palco as cenas narradas pelos versos do poeta. Nesses
casos há um trabalho de dramaturgia, que não havia antes, que interfere na
estrutura do folheto. Há uma recriação, uma mudança de texto, de linguagem,
embora em função da mesma história e a serviço dos mesmos personagens. Nesse
caso não é um folheto que está sendo encenado, mas sim oferecendo material para
o trabalho de um dramaturgo onde estão presentes folhetos como O Enterro do
Cachorro, A História do Cavalo que defecava Dinheiro, O Castigo da Soberba e a
Peleja da Alma. Sobre a utilização dos folhetos de cordel para a construção de
sua peça, diz o próprio Suassuna: O Romanceiro é matéria bruta para a poética
erudita.
De ciclo de peças que compõem o chamada TEATRO
NORDESTINO, o Auto da Compadecida é a que deita raízes mais fundas na cultura
popular nordestina/sertaneja/medieval. Tanto por suas matrizes textuais, como
pela estrutura dramática utilizada pelo autor, que retoma a tradição católica didática
dos fins da Idade Média, conforme observou o crítico Anatol Rosenfeld.
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Transcrito do
Jornal “O Galo” – dezembro/96 – Racine Santos é teatrólogo. Escreveu,
entre outras peças, “A Festa do Rei” e “À Luz da Lua os Punhais”.
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